Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De 30 de janeiro a 5 de fevereiro de 2023


“António Alçada Baptista – Tempo Afetuoso – Homenagem ao Escritor e Amigo de Todos Nós” (CNC – Presença) é um repositório essencial que nos permite recordar um inesquecível amigo.


AS SUAS HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS
Era absolutamente extraordinário ouvir as suas histórias, fruto de uma memória prodigiosa para fixar os pormenores, os sinais, os significados e os sentidos. Um conhecido episódio passado com o Padre Anchieta era um bom exemplo. "Com urgência para regressar a uma aldeia, pediu aos carregadores para irem depressa". Com três dias de marchas forçadas, os índios sentaram-se a descansar, e o Padre não compreendeu a paragem, mas eles explicaram: "temos vindo depressa demais e a nossa alma ficou lá para trás. Temos de esperar que ela regresse". Há mil outros casos, como o daquela senhora que procurava uma rua, próximo do Bairro Alto e, perante a indicação do António, disse: "todos sabem tudo, cada um sabe o que sabe". Houve ainda um livro que nunca chegou a ver a luz do dia. Chamar-se-ia “Histórias de Maus – Elementos para uma Anti-hagiografia”. Não sei o que o António esperaria escrever. Tratava-se da descoberta dos sentimentos e ressentimentos que unem e dividem as pessoas. Afinal, como disse Frei Bento Domingues, António Alçada foi o nosso melhor cultor da “teologia narrativa”. Por isso, gostava de invocar o conto enigmático em “El Aleph” de Jorge Luís Borges “Os Teólogos”, em que Aureliano e João de Panónia, o ortodoxo e o herege, se encontram perante Deus no julgamento final, descobrindo que, para a insondável Providência, os dois inimigos, o aborrecedor e o aborrecido, o acusador e a vítima formavam uma única pessoa… Para António, a razão seria sempre insuficiente. Falta-nos tempo para as coisas essenciais, e ficamo-nos pela superfície, por medo ou preguiça. Em “O Riso de Deus”, lemos: “Hoje já não posso ouvir falar em dialética, em competição, em vencer na vida, porque acho que é com nomes desses que se tem tentado encobrir o projeto sempre adiado de descobrir como saber usar a nossa liberdade e, com ela, implantar no mundo o lugar do homem”. E Domingos Lobo, com a sabedoria vinda da velha Goa, diz a Francisco, ao descer a Avenida: “Sabe, a Europa é o continente da dúvida e nós, lá no Oriente, estamos presos pela fé. Eu não sei ainda bem se são as dúvidas se as certezas que fazem mover o mundo”.


TEOLOGIA DA FELICIDADE
Percebe-se que o escritor se admire por não haver uma "teologia da felicidade" (ou “da ternura”, segundo Heinrich Böll), facto tanto mais estranho quanto um dos apelos "que resume e engrandece o Evangelho, é a proposta de felicidade contida nas Bem-Aventuranças: - Felizes aqueles que…" E como escreveu Martin Buber: “Deus não me pedirá contas por eu não ter sido Francisco de Assis ou mesmo Jesus Cristo. Deus vai-me pedir contas por eu não ter sido completa e intensamente Martin Buber”. Praticante ativo da “aristocracia do comportamento”, António acreditava na coerência, na generosidade, na dúvida serena, na procura do sentido da dignidade humana - demarcando-se dos "sentimentos que infetam o espírito do tempo: a culpabilidade dos ricos e o ressentimento dos pobres". E sentimos a recordação do Padre António Magalhães, seu professor em Santo Tirso, pedagogo da liberdade. "Andava por ali. Amigo de Leonardo Coimbra e Pascoaes, de Casais Monteiro e José Marinho, foi quem primeiro me aceitou e me animou a olhar interrogativamente para o homem e para o mundo.". E há a sombra de Lanza del Vasto: "eu tenho de passar pelo amor dos outros para chegar à minha serenidade e creio que a caridade é mais importante do que a sabedoria". "Viver é a obra de arte". José Cardoso Pires desejava reencontrar o "pássaro migrador rodeado de amigos" e disse dele que "a amizade sem humor não sabe ser tolerante" e "sempre que nos lembramos do muito que fez pela liberdade cultural e religiosa deste país, vemo-lo outra vez jovem a sorrir-nos de longe, num convite à aventura de pensar". Procurando compreender a realidade humana que nos cerca, dizia com Jean-Marie Domenach: "é preciso saber em que tipo de conhecimento está assente a nossa ignorância". E num domingo nublado, em que fomos ao Convento dos Capuchos em Sintra, com Domenach, Helena e Alberto Vaz da Silva, recordámos na rude simplicidade do lugar essa ignorância de que o conhecimento e a razão se alimentam… E outro amigo comum, Edgar Morin, pedia-nos, com Montaigne, uma cabeça bem feita, mais do que bem cheia… Helena, cuja luminosidade enriquecia a amizade, dizia que há poucas coisas adquiridas e que o mais importante está em aprofundar o relacionamento entre as pessoas, e os seus saberes.


UM AMIGO DO CORAÇÃO
Alexandre O'Neill, amigo cúmplice de sempre, confessou que gostaria de escrever “Das tias em António Alçada Baptista”. Por isso, “Tia Suzana, Meu Amor” (1989) foi-lhe dedicado, com "um sussurro de saudade". As tias eram uma metáfora, como verdadeira introdução ao universo feminino. Em entrevista a Inês Pedrosa, António disse que o universo feminino se distingue por "uma história de generosidade, uma história dos afetos, uma história de procura de sentido de vida, de apreciação poética da vida, de perceção solidária, de solidariedade com as dores e os sofrimentos"… "Repara que o Evangelho não nos manda amar a humanidade, mas o próximo. É que a humanidade é uma abstração" - disse-lhe Lanza del Vasto. Fernão Mendes Pinto e as suas mil peripécias voluntárias e involuntárias revelavam muito melhor o inesperado sentido da vida do que alguém que se leve muito a sério. O “Quincas Berro d'Água”, de Jorge Amado, apesar de parecer um caso de compaixão, desperta para a esperança e para o gosto de viver. Como a poesia de Alexandre O'Neill: "é tempo de unir o mesmo gesto/ o real e o sonho…/É tempo de acordar nas trevas do real/ na desolada promessa/ do dia verdadeiro".


Na “Peregrinação Interior” (I, 1971; II, 1982), as aventuras de Sandokan e de Texas Jack levam a imaginação a amar intensamente as pessoas. E a epopeia de “O Tempo e o Modo” iniciada em 1963, merece lembrança. No terramoto político de 1958 (candidatura de Delgado, carta do Bispo do Porto), António Alçada deita mãos à obra na editora Moraes. Com os amigos João Bénard da Costa, Pedro Tamen, Alberto Vaz da Silva, Nuno de Bragança e José Domingos de Morais concretiza uma revista de "pensamento e ação", aberta e crítica, como em Espanha os “Cuadernos para el Dialogo”, de Joaquín Ruiz-Giménez. Mário Soares, Francisco Salgado Zenha e Jorge Sampaio apoiam a iniciativa, conscientes da importância do diálogo com os católicos. E António usa eufemismos, que hoje nos fazem sorrir, falando, em vez de "instituições democráticas", em "instituições que pressupõem uma certa dialética". A censura não dava tréguas contra os perigosos "peixinhos vermelhos em pia de água benta". A modernidade reclamava Jorge de Sena, Vergílio Ferreira Agustina Bessa Luís, Sophia de Mello Breyner, Ruy Belo ou até António Sérgio. Eduardo Lourenço diz que "é para trazer à luz, mostrar aos outros, e a si mesmo, o que ainda não era visível, palpável, audível, que a obra nasce" (n.º 6, junho 1963). Ao projeto da revista somam-se, por ocasião do Vaticano II, a revista “Concilium”, bem como a colaboração com o Congresso para a Liberdade da Cultura de Pierre Emmanuel. Era a sociedade portuguesa que se abria, denunciando a “desordem estabelecida”. E, se dúvidas houvesse, valem "os depoimentos das gerações que nos seguiram, para quem essa aventura foi um acontecimento referência que acordou alguns e confortou outros perante um tempo carregado de dúvidas e inquietações". De acordo com o saber náutico sempre achou que se todos se juntam a bombordo ou a estibordo, a embarcação naufraga. Era preciso que alguém ficasse do outro lado, mesmo incompreendido. Assim como assim… Como diz a tia Suzana: "Julgo que o mais importante são as palavras. Quando se vive a solidão, sabe-se que, por causa duma palavra verdadeira, caem muitas vezes as muralhas que levantámos à volta das nossas almas”.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença