A HERANÇA DE BENTO XVI
Na presente crise gigantesca da Igreja, impõe-se continuar com a reforma que o Papa Francisco pôs em marcha. Para ela, há que contar também com contributos e reflexões de Bento XVI, apesar das duras críticas que justamente se levantam contra ele. Não se pode esquecer que a primeira herança a ter em conta é justamente Francisco. Repare-se em algumas dessas reflexões, que mostram não ser possível contrapor pura e simplesmente Francisco e Bento XVI. Ficam aí alguns exemplos.
1. Ainda recentemente Francisco lembrou o seu antecessor, que dizia: “A Igreja não faz proselitismo, cresce muito mais por atracção.” Neste sentido, em 1969 o então professor de Teologia J. Ratzinger avançou com uma profecia: “Da actual crise surgirá uma Igreja que terá perdido muito. Será mais pequena e terá que recomeçar mais ou menos do início. Já não será capaz de habitar os edifícios que construiu em tempos de prosperidade. Recomeçará com pequenos grupos. Será uma Igreja mais espiritual, Igreja dos pobres.” Acrescentou: mas então as pessoas descobrirão que vivem num mundo de “indescritível solidão” e elas, que tinham perdido Deus de vista, verão “esse pequeno rebanho de crentes como algo completamente novo: descobri-lo-ão como uma esperança para eles próprios, a resposta que secretamente sempre tinham procurado.” Voltou à ideia em 1970 e 1971: A Igreja “tornar-se-á pequena. Com o número dos seus membros, perderá muitos dos seus privilégios… Conhecerá também certamente novas formas de ministério e ordenará como padres cristãos que deram provas, que têm a sua profissão”. Sobre o celibato: por um lado, a sua defesa; por outro, a ordenação dos chamados viri probati (homens de fé provada, casados ou não) parecia-lhe “ser o caminho para, com sentido e sem quebra da tradição, criar novas possibilidades.” Nessa altura admitiu também, no quadro de certas condições, a possibilidade da comunhão para divorciados recasados.
2. Ele que carregou com o que terá constituído o seu maior pecado — a condenação de dezenas e dezenas de teólogos — também deixou escrito: “Acima do Papa encontra-se a própria consciência, à qual é preciso obedecer em primeiro lugar; se fosse necessário, até contra o que disser a autoridade ecclesiástica. O que faz falta na Igreja não são panegiristas da ordem estabelecida, mas homens cuja humildade e obediência não sejam menores do que a sua paixão pela verdade, e que amem a Igreja mais do que a sua comodidade da sua própria carreira.”
3. Contra uma Igreja centrada na Europa, confessou, já depois de ter abdicado e pensando na eleição de Bergoglio: “Papa é o Papa, não importa quem seja”. A eleição de um cardeal latino-americano “significa que a Igreja está em movimento, é dinâmica, aberta, tendo diante de si perspectivas de novos desenvolvimentos. É completamente claro que a Europa já não é o centro da Igreja mundial” e é evidente que ela “está a abandonar cada vez mais as velhas estruturas tradicionais da vida europeia e, portanto, muda de aspecto e nela vivem novas formas . É claro sobretudo que a descristianização da Europa progride, que o elemento cristão desaparece cada vez mais do tecido da sociedade. Portanto, a Igreia deve encontrar uma nova forma de presença. Estão em curso reviravoltas epocais.” A teologia precisa de renovar-se e admoestou os cardeais para “renunciarem ao estilo mundanao de poder e glória”.
4. E não tinha razão quando, nas Últimas Conversas, depois de confessar que “acreditar não é senão, na noite do mundo, tocar a mão de Deus e assim — no silêncio — ouvir a Palavra, ver o Amor”, perguntou: Qual é “o verdadeiro problema deste nosso momento da História? Deus desaparece do horizonte das pessoas e, com a extinção da luz que vem de Deus”, a Humanidade é apanhada pela falta de orientação, “cujos efeitos se manifestam cada vez mais”.
Pergunto: não consiste o desastre da presente situação de consumismo hedonista e de vazio no facto de já nem sequer se colocar a pergunta essencial, a pergunta pelo Fundamento, pelo Sentido último? Sem essa pergunta, onde fundamentar a dignidade do ser humano, “fim em si mesmo e não simples meio”, como teorizou I. Kant? De facto, só o Infinito é fim em si mesmo: para lá não existe mais nada. O que tem o ser humano de infinito senão precisamente a pergunta ao Infinito pelo Infinito, em última análise, a pergunta por Deus, independenetemente da resposta que lhe dê, pois, com honestidade, pode haver crentes, agnósticos e ateus?
5. Enfrentou a doutrina da “satisfação”: Deus mandou o seu Filho Jesus ao mundo para, com a morte na cruz como vítima expiatória, reparar a ofensa infinita feita a Deus pela Humanidade. Rejeitou a noção de um Deus colérico, sádico, “cuja justiça inexorável teria exigido um sacrifício humano, o sacrifício do seu próprio Filho. Esta imagem, apesar de tão espalhada, não deixa de ser falsa”, contradiz o Deus-Amor, revelado em Jesus.
6. Percebeu a necessidade, no contexto da interdependência de tudo e de todos, de uma Governança global: “Urge a presença de uma verdadeira Autoridade política mundial, que deverá ser reconhecida por todos, gozar de poder efectivo para garantir a cada um a segurança, a observância da justiça, o respeito dos direitos”.
7. Ficam para a História a denúncia da Cúria, um verdadeiro cancro da Igreja, e a resignação, que permitiu a eleição de Francisco, uma bênção para a Igreja e para o mundo.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 21 de janeiro de 2023