CORSINO FORTES
Se estivesse entre nós, Corsino Fortes teria completado, no dia 14 de fevereiro, noventa anos. Graças à iniciativa de Filinto Elísio, poeta e editor, cultor da língua portuguesa, de Márcia Souto e Ana Paula Godinho (filha do poeta), familiares e amigos do autor de “Pão e Fonema” reunimo-nos no Grémio Literário, com a presença do Presidente da República José Maria Neves, em nome da morabeza, num convívio em que a memória de um saudoso amigo esteve sempre presente. E começámos, como não poderia deixar de ser, por ouvir a leitura dos poemas reunidos pela editora Rosa de Porcelana em “Sinos de Silêncio”. “Perfume d’nôs ilha / Perfume d’nôs vida / Sê pai é amor / Sê mãe é melodia / Morabeza é farol / De nossa Senhora da Luz / Que Deus plantá Kab Verd / Na alma de coraçon”. E o poeta ali regressou e, por momentos, fechando os olhos, pudemos reencontrá-lo na sua inconfundível veste branca, com a aura fraterna, que tanto admirámos. Conheci-o na cidade da Praia e nunca mais deixámos de nos falar, até aos seus últimos dias, ouvindo na sua voz pausada e quente numa militância cívica inesgotável. O homem de cultura não esqueceu o dever de memória. E a sua originalidade ia ao ponto de ligar a necessidade de viver a identidade cabo-verdiana dinâmica, aberta e corajosa. E falámos de S. Vicente e do Mindelo, de Baltasar Lopes e da “Claridade”, bem como da importância dos crioulos. Foi das pessoas mais lúcidas que conheci no tema da diversidade das culturas da língua portuguesa. O plural é o sentido da alma. O seu percurso de vida foi extraordinário, desde as provações de juventude à formação jurídica, à resistência, às funções de professor, de exemplar magistrado e de exímio diplomata e governante. Foi o primeiro Embaixador de Cabo Verde em Portugal. Mas nunca deixou a sua banca de poeta, escritor, ensaísta, tendo colaborado nas revistas “Claridade”, “Cabo Verde” e “Raízes e África”, tendo sido o primeiro presidente da Academia Cabo-Verdiana de Letras.
Protagonista da libertação e da independência, pôde assumir, com uma irrepreensível coerência, a defesa da cultura popular, a afirmação emancipadora da identidade da jovem nação, o culto da poesia oral das mornas e das coladeiras e a relação com o fado português, a modinha brasileira, o tango argentino e o lamento angolano. Quando lemos “Pão e Fonema” (1974), “Árvore & Tambor” (1986), “Pedras de Sol & Substância” (2001) ou a reunião poética de “A Cabeça Calva de Deus” (2001), sentimos a vivência de um património exultante, onde a liberdade e a vontade se juntam à tomada de consciência dos sinais da opressão. E Corsino pega no tema de “Pasárgada” de Manuel Bandeira, (“Vou-me embora pra Pasárgada”) como um sonho interno do paraíso e um suplemento de alma, da tradição “claridosa”, abrindo caminho alternativo à partida de “Chiquinho” de Baltasar Lopes, obra-prima e referência nacional. Como resistente, pensa no retorno e na independência. E em “Pão e Fonema” é a tónica do povo que encontramos, do chão e da fome, como grito e denúncia. E o fonema é símbolo da fala, inequívoca marca de uma vontade indómita contra a seca e a provação.
Corsino Fortes foi um poeta empenhado na cultura dos crioulos e na consciência dos castigos da seca, da fome e da pobreza. A nossa última conversa foi sobre a necessidade de uma cultura inclusiva do crioulo, num arquipélago de diferenças. Urge a celebração da identidade insular e a exaltação serena dos valores da pátria, com especial relevância para a memória coletiva. O pão simboliza a esperança do cabo-verdiano no saciar da fome. “A vogal adentra / O coração do ditongo / Faminta de amor”. E o significado da metáfora remete para a ideia de que o pão vai além do signo, pois simboliza fonema, mar, matrimónio, património e a própria palavra constitui-se em imagem revivida pelo leitor, porque, segundo Octávio Paz, “o poema é uma obra sempre inacabada, sempre disposta a ser completada e vivida por um leitor novo”.
GOM