Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE RAQUEL NOBRE GUERRA

  

 

Com Adília, Sophia e um contemporâneo meu
para Miguel-Manso


Quando escrevo apanho e desapanho o cabelo
mas não se vê nada dos traçados de trigo
o vento exprime-se de sensação conchiolina
cruza-me hiperlírica de alheio sentido
estou curta ribeirinha metida entre astros onde anoto
este sonho de plano egoísta, passo à guia
[cavalos persa
de imaginação passo-os a animais livres para dentro
como se o mundo fosse Platão –
apagaram-nos a matéria comburente do paraíso
a abstracção miúda como viris enterrando fundo
e os muros que temos não são nada disso de hortênsias
são silvas lagartos tijolos daqueles que não se pode
subir
esmurrando-os temos a força cega do indício, um país
do outro lado sucedendo à nossa maneira
entramos-lhe de inteiro enrolamo-lo [à escala dos pés
para que nenhuma das imagens dezenas prestes
a este silêncio suba mais que este argumento
trazemos a magreza útil a luz e o gume bem medidos
frutificamos para o veneno certo.


2012, Groto Sato
Mariposa Azual
© Raquel Nobre Guerra


With Adília, Sophia and a contemporary of mine
to Miguel Manso


While writing I tie and loosen my hair
but nothing is visible on the rows of wheat
the wind blows in conchiolin sensations
goes through me in alien hyper-lyrical meanings
a short little stream running among stars where I jot down
this selfish plan of a dream, I give way to the guide
[persian horses
of imagination I turned them into free animals inside
as if the whole world were plato –
the paradise oxidizing matter has been obliterated
the mingy abstractions are like deep burying virilities
and the walls on offer aren’t made of hydrangeas
they’re brambles lizards insurmountable
bricks
as we crack them we hold the blind force of the traces, a country
on the other side happening in our manner
we dive straight into it we role it in [at foot level
so that no image from the dozens ready
for this silence may rise above this argument
we bring up the useful meagreness the well measured light and edge
we fructify for the precise poison.


© Translated by Ana Hudson, 2020
in Poems from the Portuguese

 

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
O GRISÚ E OS CANIBAIS (I)


1. Por maior que seja o meu gosto por efemérides, juro à fé de quem sou que não me apanham a discutir os méritos ou deméritos relativos de Sartre e de Aron. Para esse peditório já dei e até julgo que generosamente. Voltar a ele, a pretexto de centenários, nem com luvas de amianto. Embora não resista a divertir-me com títulos como "o intelectual dos intelectuais" ou "o homem que nunca se enganou". Cala-te boca... Pelo contrário, Júlio Verne puxa-me o pé e puxa-me mesmo por aí acima de qualquer deles. Também é verdade que, no caso dele, se não comemoram berços mas sepulcros, pois que o homem, se fosse vivo, (Aquário como eu, nascido no dia seguinte ao dia dos meus anos) contaria 177 anos bem contados. 77 tinha ele quando morreu, em Amiens, a 24 de março, ainda Sartre nem nascido era e contava Aron apenas dez dias.


2. Antes de me ir à memória, uma divagaçãozinha gramatical sobre mistérios da língua portuguesa. Tal como nunca ninguém me conseguiu explicar porque bulas a proposição a se contrai ou descontrai do artigo dos artigos definidos a ou o em nomes de povoações ou de países, também me é identicamente misteriosa a razão ou razões por que se "aportuguesam" alguns nomes próprios estrangeiros, conservando-se no original a maioria deles. Dou exemplos, para ser claro. Porque é que se diz "ir a Cascais" e "ir ao Barreiro", ou "ir a França" e "ir ao Japão"? Depende das consoantes por que começa o substantivo próprio? Não depende nada, já que igualmente se diz "ir à Finlândia" e "ir a Java", "ir ao Cadaval" ou "ir a Braga". Também nada tem que ver com vogais no início do substantivo. Diz-se "ir à América", mas ninguém diz "ir à Almada", diz-se "ir a Évora" mas nunca ouvi dizer "ir a Estónia". Pura e simplesmente, não há regra ou eu nunca conheci José Pedro Machado que ma explicasse. Mas dá que pensar que digamos todas da mesma maneira ou, quando alguém troque (por exemplo: "ir à Espanha" ou "ir à França") que logo lhe identifiquemos a condição social, já que só o "povo" aglutina assim em vez de assado.


À exceção de alguns puristas, sobretudo do século XIX ou da primeira metade do século XX, não é de bom tom, em português, "aportuguesar" nomes de gente célebre. Não me estou a ouvir, nem estou a ouvir ninguém que conheça, a citar Honorato de Balzac, Henrique Stendhal, Guilherme Shakespeare, Luís de Beethoven, José Verdi, João Bellini, Marcos Rothko ou Frederico Murnau. Mas sei que faço figura de pedante se disser Michelangelo em vez de Miguel Ângelo, Raffaello em vez de Rafael, Victor Hugo (com acento no o de Victor e no o de Hugo) em vez de Victor Hugo, como se estivesse a falar do matemático. Pior ainda (muito pior) se estiver a desfiar nomes de reis. Louis XIV, Henry VIII ou Wilhelm II, não se espera ouvir nem da boca do mais pintado. Por que sim ou por que não quem saiba que mo explique, que eu só sei responder como se responde aos "porquês" das crianças: "por que sim" e está tudo dito sem se dizer nada.


Tanta conversa para quê? Para observar que, além do autor de Les Misérables (e, neste caso, era preferível escrever Os Miseráveis) Júlio Verne é o único escritor do século XIX a que raríssimos portugueses chamam Jules Verne. A imensa popularidade tem que ver com isso, no caso de Hugo como no caso de Verne? É bem possível. Eles foram dos pouquíssimos que foram quase integralmente traduzidos no seu tempo e lidos por portugueses que não sabiam palavra de francês, coisa que no século XIX, e até cerca de 1960, era sinal de incultura grassa. A "sociologia cultural", embora não explique Miguel Ângelo ou Rafael, pode explicar o Júlio Verne, que se pegou aos espíritos cultivados por contágio dos baixíssimos ou dos pré-adolescentes que em tempos idos o liam.


3. Júlio Verne, assim o conheci eu também, entre os meus 8 e os meus 12 anos, mais coisa menos coisa. Em casa dos meus avós, como em casa dos meus pais, havia prateleiras de estantes cheias, com as edições que começaram por ser de David Corazzi, subnominadas "imprensa horas românticas", e passaram depois para a Bertrand (Aillaud e Bertrand), mantendo-se idênticos o formato, a encadernação, o encarnado (às vezes o verde) e as gravuras da capa: uma bananeira com uma serpente enroscada no caule; um leão; um navio naufragado com um vago vulcão ao fundo; e um balão pelos ares. Para além do título da obra, lia-se em maiúsculas itálicas, a quase toda a altura, a expressão Viagens Maravilhosas.


Por uma dessas edições (de 1888 - mas já era a terceira) conto eu trinta e dois volumes já editados nesse ano em português, sendo que vários deles eram duplos ou triplos (A Aventura do Capitão Hatteras, Os Filhos do Capitão Grant, Vinte Mil Léguas Submarinas, A Ilha Mysteriosa, Miguel Strogoff, O Paiz dos Pelles, Heitor Servadac, Um Heroe de Quinze Annos, A Casa a Vapor, Keraban o Cabeçudo, Mathias Sandorf, Norte Contra Sul) e um (As Grandes Viagens e os Grandes Viajantes) era quíntuplo, o que, bem feitas as contas, perfaz quarenta e oito livros, que haviam de chegar aos setenta e dois, à data da morte do escritor. A grafia usada era o esplêndido português anterior ao malfadado acordo de 1911, em que se escrevia A Esphinge dos Gelos e Luctas de Marinheiro, tanto na Rua Garrett em Lisboa como na Rua do Ouvidor no Rio de Janeiro. Esses livros, esse encarnado, essa ortographia, essas figuras da capa, mergulhavam-me em tal êxtase, que me consolava bem de não me deixarem tocar nas luxuosas edições da Hetzel, com gravuras de Neuville, Férat, Laplante ou Doré, que havia em casa do meu Avô Bénard, no original. Numa delas, escreveu o meu Avô a lápis: "Donné par mon père le 27 Juin 1880". Era o dia dos anos dele, 11 no caso em questão, que é o de Vingt Mille Lieues Sous Les Mers, que tivera primeira edição em 1870. Só 71 anos depois, a 1 de maio de 1951, passaram tais livros à minha posse, oferecidos pela minha Avó. O meu Avô leu Verne em 1880, como o meu Pai o leu em 1907 e eu o li em 1945. Três gerações educadas a Verne, mas já não juro pela quarta, pois que, apesar dos meus esforços, em 1970 ou durante essa década, os meus filhos já não devem ter terminado nenhum dos romances dele. Verne durou de 1860 a 1960, pelo menos como "leitura global". Raros serão hoje os maiores de 50 anos que entraram na adolescência guiados pelos filhos do Capitão Grant ou reencontraram o Capitão Nemo na ilha misteriosa. "Chamaste-me Capitão Nemo?" A mim chamou-me (e de que maneira!) naquele escritório da Rua do Jardim do Tabaco, que ficava logo à direita da porta da entrada e onde uma escura livreira de mogno guardava as viagens maravilhosas que me levaram aos pólos e ao equador, à lua e ao fundo dos mares, à estrela do sul e ao centro da terra.


4. Mas a minha introdução a Verne não foi escrita, foi oral. Tinha eu 9 anos e andava no Lar Educativo João de Deus. Uma das netas do poeta, que era minha professora - Maria da Luz de Deus Ramos que, depois de casada, já fora desse tempo, se chamou Maria da Luz Ponces de Carvalho, a Luzinha como então todos lhe chamávamos - ocupava parte da aula da tarde a ler-nos Verne. O primeiro livro que assim nos leu foi As Índias Negras, que se situava nas hulheiras de Aberfoyle, na Escócia de outras eras.


"Pede-se ao engenheiro Jaime Starr o obséquio de se dirigir amanhã às hulheiras de Aberfoyle (...) onde lhe será feita uma comunicação da mais alta importância." Assim começava esse livro. A hulha havia-se esgotado nas minas que foram abandonadas, mas estranhos mistérios ocorriam nas profundezas dela. Após muitas peripécias - e para muito resumir - descobria-se que o antigo capitão da mina ("Overman", chamou-lhe o tradutor), um velho de nome Silfax, que todos julgavam morto, se refugiava nas galerias dela, acompanhado por uma neta e por uma estranha ave, um harfang, tão mais insólito quanto nunca consegui perceber de que espécie de pássaro se tratava. O velho ensandecido procurava uma vingança contra quem lhe roubara o último filão das velhas hulheiras e também o amor da neta. O plano dele era libertar grisú, um gás explosivo, e fazer ir a mina abaixo, com todos os que o haviam roubado. Terrível era a aparição final do velho, no meio de um lago subterrâneo, "de olhar sinistro, barbas alvíssimas, caindo sobre o peito, roupas talares e a cabeça coberta por um capuz". Tinha na mão uma lâmpada de Davy e com ela queria fazer explodir o gás, o grisú. "Oh, grisú, oh grisú... Soou a hora da minha vingança!" No último minuto, dava-se a salvação e a morte de Silfax. Mas, até chegar aí, foram tardes e tardes em que eu nada mais esperava do que saber que mistério escondia a mina e quem era o fantasma que a habitava. O suspense foi demasiado. Precipitei-me para o livro e, nesse mesmo dia, começou a minha compulsiva paixão por Verne, que durou três anos e trinta livros. Começaram também os meus pesadelos com Verne, revendo o velho e o harfang de "penas brancas mosqueadas de pintas negras". Os pesadelos ainda os consegui transmitir. Em carnavais da Serra da Estrela, em casa da Zézinha e do António Alçada, quando a neve caía lá fora, antes de deitar os meus filhos mais velhos (7 e 6 anos à época) eu contei-lhes resumidamente esse extraordinário romance, detendo-me, como a Luzinha fizera comigo, na descrição das tenebrosas galerias da mina, no pássaro sinistro e na aparição do velho com o seu grito de vingança. Imitava o gesto de "horrível imprecação" que Silfax soltou ao ver frustrados os seus intentos. Grito que foi o último que proferiu, pois se precipitou nas águas do lago que não quiseram restituir à sua presa.


As crianças ouviam-me aterradas e, ainda hoje, a minha filha Ana estremece a evocar os pesadelos infantis, provocados pelo grisú, pelo harfang e pelo velho Silfax com a sua barquinha e o seu "riso cavernoso", enquanto se espalhava o cheiro do "hidrogénio protocarbonado". Imaginem que eu lhe tinha contado a história dos canibais da Galera Chancellor! Não conhecem? Esperem até à próxima sexta-feira. Já não têm 7 anos.


por João Bénard da Costa
1 de abril 2005 in Público

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


134. A IMPERFEIÇÃO DA RAPOSA E A PERFEIÇÃO DO OURIÇO


Em “O Ouriço e a Raposa - Ensaio sobre a Visão da História de Tolstói”, escreve Isaiah Berlin:


“O sentido omnipresente dessa estrutura (…) algo “inexorável”, universal, penetrante, não alterável por nós, fora do alcance do nosso poder (…), é o que está na origem do determinismo de Tolstói, e (…) do seu realismo (…). Está “lá” - o sistema, a fundação de tudo - e só o homem sábio tem noção dele (…) Tolstói sabe que a verdade está lá, e não “aqui”: não nas regiões suscetíveis de observação, discriminação, imaginação construtiva, não no poder de perceção microscópica e da análise, (…). Mas Tolstói não a viu cara a cara, porque não tem, faça o que fizer, uma visão do todo; não é, está longe de ser, um ouriço; e o que vê não é o um, mas sempre, com uma minuciosidade sempre crescente, com uma lucidez obsessiva, inescapável, incorruptível, totalmente incisiva que o enlouquece, o muitos”
(sublinhado nosso).   


Embora ansiasse por um princípio explicativo universal, Tolstói não o conseguiu,  sendo mais uma “raposa” que um “ouriço”, apesar de o seu drama consistir em ser naturalmente uma “raposa”, desejando ser um “ouriço”, segundo Berlin.


Tendo em atenção a divisão de IB, de artistas e intelectuais, entre raposas e ouriços, ele próprio é uma “raposa”, porque defensor do pluralismo axiológico, tendo-o como vital e inevitável, como um princípio democrático que possibilita a coexistência pacífica de vários interesses, opiniões e tolerâncias em prol do bem comum, entre valores não reconduzidos a uma única hierarquia, por serem múltiplos e nem sempre compatíveis entre si.     


Esta metáfora canónica e estandardizada de ouriços e raposas - na aparente inocência de que a raposa é dispersa e sem uma visão unificadora, e o ouriço organizado e previsível, só tendo espinhos para se defender - tem consequências a vários níveis, incluindo construções utópicas, sobre que Berlin se pronunciou. 


Para IB, falar de utopia é falarmos de um estado perfeito, onde os valores maiores da existência humana têm a sua máxima expressão, como a liberdade, igualdade, justiça e direitos humanos.


Esse mundo nunca existiu, nem existe, é uma ilusão, não só por razões empíricas e pela imperfeição humana, mas ainda porque são múltiplos e nem sempre compatíveis entre si, sendo inviável uma liberdade, igualdade ou justiça total, apenas alguma, dado que a liberdade plena dos lobos significa a morte dos carneiros e ovelhas.   


Resta ser imperioso escolher, nem sempre fácil e onde há uma perda real, tal como nas nossas vidas não é possível ter tudo, aceitando uns valores, conciliando-os ou excluindo outros. 


Daí que as “raposas” tenham vantagens sobre os “ouriços” ao aceitarem a imperfeição, a diversidade, aceitando a perda, terem afeições livres e interesses vastos, garantindo a maior felicidade possível com esses interesses e afetos, tornando-os objeto de interesse e afeição para outros, agarrando mais de perto a natureza (imperfeita) humana.   


Os ouriços, calculáveis, corretos, cordatos, querendo simplificar questões complexas transformando-as num princípio orientador, numa visão do todo que organiza e unifica tudo o que fazem, procuram impor a perfeição, uma ideia redentora que salva, quais mensageiros, donos, messias ou tiranos da verdade.


O que não exclui, em qualquer caso, maior exigência e a possibilidade de sermos melhores. 


24.03.23
Joaquim M. M. Patrício 

CRÓNICA DA CULTURA

PRIMAVERA
Uma Vida No Nosso Planeta

  


Pensar que a primavera será sempre uma forma de rebelião das cores, um modo de recombinar resistências, é algo que nos conduz a sermos pedrinhas que começando a rolar, iniciam uma avalancha.

Transformar a habitação em edifícios sustentáveis, nomeadamente utilizando fontes renováveis de energia e possibilitando os benefícios dos moradores face às resistências térmicas apuradas, constitui a capacidade de entender o ambiente como um conjunto de flores, cujo significado está contido dentro de tudo o que é vida.

A degradação ambiental patente nos nossos dias, também tem lugar porque ninguém protegeu o desconhecido por razões desconhecidas.

Os hábitos humanos não priorizaram a proteção ambiental e o consumo sustentável.

O homem faz parte integrante da natureza e destruiu-a e destrói-a a ritmos nunca vistos.

A pandemia covid-19 lembrou-nos bem como natureza e humanidade estão ligados.

Também David Attenborough, nos alertou como nos estávamos a tornar cada vez mais tóxicos para o nosso planeta, e hoje, procuramos aqui e além, um manual de sobrevivência que, afinal, só pode residir na lança da proposição “we need to rewild the world”.

Que nos seja retirado o poder de impedir as primaveras e que toda a natureza possa retomar a sua vida.

O futuro radioso terá início na oportunidade que nos dermos enquanto espécie e parte de todas as espécies.


Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Os desenhos de Phyllida Barlow ensinam a cair.


“…when you throw a stone into the water, it finds the quickest way to the bottom of the water. It is the same when Siddhartha has an aim, a goal. Siddhartha does nothing; he waits, he thinks, he fasts, but he goes through the affairs of the world like the stone through water, without doing anything, without bestirring himself; he is drawn and lets himself fall.”, Herman Hesse In Siddhartha


Os desenhos de Phyllida Barlow (1944-2023) revelam o que de mais puro e subtil existe nas suas esculturas monumentais.


Os desenhos de Barlow não são resultado de um progresso, são antes revelação de um processo, de uma transformação que se vai dando. Não são pinturas, porque são consequências de uma ação imediata. São desenhos porque estão muito próximos do pensamento. São imagens excessivamente metódicas, disformes e amorfas. São preparações primárias.


Os seus desenhos são como uma espera - uma espera para que algo de inesperado e de surpreendente aconteça. São uma queda desejada, para que se dê uma metamorfose que faz sentido, num momento fugaz e num instante único. 


“On of the most exciting things, for me, about sculpture, in a way I’m never completely satisfied with what I do (…) There is a sort of humbling process in that relationship with two sort of inevitable sourcers which are doubt and failure (…) The desire to find the unfindable is part of the chase.”, Phyllida Barlow In I am interested in the cycle of damage and repair, Louisiana Channel


Saber demasiado o que se quer encontrar, para obter um determinado resultado preconcebido, pode produzir resultados muito limitados. Por isso, Barlow deixa que os seus desenhos sejam sobretudo contemplações - para que se abram espaços improváveis entre pinceladas e preenchimentos. Estes desenhos são lentas satisfações, onde se decidem matérias, escalas e tamanhos. Correspondem a infinitas possibilidades imaginadas que permitem descobertas acidentais antes de esculpir. 


A realidade vista pela lente da memória e da imaginação é a condição que desencadeia e provoca. A fonte da incerteza e daquilo que não se encontra vem da captação de coisas familiares e reais. Estes desenhos de Barlow são testemunho de memórias, de experiências, dos sentidos, de impressões e de dispersões súbitas. As coisas do mundo são adaptadas e repensadas nos desenhos e o ato de lembrar e de esquecer permite o enriquecimento da transformação.


Os desenhos de Barlow, são entusiasmos permanentes, são um pôr-se em risco continuamente e são vontades em potência. São um meio para se encontrar uma intenção, que acontece aos poucos. Os seus desenhos surgem como um seguimento de uma eterna procura daquilo que quer ser e se quer formar - o encontro com a imagem do objeto desejado nem sempre se dá, porque a imagem do objeto nem sempre quer ser encontrada. Formar é, segundo Barlow, uma luta ininterrupta com aquilo que se quer obter e capturar. É um inevitável estado imparável de insatisfação e humildade. 


Os desenhos de Phyllida Barlow são, por isso, um espaço entre o imaginado e o desejado, entre um começo e um fim, entre a expectativa e a impossibilidade. E talvez até perpetuem estados de comunicação insuficiente, de insatisfação aceite, de produtiva ausência e de expectativa de coisa alguma. 


“But I think that, yes, the object that doesn’t want to be found is a fascinating concept that intrigues me… something that is ever present.”, Phyllida Barlow In I am interested in the cycle of damage and repair, Louisiana Channel


Ana Ruepp

AS DEZ CHAGAS DA IGREJA

  


O padre italiano Antonio Rosmini foi um notável filósofo e teólogo do século XIX, que, perante as transformações que então se operavam, escreveu, por amor à Igreja, em 1832, um livro famoso com o título Delle cinque plaghe della Santa Chiesa (Sobre as cinco chagas da Santa Igreja).


Desgraçadamente, a obra foi condenada e colocada no Index Librorum Prohibitorum (Catálogo dos livros proibidos). Mas, lentamente, a sua memória foi reabilitada e até foi beatificado em 2007 por Bento XVI. Em síntese, quais eram essas chagas? “O distanciamento entre o clero e o povo (na vida e na liturgia — não esquecer que as celebrações litúrgicas eram em latim); a fraca formação do clero, tanto no plano cultural como espiritual; a desunião entre os bispos; a intromissão da política na nomeação dos bispos; a riqueza acumulada pela Igreja”.


Na esteira de Rosmini, o padre espanhol Luis Pose Regueiro, historiador da Igreja,  acaba de publicar em Religión Digital, “as dez chagas da Igreja”. Baseado no essencial do seu texto, deixo aí uma reflexão sobre essas chagas.


1. O tradicionalismo e o individualismo.
Vivemos em tempos de confusão, incerteza, perplexidade, e, neste quadro, há a tentação de “refugiar-se anacronicamente na segurança do antes” — sempre se fez assim — ou então “isolar-se” no que cada um considera o correcto e mais seguro. Ora, o que se impõe é ir ao Evangelho e procurar “um caminho o mais possível comum”, seguindo o velho princípio: “nas coisas necessárias, unidade; nas duvidosas, liberdade; em tudo, caridade.”


2. O clericalismo
. O poder dos padres e dos bispos, do clero, é tantas vezes “excessivo e distanciador”. Contra uma Igreja piramidal,  Francisco não se tem cansado de chamar a atenção para essa “peste” do clericalismo e do carreirismo, que impede uma Igreja verdadeiramente sinodal, que a todos mobilize.


3. As riquezas e bens acumulado
s. “Por vezes ainda se vêem comportamentos economicistas por parte de pastores que sustentam uma espécie de ‘mercado’ de sacramentos.” E eu pergunto: não é um escândalo os cardeais na Cúria, com tudo pago — felizmente, o Papa Francisco acaba de decretar que cardeais e bispos da Cúria devem pagar uma renda pelos apartamentos no Vaticano—, terem um salário entre 4 e 5 mil euros mensais? Também penso que “precisamos de procurar maneiras dignas de austeridade, desprendimento e caridade.”


4. O etnocentrismo
. A Igreja continua demasiado “romanocêntrica”. A mensagem do Evangelho precisa de encarnar nas várias culturas e actualizar a linguagem. Pergunto muitas vezes: o que teria acontecido na nossa compreensão da mensagem cristã, se o cristianismo, no princípio, em vez de ter passado da cultura hebraica para a cultura helénica, tivesse passado para a China ou para a Índia?


5. O machismo
. Jesus, para escândalo de muitos, teve discípulos e discípulas. São Paulo entendeu que “Não há judeu nem grego, escravo nem livre, não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo.” Portanto, também na Igreja não pode haver discriminação das mulheres. O que pode impedi-las de presidir à Eucaristia?


6. O celibato obrigatório
. O celibato como opção livre “é um chamamento digno e admirável, como o de unir-se para formar uma família: um e outro requerem amor, sacrifício e dedicação (não sei qual é mais exigente...). “ Onde está que Jesus exigiu o celibato? Francisco acaba de mostrar abertura à  sua revisão.


7. A visão reducionista da sexualidade
. “A doutrina ‘oficial’ pelo menos já defende que o sexo não é só para a procriação e admite a paternidade/maternidade responsável, mas não admite os métodos anticonceptivos artificiais nem o sexo pré-matrimonial; julgo que, no primeiro caso, se trata de uma incoerência (se se admite a atitude, porque não admitir uma ajuda artificial?) e, no segundo, de uma ingenuidade (não só porque não é cumprível, mas porque desconhece a importância do sexo na comunicação e vida de um casal).”


8. A homofobia
. Já algo se avançou “em relação à visão humilhante da homossexualidade — que não é uma doença nem um capricho —, mas continua a não se aceitar que seja um modo digno de pessoas que se amam em consciência; e creio que isso é o verdadeiramente importante e o que Deus nos pede: que as pessoas amem como sentem em consciência.” Pergunto: o que impede, neste caso, que se lhes dê uma bênção?


9. Os abusos sexuais e o seu encobrimento. Uma infâmia, como aqui tenho escrito desde há muito tempo, os abusos e o seu encobrimento sistémico. Impõe-se cuidar das vítimas, que têm de ocupar o centro, fazer reparação, também financeira, sabendo que é um pecado hediondo, mas também um crime. E fica a necessidade de repensar a formação dos padres, também no domínio afectivo-sexual. E, com a idade com que são ordenados, têm consciência dos compromissos que assumem? E sabem o quê da vida real? Como garantir “tolerância zero”?


10. O ritualismo vazio e a espiritualidade débil
. As celebrações comunitárias devem ser alimento para a vida cristã, também para a prática na vida quotidiana. Mas o que se constata é que de facto se fica num “cumprimento rotineiro e pouco enriquecedor”. E quando se pensa nas homilias...


Concluindo: Se houver a convicção funda da importância da Igreja, cuja missão é levar e entregar, por palavras e obras, a mensagem de Jesus à humanidade de cada tempo, para a vida das pessoas e das sociedades, estas questões não poderão deixar de ser debatidas com “liberdade e audácia”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 18 de março de 2023

A VIDA DOS LIVROS

  

De 20 a 26 de março de 2023


Eduardo Lourenço dirigiu a revista “Finisterra” entre o Inverno de 1989 e o ano em que nos deixou em 2020, recordamos essa experiência.


UM LUGAR DE ENCONTRO
«Finisterra: um sítio onde a História nos colocou como europeus do Sul, prometidos a um futuro nem de nós mesmos suspeitado, lugar de margem, de isolamento, de sonho e de vertigem. Apesar das aparências, num mundo, onde tudo é já centro e circunferência, este lugar que é ainda o nosso, que nos fala antes que nós o falemos como portugueses, é um lugar propício à consideração nua da nossa situação histórica, nacional, europeia, nos finais de um século que conheceu mais metamorfoses que aqueles que nos precederam: Em todo o ‘fim’ está inscrito o aspeto de um ‘começo’. Ou de um eterno recomeço». Assim se exprimiu Eduardo Lourenço, em novembro de 1988, nas vésperas de um ano de mil acontecimentos e de mudanças radicais, no início da revista “Finisterra”, que iria dirigir até à morte, com uma designação própria, apesar da coexistência de uma outra revista de âmbito científico e geográfico, animada por Orlando Ribeiro e seus discípulos. O ensaísta insistiu, porém, especialmente nesse título, uma vez que quis desde o início deixar claro que havia uma simbologia a preservar, que ultrapassava em muito uma lógica meramente topográfica. “Finisterra” significaria, assim, atitude e desafio, compromisso e programa. Tinha a ver com uma atitude, uma vez que chegados onde a terra acaba e o mar começa, haveria que considerar a construção do futuro como obra de vontade e de compreensão da sociedade. Do mesmo modo, significaria considerar um desafio, como exigência de organização social e política, centrada numa obra de cidadania. Relativamente à ideia de compromisso, pressuporia a ligação entre o pensamento e a ação, de maneira que o debate e a reflexão pudessem constituir-se em pedra angular de uma cidadania ativa. E, no tocante ao programa, a referência a “Finisterra”, revelar-se-ia necessária e profética, em nome do pensamento democrático na sociedade portuguesa, fundamento de uma instituição atenta e ativa.


UMA OPÇÃO DE LIBERDADE
Desde 1989 até ao presente, a ideia de um novo “fim da história” deu lugar no mundo à verificação da fragilidade do Estado de direito e a uma preocupante erosão dos direitos fundamentais. Nestes termos, para Eduardo Lourenço, “Finisterra propunha-se ser uma “tribuna de livre discussão de todos os discursos culturais em circulação”. Contudo, a realidade evoluiu de modo surpreendente, na qual a “apoteose do projeto liberal do Ocidente” cedeu lugar a uma estranha ambiguidade em que o elemento liberal se tornou consumista e mercantil, perdendo a prevalência da autonomia individual, dos direitos subjetivos e da coesão social. Quando Carlo Rosselli ou Norberto Bobbio falaram da importância do elemento liberal fizeram-no com a expressão “socialismo liberal”, que associava à justiça distributiva e a igualdade, às tradições da liberdade individual das revoluções inglesa, americana e francesa. Para um pensador como Eduardo Lourenço, contudo, a tradição liberal de Garrett e Herculano, ligava-se naturalmente à dimensão social e crítica da Geração de 1870. E assim a revista “Finisterra” tornou-se um ponto de encontro e um apelo de partida, capaz de pôr o socialismo democrático na ordem do dia. Estávamos longe de suspeitar que o conceito de “democracia iliberal” invadisse o espaço público, num supremo paradoxo, que põe em causa a capacidade emancipadora do primado da lei e da legitimidade democrática. “Finisterra: mais do que sítio particular onde enquanto portugueses devemos enfrentar os desafios de uma História sem sujeito, representa para os homens deste fim de século o espaço propício de uma reflexão de um estilo novo, como foi outrora o do Renascimento. A nossa época não é unicamente, nem essencialmente, a da robótica e da informática, mas a do fim da Terra”. Senão vejamos a chamada quarta revolução industrial – na qual encontramos desde a microinformática e das novas tecnologias de informação e comunicação até aos desafios do aquecimento global, da destruição do meio ambiente, do desenvolvimento sustentável e da procura de energias limpas, passando pela inteligência artificial e pelos avanços no domínio da medicina e da saúde. Mas deparamo-nos ainda com a evolução demográfica, com o envelhecimento da população, com a destruição da biodiversidade – com as desigualdades, com o protecionismo, com a fragmentação, com o desperdício…


«O FIM DA TERRA»
No fundo, “o fim da terra” abrange duas metáforas – a da História, ao chegarmos a uma fronteira do tempo, e a da Cultura, ao abrirmos horizontes de emancipação, de desenvolvimento e de solidariedade. E o ensaísta demonstra a força e a originalidade da designação nestes dois domínios. “Tornou-se um lugar-comum descrever o comportamento das novas gerações como ofuscado pela fosforescência mais ou menos tumultuosa do presente concebido como único tempo de aderência a realidade, jovem humanidade sem memória nem pulsão futurante”. A indiferença e o imediatismo geraram, porém, a prevalência do curto prazo e a desatenção à complexidade. “Um longo rosário de deceções e massacres das utopias mais nobres, de sobra” justificaria a recusa da herança e da memória cultural e histórica. Daí importarem “menos as tradições, mesmo as mais veneráveis, que os atos que lhe dão vida e conteúdo”. Eis, como “Finisterra” correspondia à figuração de objetivos históricos pertinentes. Sem poder considerar as profundas alterações que ocorreriam no ano de 1989, com a queda do muro de Berlim, o fim da guerra fria, o início de um tempo de polaridades difusas e de regresso da fragmentação tribal, Eduardo Lourenço considerava profeticamente um tempo de contradições. E falava em sermos herdeiros de um outro tempo, precisando de interlocutores dispostos “a discutir, a renovar e transfigurar aquilo que por mais digno de ser continuado já não tem os olhos imersos no novo mundo dos homens que abandonaram a Terra para uma viagem sem fim assinalável”. Como o pensador disse em 2000: “uma utopia europeia assumida só é digna de ser vivida como vitória da Europa sobre a Europa, da ficção de si mesma que, consciente ou inconscientemente, tem condicionado o seu destino, contra a sua realidade. Em suma, do triunfo da sua sublime não-identidade sobre os fantasmas da sua alucinada identidade” (A Europa Desencantada, 2001, p. 240). Esta questão é crucial. E, se bem virmos, o ensaísta põe a tónica na projeção de Portugal para fora de si mesmo, segundo uma identidade aberta. E recordamos como as Heterodoxias constituíram a demarcação da autonomia da liberdade individual, a exigência de solidariedade e da justiça e a abertura cosmopolita (“Europa ou o diálogo que nos falta”) – como “convicção de que o real não é apenas a cabeça (de Migdar) mordendo sem hesitações nem a cauda devorada sem resistência, mas o inteiro movimento de morder e ser mordido, a paixão circular da vida por si mesma. O movimento da cabeça devorando com certeza de existir um só caminho, pode receber o nome de ortodoxia, assim como a convicção inversa de não existir caminho algum pode designar-se por Niilismo”. Mas a heterodoxia não seria o contrário da ortodoxia nem do niilismo, mas o movimento constante de os pensar a ambos…     

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE PEDRO TAMEN

  


Annie Besant


Os falsos deuses sentaram-se em redor
Tal como nas mesas de pé-de-galo
foi preciso chegar aos últimos extremos
foi preciso que o ar ardesse de murmúrios
para que o lápis começasse a mover-se
Não há morte dizia
de um lado e outro do papel
Não há morte dizia
de um lado e outro do papel
são as mesmas vozes o trovão
é o mesmo atroando os ouvidos pois
de um lado e outro do papel dizia
não há morte
Morte há porém no papel onde o lápis
soprado se moveu
Só no papel
só no papel mortalha.


in Analogia e Dedos, 2006


Annie Besant


The fake gods sat down in a circle
As if around a three-legged table
it was necessary to reach the last extremes
it was necessary that the air burn in whispers
for the pencil to start moving
There is no death it said
on one side and the other side of the paper
There is no death it said
on one side and the other side of the paper
the voices are the same the thunder
is the same roaring in our ears for
on one side and the other of the paper it said
there is no death
There is death though in the paper where
the muffled pencil moved
Only in the paper
only in the shrouding paper.


© Translated by Ana Hudson, 2010
in Poems from the Portuguese 

 

ANTOLOGIA

  


LEMBRANÇA DO BLOC-NOTES…
por Camilo Martins de Oliveira


"Cumpridas as exéquias da tia Ana Adelaide Eugénia, eis-me em Bordéus, donde seguirei para Paris. Já que por cá passei, aproveito para dar um salto às "landes" e ver "en su sitio" o François (Mauriac). Independentissimamente bravo, quase anarca no exercício da inteligência, simultaneamente cheio e a esvaziar-se da revolta contra si e a sua condição, enorme na sua sinceridade reprimida, maior ainda nesse modo sublime do amor dos outros que é o de não mentir a ninguém. Não falámos de literatura, nem sequer do drama íntimo que é a vivência da fé pela consciência alerta da condição humana. Falámos de Pierre Mendès-France e de um jovem tecnocrata cristão, vindo da JOC e do movimento "La Vie Nouvelle", discípulo político do republicano laico que Mendès é: Jacques Delors. A admiração de Mauriac por Mendès-France é patente. Lembras-te do que ele proclamou depois da sua derrota política em 1958? "O nosso Pierre Mendès-France não precisa da tribuna parlamentar para nos dizer a verdade: esse nobre destino continua. Saúdo-o aqui com admiração, afeto e respeito". O republicano laico, descendente de judeus portugueses, aliás cristãos novos já miscigenados de cristãos velhos, contou, desde junho de 1954, com o apoio caloroso do Nobel da Literatura, filho fiel da burguesia católica das "landes", discípulo de Barrès e do catolicismo social: "Desejo apaixonadamente que Pierre Mendès-France reponha este velho país a flutuar. É preciso que este governo dure o tempo necessário à salvação da nação. Trazemos debaixo de olho aqueles que juraram a sua perdição...". Escolhido pelo presidente René Coty para substituir, em Matignon, o primeiro-ministro Laniel, cujo governo caíra um mês depois do desastre de Dien Bien Phu, Mendès vai procurar desenvolver um socialismo humanista, com uma política financeira de inspiração keynesiana, ainda que com algumas correções, aliás já expostas no seu "La science économique et l´action". A esse respeito, Jacques Delors comentaria mais tarde: "Nunca devemos esquecer que ele não era simplesmente um economista, nem simplesmente um homem cheio de ideal, nem simplesmente um homem preocupado com a eficácia, mas esses três ao mesmo tempo..." A experiência foi-se abortando com o clima político da 4ª República, e terminou com o regresso vitorioso de De Gaulle em 1958. Curiosamente, o François mostrou-me esta tarde o que escrevera no Figaro Littéraire de 29 de dezembro de 1966: "Digo a esses amigos de Pierre Mendès-France (PMF): o que sempre pensei e continuo a pensar é que a conjunção de PMF e de De Gaulle teria sido a coisa mais feliz que poderia ter acontecido à nação. A impossibilidade disso está inscrita na própria natureza de PMF, nessa inflexibilidade que faz a grandeza dele, mas que também fez o seu destino e o condenou a não servir - a não ser por uma ação toda espiritual. Contudo, PMF está muito mais próximo de De Gaulle, serei até tentado a dizer que infinitamente mais próximo, do que de Mitterrand, de Guy Mollet ou dos chefes comunistas. De Gaulle e Mendès, cada um de seu lado, fizeram da França uma ideia que, no fundo, e seja o que for que disto pensem, é a mesma: uma França independente no século e nos céus, e senhora de independência e liberdade para todos os povos..." Facto é que "wishfull thinking" não leva a nada: em democracia, os líderes carismáticos são meteoros, porque ela, como a praticamos, é uma forma revista do feudalismo antigo, no que tinha de mais pernicioso. Ao sentido moral, esse que aponta para o bem da pátria e conduz à procura do interesse geral, sobretudo dos mais necessitados, sobrepõe-se a ganância dos grupos de interesses e das suas forças organizadas em partidos, sindicatos, clubes e manifestações... O mal que deitará a perder a nossa civilização é essa miopia do ganho material. Não percebermos que o apregoado crescimento do PIB não é desenvolvimento económico e social, pois este se deverá construir conscientemente pela participação de todos no esforço comum e nos rendimentos provenientes. As nossas democracias sociais são um adiamento da consciência moral, uma simbiose entre a ganância avara do capital e a ganância reivindicativa e invejosa do sindicalismo. Ora isso não é um projeto social. Não é um humanismo, pois este só se orienta por valores que sejam objetivos definidos pela consciência de que o homem é, necessariamente, um ser em relação com os outros. Não sei se as doutrinas que por aí se ensinam e divulgam podem servir. Penso que não poderemos prescindir do sentido do outro e do diálogo. Admiro a pugnacidade do François, e a sinceridade da sua fé cristã. O desassombro com que desafia o que, para um burguês instalado, são bens já adquiridos. Mas parece-me ouvi-lo dizer, parafraseando Flaubert: "Thérèse Desqueyroux c´est moi"... A noite está calma e tão quieta que só mexe o tremeluzir das estrelas. Longe estão, e nós tão longe delas. Recordo, contigo no coração, aqueles serões tropicais, no imenso terraço aberto ao infinito percetível dos céus da casa da tua irmã, em que o nosso Alberto, acompanhado pelas guitarras do Nobre e do Videira - que com ele tinham sido rapazes idealistas em Coimbra - cantava: "Ó estrelinha do norte, espera por mim, que eu já vou! Alumia o meu caminho, já que o luar me enganou!" Lembras-te? Porque será que, com o avançar da idade, a mesma estrela nos chama? Mas vemo-la melhor, talvez, cerrando mansamente os olhos..." Trinta anos depois da morte de Camilo Maria, li numa biografia francesa de Pierre Mendès-France, que o genealogista português Bivar Guerra situara a origem do apelido no doutor Luís Mendes da Franca, filho de Pedro Mendes Ribeiro e de Isabel da Franca. Foi o Dr. Luís oficial do Santo Ofício... E teria sido Francisco, seu filho natural e ourives de ofício que, ao casar-se, no sec. XVI, com Antónia Freire, de reconhecida origem marrana, determinou o exílio de sua família e, em França, o passo de Mendes da Franca para Mendès-France. Si non e vero e bene trovato... Mas a consciência da sua condição de judeu, meio século depois de Dreyfus, e em tempo de holocausto, nunca largou Pierre Mendès-France.


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 03.05.13 neste blogue.

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


133. O OURIÇO MONISTA E A RAPOSA PLURALISTA


Arquílico, antigo poeta grego, escreveu: “A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe apenas uma grande coisa”, metáfora que abre o livro “O Ouriço e a Raposa - Ensaio sobre a Visão da História de Tolstói”, de Isaiah Berlin.   


Impactante pela sua simplicidade, eficácia e representação, há várias interpretações sobre o seu significado, indiciando-se que agarra mais de perto o seu fim a de que a raposa, apesar de toda a astúcia, malícia e manhas, desiste de ferir e trespassar o ouriço, pelo único e definitivo recurso de defesa que ele tem: os espinhos.


Em sentido figurado, divide-se os humanos entre ouriços e raposas: os primeiros, de ideias centrípetas, são associados a uma visão central e única, a um só princípio organizador universal, procurando explicar a diversidade do mundo por referência a um sistema monista, a partir do qual se compreende, pensa e sente; os segundos, de ideias centrífugas, pensamento difuso e disperso, são pluralistas, sabem que há vários fins, nem sempre compatíveis entre si, apreendendo-se a essência de uma heterogeneidade de experiências e objetos, sem se determinarem por uma visão dominante e essencial, onde a variedade do mundo não valida um só sistema explicativo.


Esta categorização ampla de uma procura de saberes abrangentes e uma visão global do mundo (raposas), de uma grande coisa que dê unidade formal à nossa realidade para nos reconciliarmos com o universo (ouriços), mesmo que redutora e simplista, se bem contextualizada, pode servir de guia e meio instrumental a nível ideológico, político, empresarial, intelectual e outros.


Para Isaiah Berlin, por exemplo, são “ouriços” Platão, Dante, Pascal, Hegel, Dostoévski, Marx, Nietzsche, Ibsen e Proust. Heródoto, Aristóteles, Shakespeare, Montaigne, Erasmo, Molière, Goethe, Púchkin, Balzac e Joyce são “raposas”. 


Entre nós, referimos o padre António Vieira, Antero de Quental e Teixeira de Pascoaes como “ouriços”, Eça de Queirós, Fernando Pessoa e Eduardo Lourenço como “raposas”.


Ao dividir os intelectuais entre ouriços e raposas, acabou por criar dois tipos de personalidade distintivos presentes na história intelectual do Ocidente, que pode ser extensiva e adaptada a outras grupos, como a separação entre platónicos e aristotélicos, autocracia, ditadura, totalitarismo e democracia, pluralismo, liberalismo, especialistas e generalistas, tudo indiciando encaminhar-se, perante esta dicotomia, que uma liderança financeira ou empresarial de sucesso cabe preferencialmente aos “ouriços”. 


Também há os que são naturalmente raposas e acreditam ser ouriços, e o inverso, exemplificando-o Isaiah Berlin com Tolstói que, segundo ele, foi “por natureza uma raposa, mas por convicção um ouriço”.   


Quem é mais feliz?


Em face das consequências de um pensar aparentemente inócuo, há que viver, interrogando-nos e conciliando-nos, o que será tema vindouro.


17.03.23
Joaquim M. M. Patrício

Pág. 1/3