CRÓNICAS PLURICULTURAIS
134. A IMPERFEIÇÃO DA RAPOSA E A PERFEIÇÃO DO OURIÇO
Em “O Ouriço e a Raposa - Ensaio sobre a Visão da História de Tolstói”, escreve Isaiah Berlin:
“O sentido omnipresente dessa estrutura (…) algo “inexorável”, universal, penetrante, não alterável por nós, fora do alcance do nosso poder (…), é o que está na origem do determinismo de Tolstói, e (…) do seu realismo (…). Está “lá” - o sistema, a fundação de tudo - e só o homem sábio tem noção dele (…) Tolstói sabe que a verdade está lá, e não “aqui”: não nas regiões suscetíveis de observação, discriminação, imaginação construtiva, não no poder de perceção microscópica e da análise, (…). Mas Tolstói não a viu cara a cara, porque não tem, faça o que fizer, uma visão do todo; não é, está longe de ser, um ouriço; e o que vê não é o um, mas sempre, com uma minuciosidade sempre crescente, com uma lucidez obsessiva, inescapável, incorruptível, totalmente incisiva que o enlouquece, o muitos” (sublinhado nosso).
Embora ansiasse por um princípio explicativo universal, Tolstói não o conseguiu, sendo mais uma “raposa” que um “ouriço”, apesar de o seu drama consistir em ser naturalmente uma “raposa”, desejando ser um “ouriço”, segundo Berlin.
Tendo em atenção a divisão de IB, de artistas e intelectuais, entre raposas e ouriços, ele próprio é uma “raposa”, porque defensor do pluralismo axiológico, tendo-o como vital e inevitável, como um princípio democrático que possibilita a coexistência pacífica de vários interesses, opiniões e tolerâncias em prol do bem comum, entre valores não reconduzidos a uma única hierarquia, por serem múltiplos e nem sempre compatíveis entre si.
Esta metáfora canónica e estandardizada de ouriços e raposas - na aparente inocência de que a raposa é dispersa e sem uma visão unificadora, e o ouriço organizado e previsível, só tendo espinhos para se defender - tem consequências a vários níveis, incluindo construções utópicas, sobre que Berlin se pronunciou.
Para IB, falar de utopia é falarmos de um estado perfeito, onde os valores maiores da existência humana têm a sua máxima expressão, como a liberdade, igualdade, justiça e direitos humanos.
Esse mundo nunca existiu, nem existe, é uma ilusão, não só por razões empíricas e pela imperfeição humana, mas ainda porque são múltiplos e nem sempre compatíveis entre si, sendo inviável uma liberdade, igualdade ou justiça total, apenas alguma, dado que a liberdade plena dos lobos significa a morte dos carneiros e ovelhas.
Resta ser imperioso escolher, nem sempre fácil e onde há uma perda real, tal como nas nossas vidas não é possível ter tudo, aceitando uns valores, conciliando-os ou excluindo outros.
Daí que as “raposas” tenham vantagens sobre os “ouriços” ao aceitarem a imperfeição, a diversidade, aceitando a perda, terem afeições livres e interesses vastos, garantindo a maior felicidade possível com esses interesses e afetos, tornando-os objeto de interesse e afeição para outros, agarrando mais de perto a natureza (imperfeita) humana.
Os ouriços, calculáveis, corretos, cordatos, querendo simplificar questões complexas transformando-as num princípio orientador, numa visão do todo que organiza e unifica tudo o que fazem, procuram impor a perfeição, uma ideia redentora que salva, quais mensageiros, donos, messias ou tiranos da verdade.
O que não exclui, em qualquer caso, maior exigência e a possibilidade de sermos melhores.
24.03.23
Joaquim M. M. Patrício