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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

SOBRE OS ABUSOS NA IGREJA

  


Não conheço condenação mais dura da pedofilia do que a de Jesus. Ele disse: “Deixai vir a mim as criancinhas”, mas também disse: “Ai de quem escandalizar uma criança. Era melhor atar-lhe a mó de um moinho ao pescoço e deitá-lo ao mar”.


Outra palavra de Jesus: “Nada há de oculto que não venha a revelar-se”.


E esta: “A verdade libertar-vos-á.” Sempre admirei ao chegar à Universidade de Friburgo na Alemanha ver no frontispício  precisamente esta palavra do Evangelho de São João: “Die Wahrheit wird euch frei machen”: a verdade tornar-vos-á livres.


Penso que foi neste contexto que José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, tomou a decisão corajosa de levar a Conferência a criar a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, que já apresentou os resultados do estudo. Denúncias validadas atingem o número de 512, tendo sido enviadas para o Ministério Público 25 — destas, seis estão sob investigação —, é de 4815 o número estimado de vítimas ao longo dos últimos 72 ano. Estes são os números do flagelo.


A reflexão tem de atender aos números, mas, como diz o Papa Francisco, mesmo que houvesse apenas um caso, seria uma tragédia.


O abuso é sempre abuso de poder. De facto, de um lado está um adulto e do outro uma criança inocente. No caso da Igreja, o abuso é mais brutal, porque se trata de um poder considerado sacro, divino, e, por outro lado, a família e as crianças confiavam na Igreja e nos padres. Ora, foi esta confiança que foi traída. Entre nós, foram publicados relatos arrepiantes, mas também li num relatório dos Estados Unidos este testemunho de uma família: “O padre entrava em nossa casa, era Deus que entrava. Depois, pedofilizou os nossos filhos e dizia-lhes: não podeis dizer nada, porque, se disserdes, ides para o inferno”. Isto é a perversão. Também entre nós — era uma espécie de norma comum na Igreja e não só, segundo o princípio: “a roupa suja lava-se em casa” —, houve encobrimento por parte de responsáveis.


Perguntam-me se há relação, relação de causa-efeito, entre o celibato e os abusos. À primeira vista, a resposta é: não. De facto, a maior parte, parte substancial, dos casos de pedofilia, passa-se em contextos familiares no sentido alargado, incluindo, vizinhos, amigos, portanto, pessoas casadas. Mas, aprofundando, deve-se reconhecer que, atendendo à formação tradicional nos Seminários, os futuros padres entravam ainda miúdos e toda a formação, incluindo a passagem pela puberdade-adolescência, se deu sem presença feminina, e a tentação era o sexo, o que fez com que tenha havido certamente casos de padres com uma sexualidade distorcida. Vítimas, eles próprios, fizeram vítimas.


O que fazer agora? Isto, ligado a imensos escândalos, também financeiros, no Vaticano e não só, abusos de poder sobre as consciências, etc...., constitui um sismo na Igreja e é necessário reconstruir desde a raiz, sabendo que o fundamento é Jesus e o seu Evangelho. Neste caso concreto, sem esquecer que se trata também de um crime hediondo, exige-se um pedido sentido de perdão, um apoio sólido às vitimas, psicológico, psiquiátrico, e, na medida do possível e em condições a estabelecer, também financeiro. Os abusadores, eles próprios com necessidade de apoio psicológico ou mesmo psiquiátrico, deverão abandonar o ministério. Os encobridores, que antepuseram a defesa da instituição, que queriam ver prestigiada, imaculada, à defesa das vítimas, deveriam demitir-se. Sem “caça às bruxas”, como disse o bispo Ornelas, e salvaguardando o princípio da presunção de inocência, os suspeitos precisam de atenção e devem ser mantidos sob vigilância até ao apuramento dos factos. A Igreja, que leva com ela o Evangelho de Jesus, a mensagem mais libertadora que a Humanidade alguma vez ouviu na sua história, precisa de voltar a adquirir autoridade e credibilidade. No próximo dia 3 de Março, espera-se da Conferência Episcopal a tomada de medidas sólidas neste sentido, provando que haverá realmente “tolerância zero” para a pedofilia.


Entretanto, é fundamental rever a formação nos Seminários, retomar sem medo o debate  da questão do celibato obrigatório e da igualdade real das mulheres na Igreja, sem discriminação. Temas para próximas crónicas.


Concluo com palavras de Henrique Monteiro no Expresso de 17 deste mês, num texto lúcido: OS OBSCENOS.Já se usaram todas as palavras. E mesmo alguns insultos, para caracterizar os abusos sexuais sobre menores na Igreja Católica que a Comissão Independente, designada pela mesma Igreja, revelou. Mas há indignação genuína, pura, sentida, e outra oportunista com duas facetas: a daqueles que se querem pôr de fora, quando estiveram sempre dentro do mal que os seus pares praticaram, e a daqueles que aproveitam mais uma oportunidade para atacar a Igreja. Como se fosse ela a única entidade a permitir ter no seu seio a ignomínia da pedofilia. Felizmente, os membros da Comissão têm sido sérios e competentes. Ainda ontem Daniel Sampaio dizia que, se fosse bispo e tivesse ocultado um caso assim, se demitiria. Não podia, nem pode ser de outra forma. A Igreja precisa de se limpar, de tomar um bom banho de humildade e autocrítica: de ser diferente caso pretenda manter o essencial do seu ministério. E isto diz quem vê de fora, quem nunca lhe pertenceu, nem teve fé, nem concorda com os dogmas, nem gosta de fogueiras inquisitoriais, mesmo para a entidade que as praticou.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 25 de fevereiro de 2023

A VIDA DOS LIVROS

  

De 27 de fevereiro a 5 de março de 2023


«Genuína Fazendeira – Os Frutíferos Cem Anos de Cleonice Berardinelli» é uma bela recordação da personalidade fascinante desta verdadeira mestra de muitas gerações.

 


MESTRA DE MUITAS GERAÇÕES
Manuel Bandeira elogiava-lhe a voz bonita e o comentário claro e sábio. E o poeta bem conhecia, desde jovem, Cleonice Berardinelli, não apenas através das considerações sérias e avisadas em matéria literária, mas também das representações de Gil Vicente, cheias de ironia ou de sérios alertas, com voz límpida e expressão viva, animada, rigorosa e compassada. No fundo, para a professora, discípula de Fidelino de Figueiredo, a literatura era muito mais do que uma disciplina científica, fria e desenraizada, mas a expressão humanista dos sentimentos, do pensamento e da ação. Nela a ciência e a cultura fundiam-se, com naturalidade, contribuindo para que a língua como realidade viva fosse expressão fiel da vida humana. O teatro e a literatura completavam-se intimamente e permitiam entender que o idioma e a sua expressão narrativa eram tanto mais ricos quanto se conseguia ir além do formalismo através da melhor comunicação de uns com os outros. E a comunicação torna-se compreensão. Não há literatura repetitiva nem sujeita à inércia e daí que a representação dramática permita compreender melhor os segredos das palavras. Assim aconteceu com Cleonice Berardinelli que é referência fundamental no estudo e conhecimento das culturas da língua portuguesa. E assim a estudiosa compreendeu, melhor que ninguém, que a projeção global do nosso idioma obriga a entender a diversidade e a abertura, num território com muitas raízes e diversas fronteiras.     


Luciana Stegagno-Picchio, quando lhe foi pedido que prestasse homenagem a Cleonice Berardinelli, entendeu oferecer-lhe metaforicamente duas ilhas, uma poética e outra cartográfica – uma ilha desconhecida e uma ilha que não há. Uma ilha Utopia e uma ilha Brasil. E se a ideia foi a de ofertar ilhas metafóricas, a razão tinha a ver com o facto de Cleonice, ela mesma, ter sido como que uma ilha no seio da cultura portuguesa na academia brasileira e, na Europa, uma ilha da cultura e da doce fala brasileira no mundo académico português. Assim, no mundo luso-brasileiro, haveria muitas ilhas para oferecer a Dona Cleo – na expressão camoniana, a Ilha dos Amores, na área pessoana, as Ilhas Afortunadas, para a paixão da viajante, a Ilha da Utopia, descoberta, segundo Thomas Morus, pelo português Rafael Hitlodeu, para o mundo  da moderna literatura portuguesa uma ilha do Mediterrâneo, em homenagem a Sophia de Mello Breyner, ou a ilha desconhecida para um ilhéu honorário chamado José Saramago… E, invocando, a sua qualidade de italiana, Luciana aventava ainda a hipótese de uma “Ilha não encontrada”, invocando Guido Gozzano. A imaginação poderia chegar a Itaparica ou a Maré, mas a que realmente interessava a Luciana era a referência à Ilha-Brasil. Esta era a “Ilha próxima e remota / que nos ouvidos persiste, / para a vista não existe”, de que fala Fernando Pessoa na “Mensagem”. Já Carlos Drummond de Andrade quando dedicou um extraordinário poema a Cleonice, considerou-a como “genuína fazendeira”, sobretudo em homenagem à imaginada grande ilha, onde se cultiva “a constante maravilha / do linguajar português / tal como sino que soa / no copiar da fazenda / até Fernando Pessoa”.


A BELEZA DA LÍNGUA COMUM
De facto, quando Pêro Vaz de Caminha anunciou, primeiro que todos, a magia que se lhe apresentava, falou de uma Ilha, como se tratasse do achamento de uma parte do Paraíso, inesperadamente encontrado. E quando hoje referimos este mundo plural e diverso onde se cultiva a nossa língua, ao lado de variadas culturas, numa nova representação de Babel, esta Ilha-Brasil significa não um lugar de uniformidade, mas um encontro de mil culturas, e de uma demanda das múltiplas expressões do Outro. De facto, para Cleonice Berardinelli, apenas seria possível compreender a cultura do Brasil indo ao encontro das suas origens – da sua multiplicidade. Daí que esquecer qualquer dessas componentes seria ter um desencontro com a própria complexidade e força de uma cultura. Afinal, seria não compreender a relação com o diverso e o esquecimento da corrente que permite entender o património cultural como uma permanente troca de influências. Se os núcleos preferenciais das atenções de Dona Cleo são, literariamente falando, Gil Vicente, Camões e Pessoa é porque essa é sua linha de atenção, que permite perceber uma parte do linguajar “como sino que soa / no copiar da fazenda”. Temos de ir aos trovadores que começaram a construir este idioma de projeção global, mas não podemos esquecer ainda os sermões de Vieira, o romantismo de Garrett e de Camilo, a ficção de Eça de Queiroz, a poesia de João de Deus, os sonetos de Antero de Quental, a chamada geração de 70, Cesário Verde, Camilo Pessanha, Sá-Carneiro, Teixeira de Pascoaes, Namora, Maria Judite de Carvalho, Vergílio Ferreira, Almeida Faria, José Saramago… Mas este núcleo permite-nos abrir horizontes e ir adiante – entendendo a genuína expressão brasileira de Machado de Assis e de quantos seguiram um caminho próprio de riqueza incalculável, partindo daí para a compreensão da língua e da literatura da língua comum em África. E as pontes que se vão estabelecendo significam não uma mistura ou uma adaptação, mas um encontro ativo, capaz de produzir realidades outras, como fica demonstrado na capacidade de recriação que encontramos em João Guimarães Rosa ou em Mia Couto.


DUAS LITERATURAS
Eduardo Lourenço, com a intuição conhecida para descobrir o essencial na realidade cultural, afirmou que Cleonice Berardinelli deixou evidenciado, ao longo de cinquenta anos de ensino e investigação, que a mesma língua dá lugar a várias literaturas. Não há, porém, conflito entre as literaturas portuguesa e brasileira (ou as outras), uma vez que têm em comum a mesma língua. As pequenas diferenças entre elas não fazem com que haja uma dissensão nem colisão. E o ensaísta de “Portugal como Destino”, admirador confesso da Mestra, reforça esse entendimento: “a paixão e o saber dessa cultura em comum (do elo que une as nossas únicas margens do atlântico cultural que há séculos une e separa o antigo cantar da galaica raiz e de imemorial futuro) eram – são – uma espécie de segunda natureza da filóloga herdeira do berço comum da latinidade que tem hoje no Brasil o seu espaço de memória mítica”. No fundo, é essa a Ilha que se torna autêntica na oferta de Luciana Stegagno-Picchio e que se revela como a melhor homenagem à coerência de Dona Cleo. Essa Ilha-Brasil contém e engloba uma história antiga que, longe de ser uniformizadora, é distintiva e constitui um verdadeiro desafio à compreensão da pluralidade e à riqueza nas lusofonias. 

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE NUNO JÚDICE

  


A luz de Lisboa


A luz atravessa o quarto entre
as duas janelas, e é sempre a mesma luz, embora
de um lado seja o poente - onde está o sol, agora - e do outro
o nascente - onde o sol já esteve. No quarto
juntam-se poente e nascente, e é esta
luz que confunde o olhar, que não sabe em que
hora se situa a luz primeira. Então, olho a linha
que percorre o espaço entre as duas janelas,
como se não tivesse princípio nem fim; e
o que faço é puxar essa linha para dentro
do quarto, e enrolá-la, como se me
pudesse servir dela para atar as duas extremidades
do dia ao meio-dia, e deixar que o tempo fique
parado entre duas janelas, a poente
e a nascente, até que o fio se volte
a desenrolar, e tudo
recomece.


in A Matéria do Poema, 2008


Lisbon light


The light crossing the room between
the two windows is always the same, although
on one side it’s west - where the sun is now - and on
the other it’s east - where the sun has already been. In the room
west and east meet, and it is this light
that makes my gaze uncertain for not knowing
which hour held the first light. Then I look at the thread
of light stretched between both windows, as if
it had no beginning and no end; and
I start pulling it inwards into
the room, winding it up, as if I could
use it to tie up both ends
of the day into midday, and let the time be
stopped between two windows, west
and east, until the thread
unwinds, and everything
begins all over again.


© Translated by Ana Hudson, 2009
in Poems from the Portuguese 

 

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
OS MEUS SETE PAPAS (I)


1. Agora que isto acalmou um bom bocado, quer em matéria de papas quer em matéria de vigílias, posso dar-me ao luxo de desfiar, nos meus romanizados rosários, contas dos papas da minha vida e de os relembrar um a um, entre arminhos e solidéus, sédias gestatórias ou detidas. Setenta anos, sete papas. Muitos anos? Não há dúvida. Muitos papas? Assim agora não me parece ou me aparece, mas a uma média de dez anos por papa, pode ser que as aparências iludam. Embora eu tenha vivido o terceiro pontificado mais longo de que a Igreja conserva memória (João Paulo II) e um dos pontificados mais curtos dos últimos sete séculos (João Paulo I).


2. A bem dizer, o meu primeiro Papa Papa de mim não foi, embora o dr. Freud, que morreu sete meses e dezasseis dias depois dele, me tenha querido ensinar, sem grande resultado, que foi o Papa de que o meu inconsciente mais ouviu falar. Refiro-me a Pio XI, o Papa Ratti, que reinava em Roma quando eu nasci e morreu, três dias depois de eu fazer quatro anos, a 10 de fevereiro de 1939, aos 81 anos. Aos quatro anos, alguém se lembra de papas? Acreditem-me ou não, se não me lembro dele, lembro-me muito bem (vá-se lá saber porquê) do dia da morte dele. Era à hora de almoço. Eu estava em casa de uns tios postiços que moravam no mesmo prédio do que eu, no segundo andar que ficava por baixo da casa da minha avó. Na casa de jantar, havia uma telefonia, dessas com ponteiro, olho luminoso verde e lãzinha branca a aconchegar os baixos. E foi da dita, ou na dita, que deram a notícia da morte do Papa. Não devo ter prestado atenção, pois o que recordo é a voz acaciana do meu velho tio (com idade para ser meu avô) a dizer-me solenemente: "Morreu o Santo Padre." Talvez tenha ficado confundido com a ideia de os santos morrerem. Talvez não associasse padres a santos, de tanto ouvir dizer que os padres ralhavam. Talvez outra razão qualquer. Mas a morte de Pio XI chegou-me em direto. Mais tarde, já grandinho ou já velhote, o Papa que queria que o futuro o conhecesse como "o Papa da Ação Católica", o papa da Mit Brennender Sorge e da Non Abbiamo Bisogno, o Papa que "tarde, demasiado tarde na vida", descobriu que as ameaças à Igreja não vinham só de um lado, e que as do lado oposto não eram menos fortes, esse Papa, Pio XI, dizia eu, olhei-o sempre com particular afeto. A paz de Cristo no Reino de Cristo. Seis meses depois da morte dele, findo um pontificado de dezassete anos (1922-1939) começou a guerra do diabo.


3. Não me lembro de ninguém me ter dito que a 2 de março desse mesmo ano, ao fim de três escrutínios e no primeiro dia de conclave (coisa que há trezentos anos não acontecia), o cardeal Pocelli, que nesse mesmo dia completava 63 anos, fora eleito e tomara o nome de Pio XII. As minhas primeiras imagens dele, ascético e severo, remontam aos dias em que Roma deixou de ser cidade aberta e houve igrejas bombardeadas. Pio XII deixou então o Vaticano para consolar os feridos e chorar os mortos. Quando a guerra acabou, gregos e troianos louvaram o Pastor Angelicus e a sua ação em favor da paz. Em 1950, ex cathedra, num Ano Santo a que só não fui pela maldição de uma bruxa, proclamou o Dogma da Assunção de Maria e, aos 15 anos, extasiei-me, mais do que me interroguei, com essa solene afirmação da infalibilidade papal, a primeira (e a única) desde os tempos de Pio IX.
Depois, ele foi o Papa dos meus anos de brasa, os anos da Ação Católica. Formei-me com a Divino Afflante Spiritu, que relançou os estudos bíblicos, ou com a Mediator Dei sobre a renovação da liturgia. Morreu, diz-se, ouvindo a Sétima Sinfonia de Beethoven, que amava mais do que as outras e Jorge de Sena dedicou-lhe um belíssimo poema na Fidelidade: "Como de Vós, meu Deus, me fio em tudo / mesmo no mal que consentis que eu faça / por ser-Vos indiferente, ou não ser mal / ou ser convosco um bem que eu não conheço." Foi a 9 de outubro de 1958 e soube da notícia no mesmo dia em que soube que ia ser pai pela primeira vez. Para mim, morrera mais do que o meu primeiro Papa. Morrera o meu único Papa. O Papa por antonomásia.


4. Foi assim com algum escândalo (obviamente, o escândalo admissível num crente então fiel e obediente à Igreja) que, a 28 de outubro, soube que fora eleito Papa o cardeal Roncalli, quase a completar 77 anos, ou seja, muito mais perto das idades com que morreram Pio XI (81) e Pio XII (82) do que das idades com que tinham sido eleitos, em papados sensivelmente com a mesma duração. Um amigo meu deu voz ao que eu sentia: "Os cardeais terão mesmo ouvido o Espírito Santo ao escolherem um Papa de transição?" (era a explicação mais correta para a surpresa da escolha: após dois pontificados longos e fortes, um pontificado breve que servisse para pensar no futuro). A primeira surpresa veio com a escolha do nome de João XXIII, recuperado a um anti-Papa de 1410 a 1415 e que ninguém usara mais desde o século XV. Depois vieram todas, todas as surpresas desse papado inacreditável: a convocação do Concílio, a inauguração do Concílio, a Mater et Magistra a Pacem in Terris. O bom Papa João. Repararam bem quão estranho é chamar bom a um Papa? Mas foi com esse cognome que ele ficou, tão amado pelos não crentes como pelos crentes ou mais ainda pelos primeiros do que por muitos segundos. Vivi, sob ele, os mais exultantes anos do meu catolicismo. Não chegaram a ser cinco. João XXIII morreu a 3 de junho de 1963, aos 81 anos.


5. Já quando Pio XII morreu, eles haviam sido os mais "papabile". Refiro-me aos cardeais Alfredo Ottaviani e Giovanni Montini. O primeiro era chefe do Santo Ofício e acusavam-no de reacionarismo. O segundo, arcebispo de Milão, com fama de homem aberto ao novo e ao moderno. "Cantemos ao Senhor um Cântico novo." Os dois voltaram a ser falados em 1963. O que eu rezei para um Papa chamado Montini! E ele chegou, sob o nome de Paulo VI, a 21 de junho, com 65 anos. Foi um dos dias mais felizes da minha vida e eu tinha apenas 28 anos! E o nome do Papa era o nome do Apóstolo das Gentes.
Poucos meses depois, já se falava de "fundo Roncalli, forma Pacelli", contrastando a rigidez do novo Papa com a bonomia do seu antecessor. Mas o Concílio continuava, começavam as viagens papais (a histórica peregrinação à Terra Santa em janeiro de 1964) e foi a continuidade muito mais que a rutura que eu li na encíclica Ecclesiam Suam de agosto de 1964. Lembro-me que o meu elogio ao texto papal, nas páginas de O Tempo e o Modo, me valeu uma resposta zangada de um amigo ex-católico, então muito mais à esquerda do que eu. Ele, que, agora muito mais à direita, manda para braços anglicanos todos os "protestantes" (mesmo os mais silenciosos) à eleição de Ratzinger, acusava-me então de poetizar e lembrava-me que ao contrário do que dizia o alemão Novalis (compatriota de Ratzinger) o mais poético podia não ser o mais verdadeiro.
Paulo VI na ONU, em 1965. Mas, bruscamente, fez há muito pouco tempo trinta e oito anos, Paulo VI em Fátima, recebido por Salazar. Foi a única vez que vi um Papa. Foi o único Papa que eu vi. Não em Fátima, mas junto ao Mosteiro da Batalha, quando de Fátima ele regressava em carro aberto, olhos imensamente azuis, como nunca até esse dia eu os supusera. Por esses anos, por esses tempos, mudou muito a imagem pretérita de Pio XII, quando os silêncios do Vaticano perante a Alemanha nazi começaram a ser muito falados. Pio XII devia ter falado? Paulo VI devia ter recusado vir a Portugal? Essa questão - ou essas questões - ainda hoje as não resolvi dentro de mim. Se os olharmos como chefes institucionais (e a Igreja é uma instituição), eles defenderam-na como a deviam ter defendido, sem atrevimentos inauditos e sem riscos temerários para a unidade que lhes cabia preservar. Mas se os olharmos como pastores do povo de Deus (e a Igreja é o povo de Deus) por que temeram se o próprio Cristo garantiu a Pedro que as portas do Inferno nunca prevaleceriam contra as da Igreja? E foi no tempo do Papa que eu mais "elegi" que eu cheguei à conclusão que o sumo pontífice não podia ser um modernizador mas um contemporizador, não podia ser uma Antígona mas um Creonte (para recuperar uma imagem antiga). Podia escandalizar intelectuais impacientes como eu, mas não mansos ou feros pobres de espírito. Em 68, com a encíclica Humanae Vitae, Paulo VI enfrentou de peito aberto a revolução sexual nesse ano triunfante. Católicos insurgiram-se por todo o mundo, numa contestação inédita. Quem mudará? Eu, por certo, mudei, nesses últimos dez anos do pontificado de Paulo VI. Octogesima Adveniens? Mas 80 anos depois da Rerum Novarum, onde estavam as coisas novas? Onde estão hoje, em que a Humanae Vitae é menos contestada do que os seus contestatários de 68? Talvez por isso esse Papa seja, na minha memória, o mais amargurado e o mais torturado dos papas da minha vida. Por que é que pensar nele me faz pensar na morte?


6. Estava em casa diante da televisão, quando, em agosto de 1978, pouco depois da morte de Paulo VI, aos 81 anos e com quinze de pontificado, nos foi anunciado novo magnum gaudium. Contra todas as previsões, apareceu-me como Papa João Paulo I, Albino Luciani, patriarca de Veneza (como João XXIII) aos 65 anos. Nunca me esquecerei da alegria - infantil ou angélica - com que surgiu à varanda e com que deu a primeira bênção. Foi o primeiro Papa a usar dois nomes, em dupla homenagem aos seus mais imediatos antecessores. À época escrevia crónicas no Diário de Notícias. E o meu texto sobre a eleição de João Paulo I foi tão delirante que Mário Mesquita (à época diretor do jornal) se espantou com a minha inabalável fé (fé de um ex-católico) no Espírito Santo, que escolhera para Papa o papa do Pinocchio. Depois fui até aos Japões e pensei mais em budistas, à Sylvia Sidney, do que em papas. Já no regresso, no aeroporto de Nova Deli, vindo do Taj-Mahal, folheei um jornal. Numa página interior, em corpo pequeno, falava-se da morte do Papa. "Meu Deus" - pensei eu - "como este jornal é antigo, o Papa já morreu há quase dois meses." Quando li a notícia, percebi. Quem morrera a 28 de setembro, depois de um pontificado de 34 dias, fora esse mesmo João Paulo I, de que eu esperava nem sei bem o quê, mas sei quanto. Nunca acreditei na tese absurda do assassinato. Mas acredito que Deus, às vezes, atravessa muito depressa a vida dos homens. (continua)


por João Bénard da Costa

13 de maio de 2005 in Público

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

  


XCV - MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA


O único Museu da Língua Portuguesa existente, até hoje, está em São Paulo, no Brasil. Embaraçosa a sua ausência em Portugal onde, pela ordem natural das coisas e seu sentido literal (língua portuguesa), faria cabimento que também existisse.


É no Brasil, antiga colónia, que é homenageada, museologicamente, pela primeira vez, em todo o espaço lusófono, da CPLP e a nível mundial, quando é tida, para tantos, como imperialista, colonialista, neocolonialista, xenófoba, racista, homo-hegemónica, que atua em nome da uniformidade, fixando a norma e anulando os dialetos.   


Embora haja quem alegue que Portugal transferiu para a língua, que tem como sua, um sentimento imperial, não se compreende que perdido o império, com a subsequente descolonização, expulsão e independência, se possa falar em “língua do colonizador” ou “neocolonialista”, quando foram os novos países (incluindo os africanos) que, voluntariamente, viram nesse idioma um instrumento de unidade e progresso adequado ao tempo presente, e não uma forma de exclusão e regressão.


Há que ultrapassar desconfianças e suspeitas de que tudo o que vem do ex-colonizador é mau por natureza, cabendo referir, por exemplo, Amílcar Cabral que reconheceu que uma coisa boa que ficou no continente africano foi a língua portuguesa.


Nem Portugal tem atualmente “força imperial “para a impor, pois além da língua ser de quem a fala, é de excluir uma presunção de superioridade do português europeu, dado que o futuro do nosso idioma já é, e será, protagonizado de fora da Europa, essencialmente a partir da América do Sul e de África, com a predominância atual do Brasil, havendo uma espécie de inversão, com o fim do colonialismo, dos antigos “colonizadores” em territórios “colonizados”.   


Quanto ao Brasil não foi pelo facto de, em tempos idos, ter sido colónia que se inibiu de ser pioneiro em homenagear a língua portuguesa, num museu interativo paulista, inaugurado em 2006, reconstruído e concluído em 2019, após um incêndio em 2015, apresentando a sua diversidade, numa viagem por textos escritos, imagens, sons, vídeos, exposições temporárias (algumas de escritores, como Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa e Machado de Assis).


O MLP, aquando da sua reabertura, em 2021, foi agraciado, pelo presidente da república de Portugal, com a primeira medalha da mais recente ordem honorífica portuguesa, a Ordem de Camões, destinada a: “(…) a galardoar serviços relevantes prestados à cultura portuguesa, à sua projeção no mundo, à conservação dos laços dos emigrantes com a mãe-pátria, à promoção da língua portuguesa e à intensificação das relações entre os povos e as comunidades que se exprimem em português”.   


Significativo também, nesta sequência, um texto conjunto do escritor angolano Agualusa e do moçambicano Mia Couto, que sintetiza o porquê e a importância do museu: “Ao mesmo tempo que ia sendo instrumento de dominação colonial, a língua portuguesa era já o avesso disso: componente fundamental na criação de identidades autónomas, no Brasil, em Angola, em Moçambique, em Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau” (a que acrescentaremos Timor-Leste).   


Sugestivo ser em São Paulo a sua localização, urbe com o maior número de falantes de português.


Porquê a sua omissão em Portugal? Ou de monumentos, evocações, sem complexos, deslumbramentos ou sacralizações, mas sim com a dignidade e merecimento que merece? Será que o exemplo tem de vir de “fora”?


24.02.2023
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

O mensageiro

  


Reconhecer o abismo entre o que se diz poder fazer e o que de facto se consegue fazer, é compreender a realidade do poder.

Os incontáveis becos sem saída a que esta situação nos tem levado constantemente, equivale a fazer do Estado uma máscara que não existe, existindo.

Ora, não se duvide que sempre houve quem - no mais profundo e competente esforço -, nunca desistisse de acreditar que fazendo parte de um pacote histórico do atual conceito de civilização, devia à sua alma a prova de que se podia repensar uma nova ideia de política, e estes exemplos, continuam a ter lugar, apesar das dolorosas solidões das lutas nestes graus de empenho.

Na verdade, em prol de algo aparentemente fora do alcance, vão os mensageiros por palavras e obras, demonstrar que se algo tem corrido mal, será pelo hábito de viver o que se vive, em aceitação constante e sem a repelente abstenção do esforço de cada um, em favor de uma sabedoria política que necessariamente implicasse uma ajuda mútua.

Se a cooperação social, o ativismo cívico ou o cuidarmos uns dos outros, fazem parte das características da civilização, então a sua história, se começou a ser escrita, foi de há pouco, e por capítulos geograficamente distantes, o que hostiliza a hospitalidade levedada de os pensar em conjunto.

O mensageiro, creia-se, é uma das descobertas que levou sentido às comunidades morais alargadas.

Da roda do oleiro, à navegação marítima por mares nunca navegados, entre outras invenções, é muito provável que por aí viva a cartilha de algo novo, novo e propício às sociedades humanas, o que nos surpreenderá, pois afinal, podemos lá chegar e vindos de dentro.

 

Teresa Bracinha Vieira

O DESLUMBRAMENTO DA ARTE CRISTÃ EM GOA

  


Regresso sempre com gosto a Goa, cidade que invoca uma história extraordinária, na qual o diálogo de culturas constitui a chave da sua existência e da sua perenidade. A civilização indo-portuguesa não se confunde nem com a cultura portuguesa, nem com a cultura hindu, é uma realidade própria com uma identidade singular. Quando passeio em velha Goa no largo campo que hoje está longe do que foi no seu auge, lembro as longas filas de gente de várias culturas e religiões com extensão de cerca de nove horas de espera para homenagear S. Francisco Xavier, homem santo para cristãos, hindus e muçulmanos. É um caso único que não conheço noutra parte do mundo.


“Quem viu Goa não precisa ver Lisboa”. Assim se dizia no século XVI, perante a maravilhosa cidade do Índico, singular encruzilhada entre o Oriente e o Ocidente. Porto, onde havia “grande trato de muitas mercadorias de todo o Malabar, Chaul e Dabul, do grande reino de Cambaia…”, no dizer do cronista. A memória de Afonso de Albuquerque, de Garcia de Orta, de Camões, de Francisco Xavier ou de Fernão Mendes Pinto, e as tradições ancestrais dos povos do território preenchem a realidade multifacetada de um património cultural singular, que constitui uma identidade própria, complementar das várias referências que lhe deram origem. Assim se compreende como a herança, a memória e a cultura têm características próprias múltiplas que não podem confundir-se com qualquer ilusão unificadora ou autossuficiente. O Museu de Arte Cristã de Goa, criado em 1994, celebrou 29 anos de existência numa cerimónia inolvidável. É um projeto da Arquidiocese de Goa e Damão e a sua constituição deve-se à convergência de vontades entre a Fundação Calouste Gulbenkian e o Indian National Trust for Art and Cultural Heritage de Nova Deli. Apresenta-se a arte indo-portuguesa em todo o seu esplendor, reunindo uma coleção única de Arte Cristã de influência indiana. São cerca de cem obras de arte icónicas, que identificam de modo muito especial uma identidade religiosa própria, abrangendo pinturas, esculturas em madeira e marfim, têxteis, livros, metais preciosos e mobiliário. E não esquecemos o trabalho realizado por Maria Helena Mendes Pinto, de saudosa memória. O Museu encontra-se agora melhorado e enriquecido, como demonstra o magnífico catálogo, coordenado por Natasha Fernandes, com textos do Padre Avinhash Rebelo, Nascimento de Souza, Maria Fernanda Matias, Walter Rossa, Jason Keith Fernandes e Ranjit Hoskote. Como afirmou o Cardeal D. Filipe Neri Ferrão, o projeto de reorganização e de valorização museográfica do Museu de Arte Cristã deveu-se a uma cooperação inédita entre o Ministérios da Cultura da República da Índia e de Portugal e da Fundação Gulbenkian – instituição que acompanhou o Museu ao longo da sua existência, especialmente nos momentos-chave da sua vida e do seu crescimento.


O Museu de Arte Cristã nasceu em Rachol, em Salcete, nas margens do rio Zuari, e aí esteve até 2001, tendo sido transferido para Convento de Santa Mónica, edificação marcante que assume uma posição particular no contexto da arquitetura religiosa de Goa por ter sido o único convento feminino do território. O monumento de grandes dimensões localiza‑se na bela encosta norte do Monte Santo, no lado ocidental de Velha Goa, perto do antigo Convento de Nossa Senhora da Graça, sobranceiro ao Rio Mandovi e à estrada que liga Pangim à velha cidade. A Igreja de Santa Maria, contígua a Santa Mónica, é um exemplo único no panorama da arquitetura religiosa cristã de Goa, como igreja de um convento feminino. O convento impressiona pelas suas dimensões e grandiosidade, tanto mais que é dos poucos de Velha Goa que se mantêm em boa parte intacto. Na sequência da visita do então Presidente Emílio Rui Vilar, em 2005, e da disponibilidade de apoio técnico, a Fundação Gulbenkian elaborou e ofereceu ao Museu, em 2015, o projeto de renovação que incluiu arquitetura, museologia e museografia, seguindo as mais recentes orientações internacionais na matéria. Deu-se assim continuidade a uma cooperação antiga, realizada em nome da salvaguarda de um património cultural de grande valor civilizacional. É um maravilhoso conjunto de peças, avultando o monumental tabernáculo proveniente da Catedral de Nova Goa com a representação de um pelicano que significa o sacrifício de Cristo no Calvário. Cada uma das peças que se apresentam constitui exemplo de um fecundo encontro da arte e da sensibilidade de culturas diferentes, que se completam, numa memória viva e numa síntese de memorável significado. O Cardeal D. Filipe Neri Ferrão não escondeu o seu contentamento perante as obras de arte que exprimem uma fé viva e ancestral, que é sinal de uma cultura genuína e própria que nos encanta.


GOM

ENTREVISTA AO PADRE ANSELMO BORGES

Padre Anselmo Borges: “O segredo da confissão é, para mim, inviolável”

A Igreja tem de se dispor a apoiar financeiramente as vítimas. A prazo, o fim dos seminários e do celibato obrigatório têm de ser equacionados, sugere o padre Anselmo Borges.


Anselmo Borges, padre e professor de Filosofia, é, desde há muito, uma voz crítica de uma Igreja “clericalizada” e mais preocupada com a sua sobrevivência do que em abrir-se à sociedade e à protecção das vítimas. Face ao relatório que, a partir de 512 testemunhos validados, calcula que quase cinco mil crianças tenham sido vítimas de abuso sexual às mãos de clérigos portugueses nos últimos 72 anos, numa estimativa “muito conservadora”, Anselmo Borges não hesita em considerar que chegou a hora de equacionar o fim do celibato dos padres e a abertura às mulheres para lugares de topo na hierarquia da Igreja.


O que se impõe que a Igreja faça com as conclusões do relatório?
Isto foi um sismo na Igreja e, portanto, aquilo que eu espero e desejo ardentemente é que agora haja uma regeneração desde os alicerces, isto é, que voltemos verdadeiramente ao Evangelho. Em concreto, que se peça perdão às vítimas, que haja uma verdadeira reconciliação, que, inclusivamente, e na medida justa, haja uma reparação eventualmente financeira às vítimas que ficaram com a vida destroçada. É fundamental esta reconciliação, reconhecer o mal que foi feito às vítimas. Isto é sempre uma catástrofe, mas neste caso estamos perante um abuso de um poder considerado sacro e divino. As crianças confiavam na Igreja e nos padres, foi uma traição à confiança das vítimas.


O que é que isso implica?

No sentido mais amplo, implica acabar com o celibato e dar verdadeira igualdade às mulheres dentro da Igreja. É urgente acabar com este verdadeiro escândalo da discriminação das mulheres. Penso, aliás, que se houvesse mulheres no topo hierárquico da Igreja esta tragédia não teria tido a amplitude que teve. Portanto, que haja uma verdadeira igualdade entre mulheres e homens, porque a actual discriminação é contra os direitos humanos e sabemos, de resto, que ao longo da história da Igreja já houve mulheres a presidir à eucarística.


E quanto à ponderação do fim do segredo de confissão proposto no relatório?

O segredo da confissão é, para mim, inviolável.


E quanto aos seminários, o que é preciso mudar, atendendo a que foram palco privilegiado dos abusos?

Os seminários são uma criação que vem na continuidade do Concílio de Trento. Eu penso que eles prestaram um serviço, mas que agora têm de ser diferentes. Temos de começar a ordenar homens casados e os candidatos a ministros devem ir à universidade. Repare, o que tem de haver na Igreja não são sacerdotes ordenados, mas ministérios ordenados, que é diferente. Tradicionalmente, as crianças entravam em idades muito precoces no seminário, algumas porque era a maneira de haver uma promoção. E entraram num seminário em que não havia a presença feminina, onde a grande tentação era o sexo. Em muitos casos, isso fez com que houvesse padres com uma sexualidade distorcida, o que foi uma das causas desta tragédia dos abusos. A formação tem de ser diferente e tem de incluir a presença de mulheres, mas, com o tempo, é toda a pastoral que tem de ser revista.


Crê que a Igreja se disponibilizará para apoiar financeiramente pelo menos o tratamento das vítimas?

Na medida do possível. Eventualmente, em vez de se pensar na ostentação em relação à Jornada Mundial da Juventude, pense-se nos mais pobres e nos marginalizados, como foram e são as vítimas, e à semelhança do que fez Jesus. Parece-me claro que, em relação às vítimas, é preciso garantir cuidados psiquiátricos e que a Igreja tem de as apoiar financeiramente.


por Natália Faria in Público | 14 de fevereiro de 2023

CREIO NA IGREJA?


Quando se recita o “Credo” (nele, encontra-se o núcleo da fé cristã), é necessário estar prevenido contra perigos mortais.


Por exemplo, diz-se: “Creio em Deus Pai, em Jesus Cristo, no Espírito Santo”. Em português, também se diz “Creio na Igreja”, como se esta estivesse ao mesmo nível de Deus. Na realidade, não pode ser nem é assim. Aliás, o latim faz a distinção essencial, pois diz: “Credo in Deum...”; porém, não diz “Credo in Ecclesiam”, mas “Credo Ecclesiam”. A diferença essencial está naquele “in”: Creio “em” Deus, que significa: entrego-me confiadamente a Deus, mas não creio “na” Igreja. A diferença aparece também noutras línguas: por exemplo, em francês, distingue-se entre “Je crois en Dieu” e “Je crois à l´Eglise”, em alemão: “Ich glaube an Gott” e “Ich glaube die Kirche”.


Voltando à diferença na formulação latina — “Credo in Deum...”, mas “Credo Ecclesiam” —, o que lá está não é “Creio na Igreja”, mas: em Igreja, como Igreja, isto é, como membro da Igreja enquanto comunidade de todos os baptizados, creio em Deus Pai, em Jesus Cristo, no Espírito Santo, e espero a ressurreição dos mortos e a vida eterna... Como explica no seu Credo o famoso teólogo Hans Küng,  “a Igreja é a ‘assembleia’, a ‘comunidade’ dos que crêem que Jesus é o Cristo, dos que fizeram sua a causa de Jesus e  dela dão testemunho como esperança para todos.”


Como habitualmente se coloca tudo no mesmo plano, dizendo “creio na Igreja”, é fácil interiorizar a ideia de que se acredita na Igreja enquanto instituição, e instituição divina, com todas os enganos e desastres que se sucedem. Aliás, quando, na linguagem comum, a Igreja é publicamente referida, dizendo, por exemplo, “a Igreja diz sobre este tema isto e aquilo...”, pensa-se não na Igreja Povo de Deus, mas na hierarquia, no Papa, no Vaticano, nos cardeais, nos bispos, nos padres...


Ora, Jesus queria a Igreja enquanto Povo de Deus, não uma Igreja instituição de poder e clerical, com duas classes: de um lado, a hierarquia, o clero, que ensina e que manda em nome de Deus, e, do outro, os leigos, os que obedecem. Veja-se o significado da palavra leigo no linguajar comum: sou um “leigo”, com o sentido de incompetente, um ignorante. Ou a expressão referida aos padres, quando lhes é retirado o ministério: “foi reduzido ao estado laical”, com o sentido implícito de ter perdido o privilégio de clérigo. Na Igreja, segundo Jesus, há ou deveria haver uma igualdade radical e, consequentemente, nela deve reinar a fraternidade, a igualdade e a liberdade. Evidentemente, uma vez que há muitos, terá de haver alguma organização, mas a instituição tem de estar ao serviço da Igreja Povo de Deus, e não hipostasiar-se, sacralizar-se, dando a si mesma atributos divinos. Aliás, Jesus disse: “Eu vim não para ser servido mas para servir”. Na Igreja, há serviços, funções, ministérios.


Questão essencial é sempre o clericalismo, como tantas vezes o Papa Francisco tem sublinhado. Repito: clericalismo vem de clero, que implica a ordenação sacerdotal e com ela o poder sacro e o sacerdote como outro Cristo. Jesus tinha dito: “sois todos irmãos”, mas, com a ordenação sacerdotal apareceu, repito, uma Igreja com essas duas classes: clero e leigos. Segundo o Novo Testamento, sacerdote só Jesus e o povo cristão, que é sacerdotal. Assim, dois eminentes teólogos actuais, jesuítas como Francisco, exigem como urgente a necessidade da dessacerdotalização dos ministérios. Jorge Costoad escreveu: “A versão sacerdotal do cristianismo converteu-se  numa expressão patológica do mesmo.” González Faus pede que “desapareça toda a conotação ‘sacerdotal’ no ministério... A rica teologia dos Evangelhos  sobre o pastor, o padre (pai), pode dar perspectivas muito mais cristãs do ministério do  que essa espécie de ‘divinização’ que o termo sacerdote sugere.”


Portanto, o que se passou e passa é que a hierarquia, padres e bispos, sacralizaram-se, atribuindo-se a si mesmos privilégios sacros ao serviço dos quais estaria o próprio celibato. Eles trazem Cristo à Terra na Eucaristia, só eles perdoam os pecados, e formam uma espécie de casta à parte, como diz a própria palavra clero, são ministros, mas ministros sagrados... O padre foi considerado “alter Christus” (outro Cristo). Isso foi de tal modo interiorizado pelo comum dos católicos que há constantemente o perigo da deriva para o clericalismo, como diz o padre Stéphane Joulain, psicoterapeuta: “Considerar que, porque se foi ordenado, se tem direito a uma forma de reverência é um erro, de que alguns não hesitam em abusar... A cultura de um país, a sua história desempenham um papel nisso: nos Estado Unidos, mas também na África, os leigos encontram-se numa grande submissão aos padres. Alguns fiéis, citados no relatório judicial da Pensilvânia, contam que, quando um padre os visitava, era como se o próprio Deus entrasse em casa...”.


Mais: neste contexto, também se entende que o perigo máximo consista em defender e proteger a instituição, mesmo à custa daqueles que verdadeiramente deveriam ser defendidos e protegidos: as crianças e os mais frágeis, no caso dos abusos. O encobrimento para defender a Igreja-instituição no seu poder e prestígio! E foi a tragédia que se conhece.


Perante uma das piores crises da História da Igreja, importa refundá-la, indo ao encontro do Evangelho. É nisso que trabalha afincadamente o Papa Francisco, que não se cansa de repetir que “a Igreja somos nós todos”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 18 de fevereiro de 2023

A VIDA DOS LIVROS

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  De 20 a 26 de fevereiro de 2023

 

António Manuel Couto Viana (1923-2010) comemoraria cem anos e invocamos a pedagogia da cultura popular e a preocupação especial que teve com os mais jovens e com a importância do teatro no ensino. 
 

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PEDAGOGO DA CULTURA POPULAR
 
Celebra-se o centenário de um poeta e homem de teatro, que influenciou decisivamente muitas gerações de jovens nos anos cinquenta e sessenta. António Manuel Couto Viana foi, antes de tudo, um pedagogo da cultura popular portuguesa. Pode dizer-se que foi esse seu papel de ativo educador através da leitura e do teatro que deixou uma marca indelével. Filho de um português e de mãe aragonesa, cultivou sempre as suas raízes galaico portuguesas e minhotas. Poeta, dramaturgo, ensaísta, memorialista e tradutor, fez os seus estudos no seu Minho e em Lisboa. Desde sempre foi um entusiasta do teatro, como a arte que melhor permite ligar a criatividade popular e a necessidade da cultura, tendo recebido de seu avô, com suas irmãs, em herança o Teatro Sá de Miranda de Braga. Cedo começou a colaborar no Teatro Estúdio do Salitre, como ator, cenógrafo e encenador (1948-1950), sendo ainda um dos animadores do Teatro de Ensaio do Monumental (1952), bem como diretor do Teatro do Gerifalto (1956-1960) – onde também estiveram Cecília Guimarães, Henriqueta Maya, Irene Cruz, Rui Mendes e Morais e Castro. Participou na Companhia Nacional de Teatro – Teatro da Trindade (1961-1965). Como ator, encenador e mestre da arte de dizer e de representar, encenou na televisão portuguesa (RTP) espetáculos de teatro e animou conversas e programas, com grande repercussão entre o público de todas as idades, mas especialmente entre os jovens, atraindo uma nova geração de atores e artistas para a arte de Talma. Lecionou no Liceu D. Leonor e foi membro do Conselho de Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian. Estreou-se na escrita em 1948 com o livro de poemas O Avestruz Lírico, muito bem recebido pela crítica. Foi autor de mais de uma centena de obras escritas. 
 
ATIVIDADE INTENSA DE PROMOÇÃO DA CULTURA
 
De 1950 a 1954, dirigiu com David Mourão-Ferreira e Luiz de Macedo as folhas de poesia Távola Redonda, e em 1956-1957 a revista de cultura Graal, participando na revista Tempo Presente em 1959-1961. A sua obra poética procurou reabilitar as tradições líricas populares e um certo culto do passado e da paisagem. Além da poesia e do teatro, dedicou-se à literatura infantil, a partir dos principais autores europeus e dos romanceiros portugueses antigos, estudando-a em ensaios, escrevendo e traduzindo livros destinados aos mais jovens. Dirigiu o Camarada (1949-1951). Uma boa parte da sua atividade teatral como ator, encenador e autor dirigiu-se também aos jovens e às crianças, o que se relaciona com a sua obra poética onde perpassam marcas dos temas dos contos tradicionais. A referência ao Gerifalto, que marcou o mais importante grupo que animou, tem a ver com a simbologia de uma ave semelhante ao falcão, que representava a altivez e a valentia. Couto Viana está representado nas principais antologias de poesia portuguesa, e os seus poemas foram traduzidos para castelhano por Angel Crespo e para inglês por Joan R. Longland. Foi em 1960 premiado com o Prémio de Poesia Luso-Galaica Valle-Inclan, além de um conjunto dos principais galardões relativos à poesia e ao conto. 
 
Um dos seus poemas mais célebres, publicado em “Versos de Caracacá”, intitula-se “A Maçã”, que recordamos: «Na relva cheia de pó, / cai uma maçã pequena / que ao ver-se tão suja e só/começa a chorar de pena. / O galo do catavento, / temendo alguma desgraça, / pára logo o movimento / e pergunta: - O que se passa? / - Quero ver o Mundo! – diz / a maçã, a soluçar. / - O escaravelho é feliz, / pois tem patas para andar! / / De um alto ramo pendente / via o Sol, o Céu, a estrela / com gatos e cães e gente. / Mas, no chão, não vejo nada! / Eu tenho uma rica ideia! / - diz o galo (e bate as asas). / - Dou-te esta noite boleia / para veres gentes e casas. / E assim fez. Voa da igreja, / põe às costas a maçã / que vê tudo o que deseja / até ao romper da manhã. / - Olha outro galo tão lindo, / a voar! – Maçã pateta! – / responde-lhe o galo, rindo. / - Aquilo é uma borboleta! // Olha uma casa amarela! / Desço até ela. Já está! / Espreita pela janela / e diz-me o que vês por lá. / - Vejo uvas numa taça – / diz a maçã. -  Por favor, / chega-te mais à vidraça, / para eu espreitar melhor. / E a maçã pôde, assim, ver, / sobre a toalha engomada, / o garfo, a faca, a colher. / Viu tudo e ficou cansada. // O galo regressou à sua / torre da igreja aldeã / para, aí, contar à Lua / a viagem da maçã. //E a maçã muito contente, / diz, na relva, para consigo: / - Vi o Mundo, finalmente! / E o galo é meu amigo!» 
 
O CULTO DAS TRADIÇÕES
 
Como afirmou um dia sobre o Alto Minho: «A família toda foi uma apaixonada pela sua terra, que é encantadora: meu pai, um etnólogo, um homem que fez o ressurgimento do trajo à lavradeira (aquilo a que se chama «trajo à minhota», mas que é apenas do concelho de Viana do Castelo) e escreveu sobre Viana; minha irmã mais velha também tinha uma grande paixão por Viana e escreveu muito sobre ela e o mesmo com a minha outra irmã... O Luís d’Oliveira Guimarães dizia que o meu pai amava tanto a própria terra que até a usava no nome (Couto Viana). Eu identifico-me com a cidade e tenho recebido dela um carinho e uma admiração muito grandes – recentemente foi edificada a Biblioteca Municipal de Viana, que tem quatro salas: a sala Camões, a sala Fernando Pessoa, a sala José Saramago e a sala Couto Viana; sou cidadão de mérito da cidade; a Câmara Municipal tem publicado muitos livros meus de poesia e ensaio. A cidade tem correspondido ao meu amor”. Esta referência significa que a obra de António Manuel Couto Viana procura ligar, a partir da poesia, a literatura, a língua e a procura da compreensão da cultura como ponto de encontro entre as gerações – numa verdadeira noção de património cultural como realidade viva. Assim, a leitura da sua obra constitui um ensinamento permanente sobre o cadinho complexo e heterogéneo que vai construindo a língua portuguesa – de Camões a Eça de Queiroz, passando por Vieira e Garrett, por Sá de Miranda e Antero, sem esquecer os antigos trovadores, de que o poeta se considerava seguidor. Um pedagogo da cultura popular não poderia ser outra coisa do que um ouvinte fiel das tradições e leitor atento da melhor língua erudita. 
 
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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