A VIDA DOS LIVROS
De 27 de fevereiro a 5 de março de 2023
«Genuína Fazendeira – Os Frutíferos Cem Anos de Cleonice Berardinelli» é uma bela recordação da personalidade fascinante desta verdadeira mestra de muitas gerações.
MESTRA DE MUITAS GERAÇÕES
Manuel Bandeira elogiava-lhe a voz bonita e o comentário claro e sábio. E o poeta bem conhecia, desde jovem, Cleonice Berardinelli, não apenas através das considerações sérias e avisadas em matéria literária, mas também das representações de Gil Vicente, cheias de ironia ou de sérios alertas, com voz límpida e expressão viva, animada, rigorosa e compassada. No fundo, para a professora, discípula de Fidelino de Figueiredo, a literatura era muito mais do que uma disciplina científica, fria e desenraizada, mas a expressão humanista dos sentimentos, do pensamento e da ação. Nela a ciência e a cultura fundiam-se, com naturalidade, contribuindo para que a língua como realidade viva fosse expressão fiel da vida humana. O teatro e a literatura completavam-se intimamente e permitiam entender que o idioma e a sua expressão narrativa eram tanto mais ricos quanto se conseguia ir além do formalismo através da melhor comunicação de uns com os outros. E a comunicação torna-se compreensão. Não há literatura repetitiva nem sujeita à inércia e daí que a representação dramática permita compreender melhor os segredos das palavras. Assim aconteceu com Cleonice Berardinelli que é referência fundamental no estudo e conhecimento das culturas da língua portuguesa. E assim a estudiosa compreendeu, melhor que ninguém, que a projeção global do nosso idioma obriga a entender a diversidade e a abertura, num território com muitas raízes e diversas fronteiras.
Luciana Stegagno-Picchio, quando lhe foi pedido que prestasse homenagem a Cleonice Berardinelli, entendeu oferecer-lhe metaforicamente duas ilhas, uma poética e outra cartográfica – uma ilha desconhecida e uma ilha que não há. Uma ilha Utopia e uma ilha Brasil. E se a ideia foi a de ofertar ilhas metafóricas, a razão tinha a ver com o facto de Cleonice, ela mesma, ter sido como que uma ilha no seio da cultura portuguesa na academia brasileira e, na Europa, uma ilha da cultura e da doce fala brasileira no mundo académico português. Assim, no mundo luso-brasileiro, haveria muitas ilhas para oferecer a Dona Cleo – na expressão camoniana, a Ilha dos Amores, na área pessoana, as Ilhas Afortunadas, para a paixão da viajante, a Ilha da Utopia, descoberta, segundo Thomas Morus, pelo português Rafael Hitlodeu, para o mundo da moderna literatura portuguesa uma ilha do Mediterrâneo, em homenagem a Sophia de Mello Breyner, ou a ilha desconhecida para um ilhéu honorário chamado José Saramago… E, invocando, a sua qualidade de italiana, Luciana aventava ainda a hipótese de uma “Ilha não encontrada”, invocando Guido Gozzano. A imaginação poderia chegar a Itaparica ou a Maré, mas a que realmente interessava a Luciana era a referência à Ilha-Brasil. Esta era a “Ilha próxima e remota / que nos ouvidos persiste, / para a vista não existe”, de que fala Fernando Pessoa na “Mensagem”. Já Carlos Drummond de Andrade quando dedicou um extraordinário poema a Cleonice, considerou-a como “genuína fazendeira”, sobretudo em homenagem à imaginada grande ilha, onde se cultiva “a constante maravilha / do linguajar português / tal como sino que soa / no copiar da fazenda / até Fernando Pessoa”.
A BELEZA DA LÍNGUA COMUM
De facto, quando Pêro Vaz de Caminha anunciou, primeiro que todos, a magia que se lhe apresentava, falou de uma Ilha, como se tratasse do achamento de uma parte do Paraíso, inesperadamente encontrado. E quando hoje referimos este mundo plural e diverso onde se cultiva a nossa língua, ao lado de variadas culturas, numa nova representação de Babel, esta Ilha-Brasil significa não um lugar de uniformidade, mas um encontro de mil culturas, e de uma demanda das múltiplas expressões do Outro. De facto, para Cleonice Berardinelli, apenas seria possível compreender a cultura do Brasil indo ao encontro das suas origens – da sua multiplicidade. Daí que esquecer qualquer dessas componentes seria ter um desencontro com a própria complexidade e força de uma cultura. Afinal, seria não compreender a relação com o diverso e o esquecimento da corrente que permite entender o património cultural como uma permanente troca de influências. Se os núcleos preferenciais das atenções de Dona Cleo são, literariamente falando, Gil Vicente, Camões e Pessoa é porque essa é sua linha de atenção, que permite perceber uma parte do linguajar “como sino que soa / no copiar da fazenda”. Temos de ir aos trovadores que começaram a construir este idioma de projeção global, mas não podemos esquecer ainda os sermões de Vieira, o romantismo de Garrett e de Camilo, a ficção de Eça de Queiroz, a poesia de João de Deus, os sonetos de Antero de Quental, a chamada geração de 70, Cesário Verde, Camilo Pessanha, Sá-Carneiro, Teixeira de Pascoaes, Namora, Maria Judite de Carvalho, Vergílio Ferreira, Almeida Faria, José Saramago… Mas este núcleo permite-nos abrir horizontes e ir adiante – entendendo a genuína expressão brasileira de Machado de Assis e de quantos seguiram um caminho próprio de riqueza incalculável, partindo daí para a compreensão da língua e da literatura da língua comum em África. E as pontes que se vão estabelecendo significam não uma mistura ou uma adaptação, mas um encontro ativo, capaz de produzir realidades outras, como fica demonstrado na capacidade de recriação que encontramos em João Guimarães Rosa ou em Mia Couto.
DUAS LITERATURAS
Eduardo Lourenço, com a intuição conhecida para descobrir o essencial na realidade cultural, afirmou que Cleonice Berardinelli deixou evidenciado, ao longo de cinquenta anos de ensino e investigação, que a mesma língua dá lugar a várias literaturas. Não há, porém, conflito entre as literaturas portuguesa e brasileira (ou as outras), uma vez que têm em comum a mesma língua. As pequenas diferenças entre elas não fazem com que haja uma dissensão nem colisão. E o ensaísta de “Portugal como Destino”, admirador confesso da Mestra, reforça esse entendimento: “a paixão e o saber dessa cultura em comum (do elo que une as nossas únicas margens do atlântico cultural que há séculos une e separa o antigo cantar da galaica raiz e de imemorial futuro) eram – são – uma espécie de segunda natureza da filóloga herdeira do berço comum da latinidade que tem hoje no Brasil o seu espaço de memória mítica”. No fundo, é essa a Ilha que se torna autêntica na oferta de Luciana Stegagno-Picchio e que se revela como a melhor homenagem à coerência de Dona Cleo. Essa Ilha-Brasil contém e engloba uma história antiga que, longe de ser uniformizadora, é distintiva e constitui um verdadeiro desafio à compreensão da pluralidade e à riqueza nas lusofonias.
Guilherme d’Oliveira Martins
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