ANTOLOGIA
ONDE SE FALA DE PIERRE DE BRANTÔME
por Camilo Martins de Oliveira
"Regressado à Europa, lá fui às exéquias da tia Ana Adelaide Eugénia, que teimou em esconder os seus últimos anos no Périgord, onde também decidiu que aí deveria ser dado à terra o seu corpo mortal. Casta, penso eu, terá morrido. Mas ficará por elucidar a razão do tão forte desejo de terminar seus dias naquele casarão às portas de Saint Crépin, bem vizinho de Brantôme que deu nome ao autor de tantos discursos sobre as damas, incluindo os "Discours sur l’amour des dames vieilles et come aucunes l’ayment autant que les jeunes"... Passei pelo túmulo de Pierre de Bourdeilles, Sieur de Brantôme, que pouco terá combatido em armas, mas muito deixou escrito, um tal como o seu coevo e quase vizinho Michel de Montaigne. Traduzo-te, Princesa tão augusta do meu coração, umas linhas do epitáfio que lhe deixou uma sobrinha: "Fez a sua primeira aprendizagem das armas sob esse grande Capitão Francisco de Lorena, Duque de Guyze (…) e em nada degenerou da virtude dos seus antepassados, mas se achou em muitas guerras e combates arriscados tanto em França como em países estrangeiros: mesmo o Rei de Portugal Dom Sebastião, honrando o seu valor (…) o fez cavaleiro da sua Ordem chamada o Hábito de Christo...". Foi este Brantôme um notável contador de memórias, ao ponto de me ser difícil, lendo-as, duvidar da sua veracidade. Fidalgo da câmara dos reis Carlos IX e Henrique III de França, foi quando o último dos Valois lhe negou provimento no cargo régio que ocupava, no Périgord, depois da morte de seu irmão mais velho, para o atribuir ao seu sobrinho filho deste, que Pierre de Bourdeilles atira ao Sena a simbólica chave de ouro de camareiro do rei, e se retira para as suas terras, onde passará trinta anos a escrever. Os vários livros que constituem o seu "Recueil des Dames", vão desde crónicas da vida e obras de rainhas de França, Navarra e Espanha, até memórias e contos exemplares de senhoras de todas as idades, viúvas, casadas e solteiras, a maioria das quais se moveram no tempo e na atmosfera erótica e frívola da corte dos Valois. Brantôme é um observador amoral e impenitente, condescendente consigo e com todas elas. Essa nossa juventude hodierna - que tanto se gaba e compraz na "sua" revolução sexual dos anos 60 - não faz ideia de que, nessa viragem do século XVI para o XVII, um fidalgo francês escrevia, com agrado geral e larga aceitação, sobre: "les dames qui font l´amour et leurs maris cocus"; "le sujet qui compte plus en amour, ou le toucher, ou la vue, ou la parole; la beauté de la belle jambe et la vertu qu´elle a; les femmes mariées, les veuves et les filles, à savoir desquelles les unes sont plus chaudes à l´amour que les autres"; "qu´il ne faut jamais parler mal des dames et la conséquence qui en vient"; " que les belles et honnêtes dames aiment les vaillants hommes, et les braves hommes aiment les dames courageuses"... Saboreie-se o conto do que lhe disse, na corte de Espanha, uma senhora idosa, "muito honesta e bela", sobre o amor carnal na terceira idade: "Quanto à picada da carne, não deve pensar-se que só pela morte dela nos curamos, mesmo que pareça que à idade ela repugne. Até porque toda a mulher bela se ama extremamente, e amando-se não o faz por ela mas para outrem; e em nada se parece com Narciso que, por tolo que era, amado de si e de si mesmo enamorado, aborrecia todos os demais amores". E o nosso Brantôme comenta o dito, num parágrafo que serviria de guião a um ousado filme do nosso tempo: "A mulher bela não é de modo algum assim (narcísica) .Tal como ouvi contar, de uma belíssima Dama que, amando-se e agradando-se muito, muitas vezes só e consigo, no seu leito se punha toda nua, e em todas as posturas se contemplava, se admirava e mirava lascivamente, maldizendo-se por se ter votado a um só que não era digno de corpo tão belo, entendendo que seu marido em nada era igual a ela, e que finalmente se acendeu tanto com tais contemplações e visões, que disse adeus à sua castidade e ao seu voto matrimonial, e fez amor e servidor novo. " Vivia-se numa época em que, pelo contrário, o Grão-Duque de Florença, ao casar-se com Cristina de Lorena, manifestou o seu espanto por tê-la achado virgem! Mas se Pierre de Bourdeilles condescendia com os apetites naturais da carne feminina, também contraditoriamente sentia com veneradora devoção os exemplos opostos. Sintomático é este passo em que nos fala da infanta Dona Maria de Portugal que, diz-me o Alberto, o grande Camões tanto admirou e, talvez, desesperadamente tivesse amado ("Num tão alto lugar de tanto preço,/ este meu pensamento posto vejo,/ que desfalece nele inda o desejo,/ vendo quanto por mim o desmereço."): "Vi a Infanta de Portugal... ...morreu menina e virgem aos sessenta anos de idade ou mais. Não por falta de grandeza porque era grande em tudo; nem por falta de bens... ...nem por falta de dons da natureza, porque a vi em Lisboa, com quarenta e cinco anos de idade, uma muito bela e agradável menina, de boa graça e belo aspeto, doce agradável, e que bem merecia um marido a ela igual em tudo. Cortez mesmo para connosco, Franceses. Posso dizê-lo por ter falado com ela muitas vezes e em privado. O falecido Senhor grande Prior de Lorena... ...quando esteve, por uns dias, em Lisboa, visitou-a e viu-a todos os dias. Ela recebeu-o muito cortesmente e teve gosto na sua companhia e deu-lhe muitos belos presentes... ...que ele amava por amor da Dama, da qual se tinha enamorado. E creio que ela não o amava menos, e de boa vontade teria por ele rompido o seu nó virginal; mas só pelo casamento,entenda-se,porque era uma muito sage e virtuosa Princesa". Assim o Senhor de Brantôme - que sempre se inclinaria para o gabanço das proezas do "seu" Francisco de Lorena - aqui o deu por derrotado pela virtude de uma Senhora... Tal como eu, Camilo Maria, venero a tua e talvez lhe obedeça.". E assim acaba esta carta em duas partes, pela qual o Marquês de Sarolea, antes do Périgord, me levou ao "Chez Pierre" e ao cemitério de Aoyma ali defronte. A onde, anos mais tarde, tantas vezes fui acolhido, mais do que como cliente, como amigo. Para deleite do meu paladar irreverente e rebuscado, o Pierre Prigent cozinhava bochechas de atum, pés de porco e molejo de vitela. Em Tokyo! Retribuía-lhe conforme podia, levando lá guitarristas e fadistas de passagem para jantares de epopeia, que mantinham o restaurante - cheio de japoneses conviventes e deliciados com o nosso lusitano exotismo - aberto até de madrugada!
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 26.04.13 neste blogue.