A VIDA DOS LIVROS
De 6 a 12 de fevereiro de 2023
“Requiem, Uma Alucinação” (1992), de Antonio Tabucchi (1943-2012), foi escrito originalmente em português e constitui um exemplo da criatividade de um escritor essencial da contemporaneidade, que esta semana foi homenageado pelo município de Lisboa com a atribuição do seu nome a um jardim na freguesia da Misericórdia, por proposta do Centro Nacional de Cultura.
UM SONHO EM LISBOA
Este “Requiem” tem um especial significado, tendo sido escrito integralmente em português. Suspenso entre a consciência e a inconsciência, entre a realidade e o sonho, a personagem que protagoniza esta alucinação é apresentada ao meio-dia em ponto de uma data precisa, sem que o próprio entenda muito bem porquê, na cidade de Lisboa, deserta e tórrida, num domingo de julho. Ironicamente, ele sabe vagamente que tem algumas tarefas a cumprir – mas sobretudo deve encontrar-se com um ilustre poeta desaparecido que, como qualquer fantasma que se preze, talvez apareça só à meia-noite, hora do mistério e da surpresa. E o protagonista entrega-se aos ditames do acaso, segundo a lógica das associações do inconsciente. Então, dá consigo a seguir um percurso que o leva a reviver o que foi ao longo da vida, a tentar desatar os nós cegos da sua existência passada, que, de facto, nunca conseguiu compreender verdadeiramente. Tabucchi sempre foi um apaixonado do mistério dos sonhos, jogando com o significado das misteriosas aparições de quem teve importância na sua formação e no seu destino. Essas alucinações, errâncias, aparições, regressos e sonhos duram doze horas. É o tempo de uma vida se comprime e se dilata. Passado e presente confundem-se e os vivos encontram-se com os mortos no mesmo plano, como aliás acontece em diversas circunstâncias documentadas na obra do escritor.
ENTRE RAÍZES E DESCOBERTAS
Em “Requiem”, Antonio Tabucchi conta a experiência de uma viagem misteriosa e iniciática. Assim, este livro é um ato de amor relativamente ao país que lhe pertence profundamente por adoção e à língua na qual o romance está escrito, pressupondo uma ligação intensa a uma personalidade multifacetada, que não esquece as raízes, as lições passadas e a descoberta literária de um poeta com várias vidas e personalidades. Foi, aliás, um misterioso poeta que trouxe Tabucchi até à cultura portuguesa e ao mundo dos seus afetos. E se falamos dessa referência, temos de considerar a multiplicação de personalidades que ela comporta. É, de facto, do Engenheiro Álvaro de Campos que falamos, discípulo de Alberto Caeiro, que o poeta ortónimo visita estranhamente, ao lado de outras personalidades consagradas em “Sonhos de Sonhos”, como Dédalo, Ovídio, Apuleio, Cecco Angiolieri, François Villon, Rabelais, Caravaggio, Goya, Coleridge, Leopardi, Collodi, R.L. Stevenson, Rimbaud, Tchekhov, Debussy, Toulouse-Lautrec, Maiakovsky, Garcia Lorca e Freud. Estamos perante um verdadeiro mundo, em que se pode descobrir a complexidade do género humano e os seus mistérios. E “Requiem” é um outro modo de descoberta dessa fantasmagoria criadora, através de pessoas aparentemente comuns que a cidade de Lisboa revela. Aí encontramos: o rapaz drogado, o cauteleiro coxo, o chauffeur de táxi, o criado da Brasileira, a velha cigana, o guarda do cemitério, o escritor polaco Tadeus, o senhor Casimiro, a sua mulher, o porteiro da Pensão Isadora, a Isadora, a Viriata, o Pai Jovem (numa reminiscência perturbadora), o barman do Museu de Arte Antiga, o pintor copiador, o revisor do comboio, a mulher do faroleiro, o maître da Casa do Alentejo, Isabel, o vendedor de histórias, a Mariazinha, o misterioso convidado e o tocador de acordeão. Ah! e não devemos esquecer o gato solitário que passeava entre as primeiras campas dos Prazeres.
UM CONTO DE UM VENDEDOR DE HISTÓRIAS
«Estava realmente uma noite magnífica, de lua cheia, quente e mole, com alguma coisa de sensual e de mágico, na praça quase não havia carros, a cidade estava como que parada, as pessoas deviam ter-se demorado nas praias e só voltariam mais tarde, o Terreiro do Paço estava solitário, um cacilheiro apitou antes de partir, as únicas luzes que se viam no Tejo eram as suas, tudo estava imóvel como num encantamento»… Depois de vários desencontros, num bizarro regateio, o vendedor de histórias consegue convencer o interlocutor de que tem um conto para crianças a trezentos escudos – não era um conto de fadas, mas de um mundo mágico, de uma sereia que trabalhava num circo e que se apaixona por um pescador da Ericeira… E ali no cais das colunas, à beira do Tejo, com o cacilheiro a chegar a sereia talvez viesse mesmo a calhar. A deambulação é rica de encontros e desencontros, de realidade e imaginação, de alucinação e sonambulismo… E quando somos chegados ao fim do cais, há um banco como no começo da conversa, que vai tornar-se o fim da mesma. Então o tocador de acordeão torna-se dispensável. Pode terminar e função. E, como por encanto o Convidado desvanece-se, como tinha aparecido. “Quem sabe se um romance escrito numa língua que não é a nossa não poderá nascer de uma minúscula palavra que, essa sim, é exclusivamente nossa e não pertence a mais ninguém. Às vezes uma sílaba pode conter o universo”.
Guilherme d’Oliveira Martins
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