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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 6 a 12 de março de 2023


O Conde de Ficalho, membro do grupo conhecido como Vencidos da Vida descreveu Portugal a partir da sua flora de modo que hoje continua a ter especial utilidade cultural e científica.


Portugal ostenta diferenças sensíveis nas floras espontâneas locais ou nas práticas e instituições agrícolas. Quem o afirmou foi o Conde de Ficalho, Francisco Manuel de Mello Breyner (1837-1903), cientista, historiador, proprietário agrícola e político, que se destacou nas diversas áreas em que exerceu atividade. Ramalho Ortigão disse dele um dia: “Tanto sabia com autoridade palaciana empunhar o seu bastão de mordomo nas funções régias, como sabia manejar no gabinete a sua pena de escritor, como sabia governar no campo o ferro de um arado na lavra de um alqueive, ou um pampilho de vaqueiro numa apartação de gado”. Este foi, porventura, o retrato mais fiel desse homem do seu tempo, ancorado na tradição familiar e com os horizontes abertos para a nova ciência. Recordamo-lo, a propósito do seu retrato de Portugal, como país de contrastes e de diferenças, onde chega a dizer que “um viajante subitamente transportado do centro do Minho ao centro do Alentejo, julgar-se-ia a milhares de léguas do ponto de partida”.


No Minho, Ficalho encontra “o verde variegado”, em vales estreitos, “com todas as nesgas de terra bem aproveitadas, o verde brilhante do milho, o verde fresco dos prados húmidos, e enquadrado por sebes vivas em que a vinha trepa pelas árvores”. E se fala do verde de Entre-Douro-e-Minho, numa paisagem limitada, mas acolhedora, pinta, nas encostas, o “verde alegre” dos carvalhos de folha caduca (que tantas vezes o lucro fácil sacrificou, teremos de dizer nós) e o “verde-escuro” dos pinheiros… Nesse tempo distante, em que éramos contemporâneos do neolítico, camponeses e camponesas cultivavam os campos – e Ficalho notava um fundo matriarcal na sociedade (“a mulher trabalha tanto ou mais que o homem”). No norte litoral, encontravam-se os “pequenos rebanhos da pequena cultura”, nas colinas, entre os “tojos de flor dourada e as urzes floridas dum violeta rosado”. Dois ou três bois nos prados, meia dúzia de vacas ou uma dúzia de ovelhas nas encostas. A pequena propriedade, de cultura dividida e pobre, mantida pelo camponês “pouco progressivo” e pela sua prole… Em contraste, falava o conde, que conhecia o Alentejo como os dedos das suas mãos, da transição desde o norte minhoto até à planura do meio-dia – “a paisagem muda, mais árida, mais ampla, os tons são menos vivos, pois o arvoredo dominante (a oliveira e os dois carvalhos de folha persistente), são todos dum verde apagado, azulado na oliveira, acinzentado na azinheira e sobretudo no sobreiro”. Eis a charneca inculta, a perder de vista, com as “grandes estevas glaucas”, as “alfazemas prateadas”. E, no “verão do Verão”, o restolho das searas “amareleja” e os pastos vicejam sob o “azul violento do céu”. As vacas e os bois de “pelagem encarniçada” (da “cor do trigo” na expressão do povo) viviam em grandes manadas, ao lado dos rebanhos “intermináveis” de ovinos pretos, conduzidos por “pastores seminómadas”. Escasseiam as pessoas (“pastores” e “maiorais pitorescos”) e de longe em longe há grupos de trabalhadores que amanham a terra, e o que ela dá, “por conta dos grandes proprietários”, em demanda de trigo, azeite, lã e cortiça…


Este é o contraste forte que ressalta à vista e aos sentidos, mas o conde de Ficalho diz-nos que a transição é gradual. Em indo de sul para norte, as árvores mediterrâneas vão rareando até desaparecer (com a exceção de Trás-os-Montes), o tamanho dos campos vai diminuindo, o trigo vai dando lugar ao milho, o cinzento e o amarelo ao verde, e a gente vai-se tornando mais numerosa nos caminhos e nas fazendas. Da influência do Mediterrâneo vai-se passando para o Atlântico, sobretudo depois de passada a Cordilheira Central, como Orlando Ribeiro ensinou, melhor do que ninguém. E aí a Estrela é a grande referência beirã (Beira-Serra), que, no dizer de Miguel Torga, não divide, mas une e concentra: “alta, imensa, enigmática, a sua presença física é logo uma obsessão”. Aquilino Ribeiro é claro: “A serra da Estrela é uma personalidade. Descobre-se à distância de trinta léguas”. Mas, nesta “sucessão de transições” fica o verdadeiro quebra-cabeças de geógrafos e economistas sobre a divisão regional de Portugal… Orlando Ribeiro fez, no entanto, a proposta mais prática e inteligente: encontrou duas regiões, uma litoral e outra interior, ao norte da Cordilheira Central - com o Marão a separar “dois mundos” e a Estrela a pontificar; e depois autonomizou apenas a “imensidão da terra lisa do sul”. Antero de Figueiredo diria: “cá em cima, os galaicos misturaram-se como os astúro-leoneses; lá em baixo, os lusos cruzaram-se com os mouros”. E Maria Angelina e Raul Brandão, no seu “Portugal Pequenino”, falavam da quadrícula da pequena propriedade a norte do Tejo e das extensas planícies ao sul – “com os pinheiros bravos cobrindo o terreno nas costas marítimas e vegetando no interior até às montanhas, onde só medram até certa altitude, na encosta voltada para o mar”… E qualificavam, muito justamente, o castanheiro como “a mais linda árvore de Portugal”, do mesmo modo que Aquilino (premonitório no proibidíssimo “Quando os Lobos Uivam”) dizia que nada era “mais sumptuoso que um souto em vésperas de maturação”. Infelizmente, a natureza foi violentamente contrariada e os terríveis fogos florestais de hoje são resultado de criminosa ignorância.


Esta “sucessão de transições” tem os seus misteriosos santuários. São eles: Entre-Douro-e-Minho; a cidade-estado do Porto; o para lá do Marão mandam os que lá estão (Marânus de Pascoaes); a Régua terra mágica do “vinho fino; a Beira como um todo que circunda a Estrela; “um ázimo pão sobrenatural” que mora nos “sacrários que a Charola de Tomar sintetiza” (Miguel Torga); Sintra como prefiguração do Éden; a Arrábida (de Agostinho da Cruz a Sebastião da Gama – de que Oliveira Martins, criado nesse monte sacro, disse: “acaso não há no reino panorama nem mais belo, nem maior, nem mais nobre, nem mais variado”) e a sul, o Alentejo (com a água a mudar o panorama) e o inebriante Algarve, de Teixeira Gomes e de Sophia. Tudo sem falar das ilhas encantadas… E neste sul do sul, onde escrevo, entre Barlavento e Sotavento, Raul Brandão falava da “reverberação do sol”, do “azul mais azul” e do “branco mais branco” de uma terra levantina, a que só faltam os minaretes – “duas cores e cheiro: branco, branco, branco, branco doirado pelo sol, que atingiu a maturidade como um fruto, pinceladas de roxo uniformes para as sombras, e um cheirinho a cemitério” – “da soteia chego às estrelas com a mão”. E se virmos bem tanta variedade da terra portuguesa formou um povo bastante homogéneo, cujas idiossincrasias não induzem divisões insanáveis. Pesa talvez o individualismo atávico, que leva ao funcionalismo burocrático e à adoração do Estado messiânico, o melhor protetor e o melhor bode expiatório para todos os males. Daí funcionar o centralismo (que permitiu a unidade Brasil), que teve como melhor aliado, ao longo dos séculos, um municipalismo de forais e privilégios, contra as veleidades da nobreza e do alto clero. E assim a variedade do território contrasta com a proximidade das gentes, numa história de migrações internas ditadas pela pobreza agrícola e de fuga para as grandes cidades, a começar na Lisboa mítica, porta de todos os Eldorados fictícios… Numa palavra, "Portugal é mediterrânico por natureza e atlântico por posição" – no dizer de Pequito Rebelo.


Guilherme d’Oliveira Martins

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