Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
“Enquanto vivo esta vida, como poderia suportar deixá-la? Tenho ainda, sinto, tanto para fazer. Sinto sempre que vivi tão pouco. Isto deixa-me pensativo, mas não triste, e foi destes pensamentos que surgiu Ikiru”.
Palavras do cineasta e realizador japonês Akira Kurosava, sobre o seu filme “Viver - Ikiru”, uma reflexão sobre a vida, a existência humana e o seu sentido, tendo como protagonista um funcionário público, em fim de carreira, vivendo de modo vazio e burocrata o seu trabalho, numa secretária de papéis e canetas, cujo serviço, no decurso de décadas, é de mera rotina, até ao dia em lhe é diagnosticado um cancro do estômago, alterando-lhe a perspetiva da sua vivência.
Baseado nesta película, surge o mais recente “Viver - Living”, realizado pelo britânico Oliver Hermanus, sobre um funcionário que abraça e vive em pleno a burocracia, imerso em papelada no escritório surgindo, entretanto, uma doença fatal que o move a fazer uma retrospetiva do seu viver, tentando alcançar a satisfação e chegar à redenção nos poucos meses que lhe restam.
Começa a “viver” numa entrega aos prazeres fáceis, que o levam a uma autodestruição e a descartá-los como solução, acabando por ter uma revelação ao decidir deixar um legado para as gerações vindouras: a construção de um parque público para crianças, valendo-se do seu percurso profissional e saber acumulado, ultrapassando burocracias de que fez o culto e o enterravam no seu labor diário, dotado de uma energia vitalizante que o compensou, ajudando-o a compreender o significado da vida.
A mensagem geral de “Viver” universaliza-se agarrando a vida e dando-lhe um sentido, antes que fuja, porque insuficiente ter um bom emprego e rendimento, uma família feliz e filhos que dão continuidade ao nome, o que não recompensou, na velhice, o intérprete principal, já viúvo, voando o filho para a sua própria vida, ficando sozinho e piorando, sentindo-se irrealizado pessoalmente.
Não chega acumularmos trabalho, riqueza e títulos, há que encontrar um equilíbrio entre o mero viver e deixar algum legado, a “nossa intemporalidade” transposta para a “intemporalidade da condição humana”, com a convicção de nada ser mais destruidor de vidas humanas que a ideia fanática de sermos perfeitos, “magníficos” e “sublimes” a fixarmo-nos numa única coisa, em “sabermos” apenas uma coisa muito importante (como o “ouriço”), dado sermos imperfeitos e mais fãs da diversidade e dos valores mais prezados da nossa existência, vários e nem sempre compatíveis, “sabendo” muitas coisas (como a “raposa”).
Os filmes a carvão de William Kentridge são um campo privilegiado para captar a transformação da consciência.
“He saw that the water continually flowed and flowed and yet it was always there; it was always the same and yet every moment it was new.”, Herman Hesse In Siddhartha
Os filmes a carvão de William Kentridge (1955) são um campo privilegiado para captar a transformação da consciência. Através do carvão, Kentridge consegue esculpir as várias imagens que se vão formando no pensamento à medida que um desenho se inicia. E é o carvão que permite que o imprevisto aconteça. Os desenhos que sobrevêm uns atrás dos outros não obedecem a nenhum plano prévio. Por isso, as sequências fotografadas tomam rumos inesperados e são o puro espelho de uma multitude de reflexões, ideias, emoções, ações, impressōes e memórias que se vão dando num determinado momento.
O desenho aparece aqui como um rio que não pára de correr. É como uma força em forma de sintonia com o tempo e o espaço, sempre presente e constante, mas sempre em permanente mudança. O desenho que se transforma, é uma interação mas também ao mesmo tempo uma reflexão acerca do mundo interior e exterior.
Kentridge explica que existem uma ou duas imagens chave no início de cada sequência e é sobre essas que a imagem em movimento se vai desenhando e descobrindo. No total, talvez 20 ou 30 desenhos sejam feitos para cada filme, mas cada desenho é sucessivamente apagado e redesenhado vezes sem conta. No final há um papel sujo e borrado, mas que contém o rastro de tudo o que aconteceu no desenho enquanto ele está sendo filmado. Cada desenho é uma acumulação do tempo, do espaço, das ações, das ideias e das narrativas que estão congeladas dentro da câmara.
O papel sobre o qual se desenha está pendurado numa parede do estúdio. Na parede oposta encontra-se a câmara. Kentridge nunca vê o que está a ser fotografado. Kentridge só consegue ter acesso ao momento presente, aquilo que está a ser desenhado, num espaço pequeníssimo de tempo. E é entre o desenho e a câmara que novas ideias surgem e se desenvolvem. Por isso, a câmara grava não só a transformação de um desenho mas também é a testemunha do processo físico e do ato de fazer. O ritmo do desenho é, pois, determinado pela distância e pelos passos que separam o papel da câmara (Kentridge descreve os seus passos no estúdio como sendo equivalentes às ideias que circulam na sua cabeça). A mesma mão que risca e apaga com o carvão, tem de recuar para apertar com a maior desejada frequência o botão da máquina fotográfica. Deste modo, Kentridge permite que o movimento do corpo faça emergir o fluir do pensamento e que este se fixe para sempre.
Os filmes de Kentridge têm a capacidade de perpetuar e conter todos os pensamentos nublados, entrelaçados, emaranhados, entretecidos e misturados que o carvão vai moldando no papel. Quanto mais Kentridge fotografa mais detalhe gravará o filme e mais compreensível será essa simultaneidade. O processo incessante e imparável da transformação de um desenho ficará assim, para sempre, a pertencer a uma unidade.
“He had often heard all this before, all this numerous voices in the river, but today they sounded different. He could no longer distinguish the different voices - the merry voice from the weeping voice, the childish voice from the manly voice. They all belonged to each other: the lament of those who yearn, the laughter of the wise, the cry of indignation and groan of the dying. They were all interwoven, interlocked, entwined in a thousand ways. And all the voices, all the goals, all the yearnings, all the sorrows, all the pleasures, all the good and evil, all of them together what is the world. All of them together was the stream of events, the music of life.”, Herman Hesse In Siddhartha
1. O que é a Bíblia? A palavra deriva do grego, com o significado de «os livros». Em latim, e, por derivação, em português, o termo grego transformou-se num singular feminino — Bíblia —, designando o conjunto dos textos que formam o que também se chama a Sagrada Escritura. Abrange, na sua totalidade, o Antigo Testamento e o Novo Testamento, contendo 73 livros e constituindo, portanto, uma pequena biblioteca. A sua formação e redacção demorou mais de mil anos. É necessário ter isso em conta, pois não é um livro como o entendemos agora, escrito por um autor e num determinado tempo. Trata-se de uma obra de numerosos autores, muitos até desconhecidos, e alguns dos escritos são inclusivamente o resultado da compilação de tradições e textos anteriores.
Daqui conclui-se que, para a compreensão adequada da Bíblia, se impõe conhecer a história dos textos, as línguas, os lugares, os tempos, os géneros literários, os contextos em que apareceram e os destinatários a que se dirigiam. Decisivo é entender também a configuração final, pois foi enquanto totalidade e unidade que a comunidade cristã a recebeu como expressão e testemunho da sua fé. Neste sentido, a linha essencial da sua compreensão é a libertação e salvação plena de todos os homens e mulheres. Na Bíblia, encontram os crentes quem é Deus para a humanidade e o que é e representa a humanidade para Deus enquanto salvador e doador de sentido e sentido final para a existência humana, para o mundo e para a história. A Bíblia é a leitura da história do mundo e da humanidade à luz do desígnio salvador de Deus. Assim, o fio condutor da sua leitura e interpretação tem de ser sempre a liberdade, a humanização, a felicidade, a libertação e salvação plena de todos. Só a esta luz a Bíblia é verdadeira, de tal modo que o que nela se encontra de menos humano ou até de desumano é para dizer-nos o que Deus não é e o que o ser humano não deve ser.
A Bíblia é o livro mais traduzido e mais lido da História: no ano 2003, havia tradução, na totalidade ou em parte, para 2303 línguas e já se contavam 555 milhões de exemplares em todo o mundo. É também a obra mais estudada, havendo mesmo centros de investigação universitária com a finalidade exclusiva do seu estudo.
A Bíblia é, antes de mais, o livro de importância essencial para os crentes cristãos, pois nela encontram o núcleo da sua fé. Ao longo dos séculos, serviu de alimento espiritual, de esperança, de orientação, para a vida e para a morte, a um sem-número de homens e mulheres: judeus, cristãos e também não crentes. Ela é igualmente de valor fundamental no quadro da cultura. Porquê? Sem ela, não é possível compreender a história da cultura mundial, mas sobretudo a história da humanidade europeia. Dizia o filósofo Ernst Bloch, com quem tive o privilégio de conversar: sem o conhecimento da Bíblia, não podemos compreender muitas revoluções, que tiveram na sua base o messianismo e a proclamação da chegada do Reino de Deus, não podemos compreender as catedrais, o gótico, a Idade Média, Dante, Rembrandt, Haendel, Bach, Beethoven, a grande literatura, a grande pintura, a grande escultura, a grande música, os Requiem, a grande filosofia, «absolutamente nada».
Impõe-se, pois, pôr termo ao desconhecimento da Bíblia, já que esse desconhecimento constitui uma «situação insustentável», concluía Bloch, filósofo ateu e, ao mesmo tempo, religioso: “onde há esperança há religião”…
Da Bíblia também disse Heinrich Heine: “Que livro! Grande e extenso como o mundo, enraizado nos abismos da criação e erguendo-se para os mistérios azuis do céu… Nascer do Sol e pôr do Sol, promessa e realização, nascimento e morte, o drama todo da humanidade: está tudo neste livro. É o livro dos livros, Bíblia.”
E Lídia Jorge: “A Bíblia é o poema colectivo mais longo criado até agora pela humanidade. Nele se espelham as várias batalhas que os homens engendram na sua demanda pelo amor absoluto. Não admira que a literatura ocidental nele tenha encontrado os seus modelos de narração amorosa mais fortes e que os seus mitos continuem a servir de moldura para o pensamento em torno da liberdade e da paz.”
2. Como disse, é essencial saber lê-la, exige-se uma leitura histórico-crítica, pois, à letra, pode levar a desastres. Por exemplo, o livro do Génesis, quando se refere à criação do mundo e ao primeiro pecado, não pode ser tomado como se se tratasse de uma história, pois é de um mito que se trata. Foi porque se tomou à letra que a mulher ao longo da História foi vista como inferior, pois foi criada em segundo lugar e na dependência do homem e é a tentadora. E como é possível, hoje, à luz da evolução, pretender basear a doutrina do pecado original no pecado de Adão e Eva? E como não ler, aterrados, a ordem de Deus a Abraão para lhe sacrificar o filho Isaac? “Deus pôs Abraão à prova e chamou-o: ‘Abraão!’ Ele respondeu ‘Aqui estou’. Deus disse: ‘Pega no teu filho, no teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à região de Moriá, onde o oferecerás em holocausto num dos montes que eu te indicar’(…) Abraão construiu um altar, dispôs a lenha, atou Isaac, seu filho, e colocou-o sobre o altar, por cima da lenha.” Embora tenha sido substituído por um carneiro, Isaac não se terá tornado ateu? Como aceitar à letra o Antigo Testamento na sua sequência de horrores e de guerras? E o Novo Testamento, quando discrimina a mulher? Apenas exemplos.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 25 de março de 2023
Maria de Lourdes Belchior (1923-1998) é uma referência da cultura portuguesa contemporânea, cujo centenário este ano se assinala, merecendo uma atenta recordação.
EXPLICAÇÃO DE PORTUGAL
«Teremos nós consciência de que toda a explicação de Portugal visa à construção do país possível? Para tal, segundo o conselho não amargo de Vitorino Magalhães Godinho, estudemos amorosamente, minuciosamente, lucidamente, cientificamente as nossas coisas; definamos com meridiana clareza os problemas que são de facto os nossos, seguros de que na nossa história do passado há doutrina para o presente. (…) E o país possível – título de um livro de poemas de Ruy Belo – será “O portugal futuro”: “O portugal futuro é um país / onde o puro pássaro é possível». É Maria de Lourdes Belchior quem o afirma, demarcando-se das tentativas de nos vermos ou como os melhores, ou como um país sem remédio. Ora, seguindo Eduardo Lourenço, importaria tirar as sucessivas máscaras que temos afivelado para enfim conhecermos o nosso rosto verdadeiro. Neste ano de 2023, em que celebramos também o centenário de Maria de Lourdes Belchior, importa lembrar o método proposto por quem se empenhou no estudo aprofundado e sistemático sobre momentos cruciais da nossa literatura, permitindo aproximarmo-nos desse rosto, que tanto temos procurado. Não por acaso, os séculos XVI e XVII constituem circunstâncias especiais para essa indagação, uma vez que, com energias aparentemente esgotadas, houve que recuperar forças com apelo à criatividade.
INVESTIGAÇÃO E SERVIÇO PÚBLICO
Merece atenção redobrada o exemplo de Maria de Lourdes Belchior, surpreendente pela capacidade de interpretar a literatura com um novo olhar, inteligência, abertura de espírito e capacidade de compreender a realidade cultural, para além da superfície. Licenciada em Filologia Românica, em 1946, com a dissertação Da Poesia de Frei Agostinho da Cruz - Tentativa de Análise Estilística, viria a ser colega de Sebastião da Gama, na Escola Veiga Beirão, tendo em 1947 assumido funções docentes na sua Faculdade de Letras, onde obteve o doutoramento em 1953, após ter estado no Instituto Católico de Paris (1950-52), com a tese muito celebrada sobre Frei António das Chagas - Um Homem e um Estilo do Século XVII. Profundamente conhecedora da transição setecentista apresentaria, em 1959, o Itinerário Poético de Rodrigues Lobo no concurso para professora extraordinária. Se o tema da espiritualidade no percurso da autora é evidente, o mesmo liga-se à nossa situação em seiscentos, na qual uma Corte de Aldeia ganhava a aspiração de se libertar. Investigadora incansável, partiu para o Brasil em 1963 para desempenhar funções de Conselheira Cultural da Embaixada de Portugal, até 1966, aproveitando esse tempo para melhor compreender o barroquismo e para aprofundar a cooperação científica, pedagógica e cultural entre os dois países. E é notável na mulher de cultura essa capacidade de ligar a investigação e o serviço público. Concorre a uma vaga de Professora Catedrática da Universidade do Porto, assegurando a lecionação da cadeira de Literatura Portuguesa I (Idade Média), apoiando o Centro Interuniversitário de História da Espiritualidade. Entre 1970 e 1973 preside ao Instituto de Alta Cultura e participa no núcleo fundador da Universidade Nova de Lisboa. Depois da revolução, entre maio e dezembro de 1974, é Secretária de Estado da Cultura e Investigação Científica, numa experiência fugaz, sendo em maio de 1975, como militante católica, cofundadora do Semanário “Nova Terra”, a convite do Cardeal D. António Ribeiro, em cuja direção se destacará pela grande qualidade e pertinência dos seus editoriais num momento decisivo na construção da democracia e de defesa da liberdade.
«HOMENS E LIVROS»
Quando lemos o primeiro volume de “Os Homens e os Livros”, obra notável publicada em 1971 pela Editorial Verbo, notamos a extraordinária riqueza analítica de uma das mais importantes estudiosas da cultura portuguesa. E recordamos como as suas colegas do liceu Maria Amália, foram premonitórias, quando lhe deram a alcunha de “Carolina Michaëlis”. A reunião de ensaios, é de uma qualidade superlativa, quer pelo rigor e profundidade dos temas, quer pela capacidade evidenciada de uma visão integradora, não apenas no panorama da literatura, mas especialmente na compreensão das tendências da cultura europeia. Foi, assim, pioneira na reflexão estilística, numa perspetiva centrada na dimensão histórica e cultural. Refira-se o caso de Frei António das Chagas, discípulo de Gôngora – exaustivamente analisado como um “homem e um estilo do século XVII”, num estudo considerado pelos especialistas na literatura peninsular como exemplar, por abrangente e compreensivo, envolvendo o poeta que na vida civil se chamou António da Fonseca Soares. Foi essencial a busca que realizou da difícil síntese definidora do barroco e do barroquismo, pela ambiguidade e multiplicidade de fatores contraditórios presentes. Como ficará claro a propósito de Frei Luís de Sousa e da sua biografia do Arcebispo de Braga, Frei Bartolomeu dos Mártires, temos nesse caso “um prosador da época barroca”, que antecipa o Padre Manuel Bernardes, alguma “prosa tranquila” do Padre António Vieira, ou até a escrita do Padre Bartolomeu de Quental. E assim, longe da tentativa de encerrar o conceito de barroco num conjunto de elementos formais, enfatiza a complexidade das influências. E os limites cronológicos do barroco português ficam definidos tendencialmente entre 1580 e 1680, sendo capitais os dois cancioneiros “Fénix Renascida” (1716-1728) e “Postilhão de Apolo” (1761-62). Nas glosas ao Salmo 136 na relação com a saudade portuguesa encontramos a simbiose do tema religioso com a íntima dor que a condição de exilado suscita no poeta, valorizando-se a nostalgia e o desencanto e a tensão entre as dimensões celeste e terrena da Cidade de Deus. Luís de Gôngora, Baltasar Grácian ou Emanuele Tesauro, mas também Ribeiro Chiado, Frei Agostinho da Cruz ou o Padre António de Gouveia (na evangelização da China) correspondem a um fecundo elenco de referências e leituras que permitem a compreensão de um período da nossa história literária que foi significativo pela coexistência de múltiplas influências – num contexto em que a cultura portuguesa atinge a maturidade cultural e recomeça a ganhar influência global, até pela afirmação brasileira. E assim o barroco e o barroquismo foram fatores que acompanharam a afirmação da influência da cultura da língua portuguesa com um novo fulgor, como Maria de Lourdes Belchior demonstrou de modo pioneiro. Além de poeta em “Gramática do Mundo”, foi notável a sua carreira internacional, sendo Professora na Sorbonne, antes de suceder a Jorge de Sena na Universidade de Santa Bárbara, num longo período de cerca de dez anos em boa parte em acumulação com presença semestral em Lisboa, sendo, a partir de 1989, até 1998, Diretora da Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris, sempre com uma brilhante ação de apoio às culturas da língua portuguesa.
Com Adília, Sophia e um contemporâneo meu para Miguel-Manso
Quando escrevo apanho e desapanho o cabelo mas não se vê nada dos traçados de trigo o vento exprime-se de sensação conchiolina cruza-me hiperlírica de alheio sentido estou curta ribeirinha metida entre astros onde anoto este sonho de plano egoísta, passo à guia [cavalos persa de imaginação passo-os a animais livres para dentro como se o mundo fosse Platão – apagaram-nos a matéria comburente do paraíso a abstracção miúda como viris enterrando fundo e os muros que temos não são nada disso de hortênsias são silvas lagartos tijolos daqueles que não se pode subir esmurrando-os temos a força cega do indício, um país do outro lado sucedendo à nossa maneira entramos-lhe de inteiro enrolamo-lo [à escala dos pés para que nenhuma das imagens dezenas prestes a este silêncio suba mais que este argumento trazemos a magreza útil a luz e o gume bem medidos frutificamos para o veneno certo.
With Adília, Sophia and a contemporary of mine to Miguel Manso
While writing I tie and loosen my hair but nothing is visible on the rows of wheat the wind blows in conchiolin sensations goes through me in alien hyper-lyrical meanings a short little stream running among stars where I jot down this selfish plan of a dream, I give way to the guide [persian horses of imagination I turned them into free animals inside as if the whole world were plato – the paradise oxidizing matter has been obliterated the mingy abstractions are like deep burying virilities and the walls on offer aren’t made of hydrangeas they’re brambles lizards insurmountable bricks as we crack them we hold the blind force of the traces, a country on the other side happening in our manner we dive straight into it we role it in [at foot level so that no image from the dozens ready for this silence may rise above this argument we bring up the useful meagreness the well measured light and edge we fructify for the precise poison.
134. A IMPERFEIÇÃO DA RAPOSA E A PERFEIÇÃO DO OURIÇO
Em “O Ouriço e a Raposa - Ensaio sobre a Visão da História de Tolstói”, escreve Isaiah Berlin:
“O sentido omnipresente dessa estrutura (…) algo “inexorável”, universal, penetrante, não alterável por nós, fora do alcance do nosso poder (…), é o que está na origem do determinismo de Tolstói, e (…) do seu realismo (…). Está “lá” - o sistema, a fundação de tudo - e só o homem sábio tem noção dele (…) Tolstói sabe que a verdade está lá, e não “aqui”: não nas regiões suscetíveis de observação, discriminação, imaginação construtiva, não no poder de perceção microscópica e da análise, (…). Mas Tolstói não a viu cara a cara, porque não tem, faça o que fizer, uma visão do todo; não é, está longe de ser, um ouriço; e o que vê não é o um, mas sempre, com uma minuciosidade sempre crescente, com uma lucidez obsessiva, inescapável, incorruptível, totalmente incisiva que o enlouquece, o muitos” (sublinhado nosso).
Embora ansiasse por um princípio explicativo universal, Tolstói não o conseguiu, sendo mais uma “raposa” que um “ouriço”, apesar de o seu drama consistir em ser naturalmente uma “raposa”, desejando ser um “ouriço”, segundo Berlin.
Tendo em atenção a divisão de IB, de artistas e intelectuais, entre raposas e ouriços, ele próprio é uma “raposa”, porque defensor do pluralismo axiológico, tendo-o como vital e inevitável, como um princípio democrático que possibilita a coexistência pacífica de vários interesses, opiniões e tolerâncias em prol do bem comum, entre valores não reconduzidos a uma única hierarquia, por serem múltiplos e nem sempre compatíveis entre si.
Esta metáfora canónica e estandardizada de ouriços e raposas - na aparente inocência de que a raposa é dispersa e sem uma visão unificadora, e o ouriço organizado e previsível, só tendo espinhos para se defender - tem consequências a vários níveis, incluindo construções utópicas, sobre que Berlin se pronunciou.
Para IB, falar de utopia é falarmos de um estado perfeito, onde os valores maiores da existência humana têm a sua máxima expressão, como a liberdade, igualdade, justiça e direitos humanos.
Esse mundo nunca existiu, nem existe, é uma ilusão, não só por razões empíricas e pela imperfeição humana, mas ainda porque são múltiplos e nem sempre compatíveis entre si, sendo inviável uma liberdade, igualdade ou justiça total, apenas alguma, dado que a liberdade plena dos lobos significa a morte dos carneiros e ovelhas.
Resta ser imperioso escolher, nem sempre fácil e onde há uma perda real, tal como nas nossas vidas não é possível ter tudo, aceitando uns valores, conciliando-os ou excluindo outros.
Daí que as “raposas” tenham vantagens sobre os “ouriços” ao aceitarem a imperfeição, a diversidade, aceitando a perda, terem afeições livres e interesses vastos, garantindo a maior felicidade possível com esses interesses e afetos, tornando-os objeto de interesse e afeição para outros, agarrando mais de perto a natureza (imperfeita) humana.
Os ouriços, calculáveis, corretos, cordatos, querendo simplificar questões complexas transformando-as num princípio orientador, numa visão do todo que organiza e unifica tudo o que fazem, procuram impor a perfeição, uma ideia redentora que salva, quais mensageiros, donos, messias ou tiranos da verdade.
O que não exclui, em qualquer caso, maior exigência e a possibilidade de sermos melhores.
Pensar que a primavera será sempre uma forma de rebelião das cores, um modo de recombinar resistências, é algo que nos conduz a sermos pedrinhas que começando a rolar, iniciam uma avalancha.
Transformar a habitação em edifícios sustentáveis, nomeadamente utilizando fontes renováveis de energia e possibilitando os benefícios dos moradores face às resistências térmicas apuradas, constitui a capacidade de entender o ambiente como um conjunto de flores, cujo significado está contido dentro de tudo o que é vida.
A degradação ambiental patente nos nossos dias, também tem lugar porque ninguém protegeu o desconhecido por razões desconhecidas.
Os hábitos humanos não priorizaram a proteção ambiental e o consumo sustentável.
O homem faz parte integrante da natureza e destruiu-a e destrói-a a ritmos nunca vistos.
A pandemia covid-19 lembrou-nos bem como natureza e humanidade estão ligados.
Também David Attenborough, nos alertou como nos estávamos a tornar cada vez mais tóxicos para o nosso planeta, e hoje, procuramos aqui e além, um manual de sobrevivência que, afinal, só pode residir na lança da proposição “we need to rewild the world”.
Que nos seja retirado o poder de impedir as primaveras e que toda a natureza possa retomar a sua vida.
O futuro radioso terá início na oportunidade que nos dermos enquanto espécie e parte de todas as espécies.
“…when you throw a stone into the water, it finds the quickest way to the bottom of the water. It is the same when Siddhartha has an aim, a goal. Siddhartha does nothing; he waits, he thinks, he fasts, but he goes through the affairs of the world like the stone through water, without doing anything, without bestirring himself; he is drawn and lets himself fall.”, Herman Hesse In Siddhartha
Os desenhos de Phyllida Barlow (1944-2023) revelam o que de mais puro e subtil existe nas suas esculturas monumentais.
Os desenhos de Barlow não são resultado de um progresso, são antes revelação de um processo, de uma transformação que se vai dando. Não são pinturas, porque são consequências de uma ação imediata. São desenhos porque estão muito próximos do pensamento. São imagens excessivamente metódicas, disformes e amorfas. São preparações primárias.
Os seus desenhos são como uma espera - uma espera para que algo de inesperado e de surpreendente aconteça. São uma queda desejada, para que se dê uma metamorfose que faz sentido, num momento fugaz e num instante único.
“On of the most exciting things, for me, about sculpture, in a way I’m never completely satisfied with what I do (…) There is a sort of humbling process in that relationship with two sort of inevitable sourcers which are doubt and failure (…) The desire to find the unfindable is part of the chase.”, Phyllida Barlow In I am interested in the cycle of damage and repair, Louisiana Channel
Saber demasiado o que se quer encontrar, para obter um determinado resultado preconcebido, pode produzir resultados muito limitados. Por isso, Barlow deixa que os seus desenhos sejam sobretudo contemplações - para que se abram espaços improváveis entre pinceladas e preenchimentos. Estes desenhos são lentas satisfações, onde se decidem matérias, escalas e tamanhos. Correspondem a infinitas possibilidades imaginadas que permitem descobertas acidentais antes de esculpir.
A realidade vista pela lente da memória e da imaginação é a condição que desencadeia e provoca. A fonte da incerteza e daquilo que não se encontra vem da captação de coisas familiares e reais. Estes desenhos de Barlow são testemunho de memórias, de experiências, dos sentidos, de impressões e de dispersões súbitas. As coisas do mundo são adaptadas e repensadas nos desenhos e o ato de lembrar e de esquecer permite o enriquecimento da transformação.
Os desenhos de Barlow, são entusiasmos permanentes, são um pôr-se em risco continuamente e são vontades em potência. São um meio para se encontrar uma intenção, que acontece aos poucos. Os seus desenhos surgem como um seguimento de uma eterna procura daquilo que quer ser e se quer formar - o encontro com a imagem do objeto desejado nem sempre se dá, porque a imagem do objeto nem sempre quer ser encontrada. Formar é, segundo Barlow, uma luta ininterrupta com aquilo que se quer obter e capturar. É um inevitável estado imparável de insatisfação e humildade.
Os desenhos de Phyllida Barlow são, por isso, um espaço entre o imaginado e o desejado, entre um começo e um fim, entre a expectativa e a impossibilidade. E talvez até perpetuem estados de comunicação insuficiente, de insatisfação aceite, de produtiva ausência e de expectativa de coisa alguma.
“But I think that, yes, the object that doesn’t want to be found is a fascinating concept that intrigues me… something that is ever present.”, Phyllida Barlow In I am interested in the cycle of damage and repair, Louisiana Channel
O padre italiano Antonio Rosmini foi um notável filósofo e teólogo do século XIX, que, perante as transformações que então se operavam, escreveu, por amor à Igreja, em 1832, um livro famoso com o título Delle cinque plaghe della Santa Chiesa (Sobre as cinco chagas da Santa Igreja).
Desgraçadamente, a obra foi condenada e colocada no Index Librorum Prohibitorum (Catálogo dos livros proibidos). Mas, lentamente, a sua memória foi reabilitada e até foi beatificado em 2007 por Bento XVI. Em síntese, quais eram essas chagas? “O distanciamento entre o clero e o povo (na vida e na liturgia — não esquecer que as celebrações litúrgicas eram em latim); a fraca formação do clero, tanto no plano cultural como espiritual; a desunião entre os bispos; a intromissão da política na nomeação dos bispos; a riqueza acumulada pela Igreja”.
Na esteira de Rosmini, o padre espanhol Luis Pose Regueiro, historiador da Igreja, acaba de publicar em Religión Digital, “as dez chagas da Igreja”. Baseado no essencial do seu texto, deixo aí uma reflexão sobre essas chagas.
1. O tradicionalismo e o individualismo. Vivemos em tempos de confusão, incerteza, perplexidade, e, neste quadro, há a tentação de “refugiar-se anacronicamente na segurança do antes” — sempre se fez assim — ou então “isolar-se” no que cada um considera o correcto e mais seguro. Ora, o que se impõe é ir ao Evangelho e procurar “um caminho o mais possível comum”, seguindo o velho princípio: “nas coisas necessárias, unidade; nas duvidosas, liberdade; em tudo, caridade.”
2. O clericalismo. O poder dos padres e dos bispos, do clero, é tantas vezes “excessivo e distanciador”. Contra uma Igreja piramidal, Francisco não se tem cansado de chamar a atenção para essa “peste” do clericalismo e do carreirismo, que impede uma Igreja verdadeiramente sinodal, que a todos mobilize.
3. As riquezas e bens acumulados. “Por vezes ainda se vêem comportamentos economicistas por parte de pastores que sustentam uma espécie de ‘mercado’ de sacramentos.” E eu pergunto: não é um escândalo os cardeais na Cúria, com tudo pago — felizmente, o Papa Francisco acaba de decretar que cardeais e bispos da Cúria devem pagar uma renda pelos apartamentos no Vaticano—, terem um salário entre 4 e 5 mil euros mensais? Também penso que “precisamos de procurar maneiras dignas de austeridade, desprendimento e caridade.”
4. O etnocentrismo. A Igreja continua demasiado “romanocêntrica”. A mensagem do Evangelho precisa de encarnar nas várias culturas e actualizar a linguagem. Pergunto muitas vezes: o que teria acontecido na nossa compreensão da mensagem cristã, se o cristianismo, no princípio, em vez de ter passado da cultura hebraica para a cultura helénica, tivesse passado para a China ou para a Índia?
5. O machismo. Jesus, para escândalo de muitos, teve discípulos e discípulas. São Paulo entendeu que “Não há judeu nem grego, escravo nem livre, não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo.” Portanto, também na Igreja não pode haver discriminação das mulheres. O que pode impedi-las de presidir à Eucaristia?
6. O celibato obrigatório. O celibato como opção livre “é um chamamento digno e admirável, como o de unir-se para formar uma família: um e outro requerem amor, sacrifício e dedicação (não sei qual é mais exigente...). “ Onde está que Jesus exigiu o celibato? Francisco acaba de mostrar abertura à sua revisão.
7. A visão reducionista da sexualidade. “A doutrina ‘oficial’ pelo menos já defende que o sexo não é só para a procriação e admite a paternidade/maternidade responsável, mas não admite os métodos anticonceptivos artificiais nem o sexo pré-matrimonial; julgo que, no primeiro caso, se trata de uma incoerência (se se admite a atitude, porque não admitir uma ajuda artificial?) e, no segundo, de uma ingenuidade (não só porque não é cumprível, mas porque desconhece a importância do sexo na comunicação e vida de um casal).”
8. A homofobia. Já algo se avançou “em relação à visão humilhante da homossexualidade — que não é uma doença nem um capricho —, mas continua a não se aceitar que seja um modo digno de pessoas que se amam em consciência; e creio que isso é o verdadeiramente importante e o que Deus nos pede: que as pessoas amem como sentem em consciência.” Pergunto: o que impede, neste caso, que se lhes dê uma bênção?
9. Os abusos sexuais e o seu encobrimento. Uma infâmia, como aqui tenho escrito desde há muito tempo, os abusos e o seu encobrimento sistémico. Impõe-se cuidar das vítimas, que têm de ocupar o centro, fazer reparação, também financeira, sabendo que é um pecado hediondo, mas também um crime. E fica a necessidade de repensar a formação dos padres, também no domínio afectivo-sexual. E, com a idade com que são ordenados, têm consciência dos compromissos que assumem? E sabem o quê da vida real? Como garantir “tolerância zero”?
10. O ritualismo vazio e a espiritualidade débil. As celebrações comunitárias devem ser alimento para a vida cristã, também para a prática na vida quotidiana. Mas o que se constata é que de facto se fica num “cumprimento rotineiro e pouco enriquecedor”. E quando se pensa nas homilias...
Concluindo: Se houver a convicção funda da importância da Igreja, cuja missão é levar e entregar, por palavras e obras, a mensagem de Jesus à humanidade de cada tempo, para a vida das pessoas e das sociedades, estas questões não poderão deixar de ser debatidas com “liberdade e audácia”.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 18 de março de 2023