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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Ma Nuit chez Maud
entre a luz e a escuridão.


“I was concerned above all with exploiting the contrast between black and white, between light and shadow. It’s a film in colour in a way, except that the colours are black and white. There’s a sheet which is white, it's not colourless, it's white in the same way the snow is white, white in the positive way, whereas if I had shot it in colour it wouldn't have been white any more, it would have been smudged, and I wanted it really white.”,  Rohmer, 1971 (Handyside 2013, 8-9)


Os Contos Morais, de Éric Rohmer, é uma série de seis filmes que explora o interesse em descrever o que se passa dentro do pensamento de uma pessoa. A preocupação maior relaciona-se com a narração de estados de espírito, de ideias e de sentimentos. Determinadas emoções, impressões, perceções e sensibilidades são investigadas através de um só ponto de vista - o ponto de vista de um narrador. 


Rohmer explica que esta série de filmes não é o que se espera. O desenrolar da ação destes filmes vai até contra os desejos do próprio narrador e são uma concretização de um conflito. O narrador, omnipresente, cria um mundo para si mesmo, cujo centro é ele próprio. Tudo é perfeitamente lógico, dentro desses princípios em que o narrador é criador e manipulador. Tudo parece muito simples, o narrador é obcecado com uma lógica e toda a sua vida pode ser explicada segundo esse sistema e método por ele construído. 


Em Ma Nuit chez Maud (1969, quarto filme dos Contos Morais) o narrador Jean-Louis vive isolado dentro do tempo e do espaço de Clermont-Ferrand. Ma Nuit chez Maud foi filmado propositadamente a preto e branco, de modo a fornecer uma base e a dar unidade. Segundo Rohmer, a cor não teria acrescentado nada à atmosfera do filme, pelo contrário, poderia até ter introduzido elementos de distorção. Na verdade, Rohmer revela que não havia cores no que foi filmado - as casas da cidade Clermont-Ferrand eram já cinzentas e também não havia cores na igreja. 


“… when the film is in black-and-white you get less of a feeling of the different moments of the day, and there is less of what you might call a tactile impression about it.”, Rohmer, 1971 (Handyside 2013, 10) 


O inverno rigoroso e a neve revelam assim um contraste acentuado entre a luz e a escuridão e determinam a opressão de determinadas ideias e sistemas, num espaço hermético e fechado. Heredero e Santamarina, no livro Éric Rohmer (Cátedra, 1991), escrevem que a neve tem, dentro do filme, um papel fundamental como instrumento de oportunidade e de azar que move as personagens e que propícia encontros e separações: “De hecho, si una nevada es el pretexto para que el ingeniero pase la noche en casa de Maud (la mujer-2), otra nevada le permitirá acompañar a Françoise (la mujer-1) a su domicilio en las afueras de la ciudad.”(Heredero e Santamarina 1991, 140)


Estamos perante um filme espacial. Jean-Louis deseja controlar todos os espaços por onde passa (Rohmer filma a geografia do lugar com precisão e todas as trajetórias são respeitadas). A igreja, a cidade, a neve são elementos impregnados, encerrados e cercados pela perceção do narrador. Jean-Louis persegue Françoise (a rapariga da igreja e da bicicleta) e através do seu ponto de vista apercebemo-nos de que o seu desejo e a sua obsessão é o de controlar o destino de ambos, de modo a assemelhar-se a um acaso - como se de uma graça divina se tratasse. Jean-Louis quer ver sem ser visto, quer ter posse sem se apoderar. O pensamento racional e a coerência interna de Jean-Louis anseiam dominar todos os sentidos e todas as circunstâncias exteriores que o rodeiam. 


Todos os pensamentos, palavras, movimentos e ações de Jean-Louis vêm, deste modo, dessa aspiração de controlo total, desse estado de permanente vigilância e da vontade de ser coerente com os seus princípios. Para evitar a angústia da escolha, Jean-Louis agarra-se a um amor construído. A eleição de Françoise para sua mulher, manifesta por isso a ambição rígida e perseverante, de Jean-Louis, em dominar a direção da sua vida por meio de ideias abstratas - mesmo que isso implique considerar a ideia do acaso apenas para reforçar uma missão moral do destino.


Porém, é, aquilo que está sujeito ao azar, neste caso à meteorologia, que neste filme, funciona como verdadeiro destino, como incontrolável e como indeterminado. Aqui, o imprevisto e o obscuro, tal como em muitos outros filmes de Rohmer, está associado a fenómenos naturais. É por isso, que a casa de Maud está fora da influência premeditada de Jean-Louis. E é precisamente nesses momentos desconhecidos e oferecidos que o narrador entra em conflito consigo próprio e a coerência da sua lógica é derrubada. O final do filme expõe, sobretudo, as fragilidades de um sistema e a desconstrução de uma ilusão.


“Consider the opening shot in which we see Trintignant’s dark silhouette take possession of the landscape by the intensity alone of his gaze (as if he were the reincarnation of Murnau’s great predators, Nosferatu or Mephisto). Or consider all the sequences filmed inside a car, from the point of view of a man who is avidly scouring the city’s streets, seeking - and knowing - someone to devour. At such moments, it is a kind of guilty ambition that Rohmer is staging: the ambition to imprison the real by keeping an eye on all its external signs. The very ambition that he put to work while filming My Night at Maud’s.” (Baecque e Herpe 2014, 232)

 

Ana Ruepp