ANTOLOGIA
EFEITO DE UM SAKÉ QUENTE…
por Camilo Martins de Oliveira
Camilo Maria esteve no Japão, em duas estadias relativamente longas, mais de dez anos antes de mim. Apanhou um Japão esforçado, a tentar redimir-se do que simultaneamente sentia como o erro e a culpa da guerra que, ao gosto napoleónico (?), as elites militares da era Showa tinham insistido em chamar "pan-asiática". E, mais ainda, um povo que, por educação e tradição, valorizava a comunhão com a sua natureza e os seus antepassados. E, por esse sentimento profundo de pertença e dívida (que é motivo de dádiva), conseguia encher a consciência de brio, isto é, da vontade de bem fazer - ou fazer bem - o que nos é confiado. Reside, neste fundo solidário da alma, a receita secreta, única, de tantos êxitos do Japão. E, no apagamento possível (?) dessa consciência do dever solidário (que é dádiva), na eventualidade de se trocar a comunhão com o nosso sentido de nós e dos outros (que é a responsabilidade), de se "substituir o valor pelo preço", talvez se venha a desenhar a perda dos frutos, pois não há frutos sem árvore. O Japão da era Meiji (1867-1912) é uma força nova no concerto das nações, sai de dois séculos e meio de relações cortadas com o mundo para um deslumbramento na emulação das potências ocidentais... E consegue, logo em 1905, ser a primeira potência asiática a vencer, em guerra, uma potência europeia (o Império Russo). "Moderniza-se", mas rasga a alma. Entre os que insistem na necessidade de ser tão "desenvolvidos" e fortes como os "maiores" (ocidentais) e proceder em tudo como eles (inclusive em pretensões colonizadoras de outros povos), e os que defendem a preservação da alma e do modo nipónico, está o drama de muitos intelectuais e populares que, intuindo a duração e a demora, procuram um equilíbrio naquele momento impossível. A "modernização" comanda a industrialização e urbanização de territórios e pessoas, o enquadramento social e ético tradicional vai perder-se... Finalmente, goradas as expectativas "liberais" da era Taisho (1912-1923), chegará a hora fatídica em que forças reunidas num "complexo militaro-industrial" (que os EUA voltariam a reconhecer, no seu próprio caso, depois da tal guerra), poderão desencadear a barbárie que sabemos. Como Camilo Maria observou, numa das suas cartas à Princesa de..., é comovente e perturbante essa contradição (conflito?) da alma japonesa, entre o "giri" e o "ninjo"… A novela de "O médico e o monstro", de Stevenson, é pós-iluminista e romântica, coloca tudo no âmbito dos sentimentos pessoais, como se a consciência fosse um universo individualista. A consciência japonesa, como aqui falamos dela, está inicialmente dividida, não entre o mal e o bem - como nós moralmente os separamos - mas entre mim e a minha circunstância (terá o grande Ortega sonhado com isto? Ele me perdoe!). Por convenção tradicional, isto é, por uma sistematização da educação que, na oscilação das épocas e dos regimes - e imponentemente desde o século XVII - sempre procurou normalizar as gentes, as classes e comportamentos delas, o "giri" foi condicionante. Camilo Maria definiu-o - e bem - como sendo "a obrigação de se comportar, para com os seus círculos familiares e sociais, de acordo com as normas de reciprocidade, fidelidade e obediência, seja qual for o sacrifício exigido"... Para mim, é admirável, mais do que a obrigação do "giri", o milagre da sobrevivência do "ninjo" que tão bem se expressa nas obras dos artífices e artesãos japoneses. Volto a Camilo Maria: "A arte, o "design" japonês, minha Princesa de mim, distinguem-se por uma intuição da assimetria. Na natureza, tudo é como é, e a arte não tem de a violentar. O olhar do artista contempla, não embeleza. Tenta perceber, no gesto com que desenha ou molda, a essência mutante e permanente das coisas. O Verbo que criou o mundo não é lógico. O logos é inicial, criador e sempre amante. A arte é um caminho de conversão. A obra de arte é o fruto da transformação do amador na cousa amada. Nós, os ocidentais, não resistimos à tentação edénica da pressa em explicar tudo. Por isso reduzimos tudo à nossa imagem e semelhança. Tenho visitado museus e exposições... Mas nada me dá o gosto, sentido na alma, tão livre e enorme, como o de olhar para uma peça rudimentar de cerâmica, bambu ou pano, na tenda de um artesão de Kyoto. Esses homens e mulheres acolhem-me sem pressa nem objetivo, apenas com um sorriso tão discreto que só pode estar na alma, e comigo contemplam o misterioso encontro de mãos humanas com a natureza. E é no reconhecimento desse encontro que reside a alegria e o valor sem preço daquela obra. Só um silêncio comungado pode celebrar esse entendimento íntimo. Assim também te sinto no silêncio infinitamente secreto do coração, quando à noite rezo e dou graças a Deus por sentir tão bem tantas coisas que não sei explicar. Aconchego-me-te neste mistério". Numa folha solta, talvez perdida de um maço de apontamentos sobre o gosto japonês, encontrei este manuscrito do Marquês de Sarolea, onde se fala de um célebre restaurante tradicional de Kyoto, o Waranji-ya, onde também já tive o prazer de um delicado jantar: "Se me pusesse agora a escrever sobre estética japonesa, parece-me que anteporia às minhas considerações um trecho do "Iniei Raisan" (o elogio da sombra) do Junichiro Tanizaki. Ocorreu-me há pouco, enquanto saboreava, em cerâmica do século XVIII, o meu jantar no Waranji-ya. Reza assim: "Quando substituíram a lâmpada elétrica em forma de lanterna por uma candeia ainda mais escura, e pude então observar as travessas e as tijelas à luz vacilante da chama, descobri, nos reflexos das lacas, profundos e espessos como os de um lago, um encanto novo e todo diferente. E soube que se os nossos antepassados tinham descoberto esse unto que tem por nome "laca" e se tinham deixado enfeitiçar pelas cores e o lustro dos utensílios dele revestidos, isso não fora fruto do acaso..." Inspirado, pedi também que, na minha sala, substituíssem a lanterna elétrica pela candeia antiga. E ganhei uma experiência estética nova, até na contemplação da gravura ao gosto chinês, do vaso de barro e do arranjo de flores dispostos no "toko no ma". E lembrei-me do Georges de la Tour, do Menino que alumia, com uma vela segura por sua mão, o S. José carpinteiro que prepara o madeiro da crucifixão... Será, quiçá, efeito do "saké" quente que me ajuda a abrir memórias e, por vezes, as confunde. Sorrio, pensando nessa verdade que Bernanos tão bem disse em "La Joie": Tudo é graça!"
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 16.04.13 neste blogue.