Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Há pessoas que amam com os dedos todos sobre a mesa. Aquecem o pão com o suor do rosto e quando as perdemos estão sempre ao nosso lado. Por enquanto não nos tocam: a lua encontra o pão caiado que comemos enquanto o riso das promessas destila na solidão da erva. Estas pessoas são o chão onde erguemos o sol que nos falhou os dedos e pôs um fruto negro no lugar do coração. Estas pessoas são o chão que não precisa de voar.
in A Nuvem Prateada das Pessoas Graves, 2005
Bread
There are people who love laying all their hands on the table. They warm up bread with the sweat of their brow and when we lose them they are always with us. For the moment they are not touching us: the moon finds the whitewashed bread we eat while the laughter of promises is distilled in the loneliness of the grass. These people are the ground from which we gather the sun that missed our fingers leaving a dark fruit in place of the heart. These people are the grounding that does not need to fly.
PROCURA DE HARMONIA… por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Onde li eu, sobre a música de Haydn, que nela nascia a harmonia, não de receita, mas como procura? Ou fui eu que o disse ou alguém o terá dito por mim... Ocorre-me agora essa reflexão, quando silenciosamente contemplo este jardim japonês. Voltei a Kyoto, a Primavera vai-se alongando, as pétalas de "sakura" vão-se espreguiçando pelo ar, como se dissessem "é tarde!", efémeras traviatas dançando ao sopro musical de brisas que as afagam e logo apagam, varrendo o chão em que adormecem. Este ano, a Primavera das cores teima e atrasa a vinda das chuvas que anunciam o Verão verde e húmido, respirando a terra... Hei de ir a Horiyuji, ao templo da cor escura do tempo, feito de madeiras milenárias, firmado no cinzento negro das lajes, levantado entre o verde poderoso da natureza que transpira para o céu a humildade dos homens... Pois é de humildade feita a harmonia das artes nipónicas. Da tigela de barro do artesão ao gesto caligráfico do erudito, procura-se, humildemente, essa respiração por dentro da natureza, em que o tempo de cada gesto seja, na alma, o tempo eterno do mundo. Circular, incessantemente retornando, ao ritmo das estações que obedecem aos astros, e levam a vida na morte e trazem a morte na vida. O que, para nós, é um destino escatologicamente realizável é, para eles, a repetição tentativa da harmonia inicial das coisas. A harmonia que se procura não é ordem, é a da coexistência necessária (diríamos nós: de tudo em todos) das forças díspares, e até antagónicas, que sustentam e constroem, de um caos que desconhecemos, um universo que ainda não vemos em plenitude. Reconheço que, ao dizer-te isso, me afasto da minha meditação japonesa e tenho a alma cheia da visão de uma missa sobre o mundo, da escatologia cosmo-genética de Teilhard de Chardin. Mas volto os olhos para este "meu" jardim japonês: é do estilo "Tsukiyama", uma espécie de microcosmo cultivado e arranjado, à volta e sobre um manto de água, como se fosse um mar semeado de ilhas, correntes e bosques. Poderia ser um "Karensansui", calvo e seco, em que a água se representa por pedrinhas ou areias penteadas em ondas, como nos jardins "Zen"... Assim também, na elaborada cerimónia do chá, a razão da natureza ensina a humildade. Não só pela porta de entrada na "chashitsu" (a sala da cerimónia do chá), chamada "nijiriguchi", com apenas 67 cm de altura e 60 de largura, de forma a impedir o ingresso de armas, armaduras e vestidos de espavento... nem porque se deixa o calçado lá fora. Mas porque ali se procura o ideal estético do "wabé", como despojamento "zen", simples e calmo. Ora este também se traduzirá na beleza, limpa de adornos, dos utensílios que servem uma cerimónia litúrgica que aliás, dizem, o grande mestre Sen no Rikyu, foi buscar aos ritos dos jesuítas portugueses no século XVI. A "chawan" (tijela ou chávena,sem asas nem pegas) é objeto de apreço, antes de muitas se term tornado objecto de preço. Ao rodá-la e mirá-la nas nossas mãos, antes e depois de a levar à boca, contemplamos a natureza que ela encerra nos quatro elementos que a conjugaram (ar, fogo, terra e água) e aqui nos serve o chá em sinal de igualdade e partilha entre os homens. Na "chashitsu", durante o "sadô" ou "cha no yu" (a cerimónia do chá) somos todos iguais e estamos em harmonia com a natureza. Há ainda, nessa comunhão natural (quiçá telúrica até, em país de vulcões, terramotos e outras erosões) - que é um esteio tão vivo na tradição da cultura japonesa, mesmo em tempos modernos de motores e eletrónica - outros aspetos do pensamento e sensibilidade das gentes que se revelam pela visão estética: a economia de desenho e materiais na construção de utensílios, móveis e edifícios, por exemplo: o "design" japonês já no tempo medievo preconizava, com elegância fina e forte intuição abstrativa, o que, entre nós, seria, já no século XX "art-déco" e abstracionismo. Tal como, na viragem do século XIX para o nosso, os desenhos florais japoneses, nas artes decorativas, influenciaram as nossas "artes novas", e as gravuras japonesas os nossos cartazes. Mas o que, para o europeu, seria, quase sempre, um artifício, era, para o japonês, a estética enquanto sensação, sentido, percebimento, comunhão da natureza. Estética não é só, acho eu, a conceção da harmonia de um objeto ou superfície material, ou de um seguimento de sons... de acordo com leis que concebemos com a intenção de organizar ou reformar a natureza que se reproduz ou copia. A emoção estética - e afinal será isso que a arte procura - é, antes de tudo mais, o ato de contemplação, do artista, do artesão que, pela obra que a materializa, se comunica. Esteta, no seu grego de origem, é o que sente, o que percebe. Será, pois, o que está do lado inicial - que ele não começou - ou do lado final - que não se esgota aí - duma comunicação. Que é partilha. O artista que se exprime, no fundo se si, quer partilhar. Um percurso pela história da arte europeia, ajudar-nos-ia a entender o processo genético daquilo a que atualmente chamamos a liberdade de expressão artística. Receio que estejamos a enveredar por um processo autista, como se os "círculos de artistas" entrassem num remoinho. "Mutatis mutandis", lembra-me a decadência escolástica da nossa filosofia medieval ou o especiosismo maneirista no tratamento de tantos temas pela oficialidade católica... A "fuga para a frente" é, muitas vezes, o enrodilhar-se sobre si. Essas "descobertas", em sucessivas efemérides, de compositores e artistas plásticos contemporâneos, já não têm os pés no chão da natureza e dos homens, tal como certos pietismos e pretensões doutrinais da Igreja já não têm assento nas almas. Se eu chegasse ao fim deste século XX, talvez ainda visse o esplendor do barroco e da renascença nas salas de concertos, como sacramento da natureza num mundo de ruído automóvel e industrial, de poluição eletrónica, sonora e visual. Pois é sempre paradoxal a condição humana: como poderia eu discernir por aí o triunfo da vulgaridade na cultura das massas, se por aí também não encontrasse os contempladores de deuses?" Há, entre muitas outras cartas do Marquês de Sarolea à Princesa de... (isto lembra-me o título de um filme de que o João Bénard da Costa gostava muito: "Madame de..." não era?) uma, sobretudo, por onde deambula, através do Japão, um prazer estético incontido...
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 24.05.13 neste blogue
XCIX - RESPONSABILIDADES E RECIPROCIDADES LINGUÍSTICAS E INSTITUCIONAIS
Nas inúmeras visitas oficiais de Estado, do anterior e atual presidente do Brasil, sobressai o uso regular, ao que me apercebi permanente, do uso da língua portuguesa como idioma de comunicação global e internacional, no mesmo plano de igualdade e de reciprocidade, com os seus homólogos de outros países. Sucedeu nos Estados Unidos, na China, Rússia, Alemanha, França, Espanha, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Hungria, Argentina, Uruguai, Chile, Japão, entre outros, incluindo colóquios, palestras e entrevistas para a imprensa.
Nem em inglês, francês, portunhol ou espanholês, apenas em português, em paralelo com o uso da língua materna dos seus interlocutores, com a respetiva tradução.
Também em recente visita do presidente gaulês a Angola, este expressou-se em francês, o seu equivalente angolano em português, usando este, de novo, o nosso idioma comum aquando da última viagem dos reis de Espanha, comunicando estes em castelhano. O mesmo em visitas congéneres com Moçambique.
Entre nós, é frequente os nossos políticos, ao mais alto nível, em circunstâncias similares, falarem em inglês, francês, português, alemão (se o souberem), chegando a exprimir-se só em portunhol, ou em português e portunhol, em cimeiras, reuniões ou encontros bilaterais ibéricos, sem que haja reciprocidades dos nossos vizinhos, nem sequer quando connosco o atual rei espanhol, não obstante ter vivido vários anos em Portugal.
Esta nossa não dignificação regular do nosso idioma, em termos bilaterais ou multilaterais, em conjugação com o contexto e a não obrigatoriedade do uso da língua global franca (hoje o inglês), não eleva a língua portuguesa num espaço de diversidade e igualdade recíproca, que merece por direito próprio, corroborado pela sua dimensão geolinguística, sendo uma das mais faladas pelo seu número global de falantes e dispersão intercontinental.
Indicia-se, de igual modo, que são os “descendentes” linguísticos de Portugal que mais contribuem para a promoção internacional do português, como idioma, em termos de responsabilidade e reciprocidade linguística num patamar institucional, apesar das responsabilidades históricas lusas neste domínio, o que é um contrassenso.
E os exemplos duma permissividade subserviente das elites tem reflexos na população em geral dos seus países, nomeadamente quando negativos e os seus esforços não têm correspondência recíproca e são inversamente proporcionais aos dos seus parceiros e destinatários, bilaterais ou outros. Mesmo políticos que falam fluentemente inglês, como o presidente francês e o chanceler alemão, são useiros e vezeiros na sua língua materna e oficial, que é menos falada que a nossa, para não referir o uso exclusivo do mandarim e russo pelos seus líderes, mesmo que não sejam fluentes noutra língua, o que não os embaraça, pois impulsionam os seus idiomas, o mesmo devendo ser feito para estimular e dar visibilidade condigna ao português, fale-se ou não outras línguas.
Ou será que parte significativa das nossas elites caminha para o reforço de uma vocação essencialmente europeísta, abdicando aparentemente de uma promoção mais adequada do nosso idioma, mesmo que o proclamem internacionalmente como uma prioridade estratégica reforçada via CPLP?
O programa “Visita Guiada” da RTP-2 de Paula Moura Pinheiro regressou, partindo, em boa hora, até à Ilha de Santiago, à Cidade Velha da Ribeira Grande em Cabo Verde. Liga-me uma relação de especial afeto a esta cidade. Acompanhei com muito gosto e entusiasmo a sua classificação pela UNESCO como património da humanidade em junho de 2009 e não esqueço o empenhamento pessoal do Presidente Pedro Pires, o entusiasmo de Mário Soares, que depôs formalmente a favor dessa classificação, do mesmo modo que a defesa dessa causa pelo antigo Diretor-Geral da UNESCO Federico Mayor. Lembro ainda o papel ativo desempenhado pela Embaixadora Graça Andresen Guimarães, então representante de Portugal na Praia, bem como o incansável papel desempenhado pelo grande amigo Conselheiro José Carlos Delgado, meu antigo aluno, então na presidência do Tribunal de Contas de Cabo Verde. E desejo que as duas “visitas guiadas” agora apresentadas sejam oportunidade para aprofundar a qualidade patrimonial da Cidade Velha.
Os testemunhos do arqueólogo André Teixeira e do meu amigo António Correia e Silva fizeram luz sobre a importância fundamental da Ribeira Grande como placa giratória das navegações do Atlântico, o último grande oceano a ser conhecido pela humanidade. E a Cidade Velha foi a primeira fundada por europeus ao sul do Saara, dois anos após a morte do Infante D. Henrique (1462), a quem tinha sido atribuído por D. Duarte o senhorio da ilha. A abundância de água e as facilidades para a agricultura na foz da Ribeira Grande foram determinantes na escolha do lugar para centro do povoamento, servindo depois de apoio às rotas marítimas, no abastecimento de água e de frescos e na possibilidade de se efetuarem reparações dos navios. O conjunto monumental da Cidade Velha envolve o altaneiro Forte de S. Filipe, base do sistema defensivo da cidade; a ruína da Sé Catedral construída, sob as ordens de Frei Francisco Cruz, terceiro bispo de Cabo Verde, entre 1556 e 1700, mas com vida curta, já que foi destruída pelo ataque do corsário francês Jacques Cassard; as ruínas da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, construída depois da chegada dos primeiros colonos e ainda a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, do século XV, onde pregou o Padre António Vieira em 1652, que se admirou com a qualidade artística encontrada.
Apesar de ter deixado de ser capital em 1769 em benefício da Praia, nota-se ainda na Cidade a estrutura da urbe antiga – com o Largo do Pelourinho, ponto de encontro de quarteirões irregulares, mas também base de um tecido urbano de desenho claro nas Ruas da Banana e da Carreira, abrindo para os bairros de S. Pedro e S. Brás, com as ruas da Horta Velha e Direita da Cidade. A feitoria de Santiago foi até à fixação em S. Domingos do Cacheu na Costa da Guiné em fins do século XVIII a feitoria portuguesa de África, sendo escala das navegações do Atlântico, porto de abastecimento alimentar e da navegação, reexportador das mercadorias africanas com destino à Península Ibérica e às Índias de Castela. Daí a presença de mercadores andaluzes ao lado dos portugueses, numa partilha ibérica. A evolução cultural e económica é de um grande interesse, pela constituição de uma sociedade com uma rica marca própria, evidenciada na evolução da língua portuguesa e dos crioulos, sendo levados a crer que os africanos se serviram do português, embora o tenham adaptado a uma estrutura gramatical próxima das suas línguas de origem. O híbrido cultural que encontramos tem, assim, uma configuração múltipla, não só fruto do encontro entre o branco e o escravo, mas também de africanos de diferentes origens (balantas, fulas, mandingas, bijagós), marcados pela procura de uma identidade própria. Temas apaixonantes.
Uma antiga aluna, agora avó, enviava-me há dias um vídeo com o seu neto. É uma alegria comovedora ver aquele bebé a gesticular e a sorrir, agitando-se... Uma outra avó: “É uma emoção muito grande”. E eu alegro-me também e reflicto: Estes bebés vão crescer, aos poucos vão tentar articular palavras, e muito lentamente, depois de se referirem a si como o menino, a menina ou pronunciando o seu nome, dizer “eu”. Ao princípio sem consciência do que isso significa na sua grandeza, mas, depois, mais uma vez lentamente, com tom acentuado e afirmativo de autonomia... Evidentemente, sempre em contraposição com o outro, um tu: afinal, há eu porque há tu, e a primeira tomada de consciência é mesmo a do tu, mas sempre numa interação e inter-relação permanentes. E num processo nunca verdadeiramente acabado...
E perguntamos: o que diz alguém, quando diz "eu", fazendo-o de forma autenticamente consciente? Afirma-se a si mesmo, a si mesma, como sujeito, autor/a das suas acções conscientes, centro pessoal responsável por elas, alguém referido a si mesmo, a si mesma, na abertura e em contraposição a tudo.
Mas, reflectindo, deparamos com observações perturbadoras. Por exemplo, pode acontecer que alguém adulto, ao olhar para si em miúdo, se veja de fora, apontando como que para um outro: aquele era eu, sou eu?
Há filósofos que se referem à ilusão do eu. Certas interpretações do budismo caminham nessa direcção. No quadro da impermanência e da interdependência de todas as coisas, fala-se da inexistência do eu. Matthieu Ricard, investigador em genética celular e monge budista, deu-me uma vez, num congresso no Porto, um exemplo: veja ali o rio Douro. O que é o rio Douro, onde está? Ele não existe como substância, pois não há senão uma corrente de água. Está a ver a consciência? O que é ela senão um fluxo permanente de pensamentos fugazes, de vivências? O Eu não passa de um nome para designar um continuum, como nomeamos um rio.
Por mim, afirmo que há a experiência vivida e inexpugnável do eu, ainda que numa identidade em transformação, que continuamente se faz, desfaz e refaz. De facto, vivemo-nos numa identidade em processo. Em relação ao eu, o que se passa é que, não se tratando de uma realidade coisista, é inobjectivável e inapreensível. Nunca nos captamos totalmente, porque nos experienciamos como uma subjectividade reflexiva: somos objecto de conhecimento para nós próprios, mas, uma vez que a possibilidade de nos objectivarmos é uma subjectividade que se retrai sempre, nunca nos conhecemos adequada e plenamente, de tal modo que seremos sempre enigma para nós mesmos.
E é e será sempre enigmático como aparecem no mundo corpóreo o eu e a consciência, consciência da consciência, consciência de que somos conscientes... É claro que o Eu não pode ser pensado à maneira de uma alma, um homunculus, um observador dentro do corpo — o fantasma dentro da máquina. Há, portanto, uma correlação entre a consciência e os processos cerebrais. Mas significa isto que essa correlação é de causalidade, de tal modo que haverá um dia uma explicação neuronal adequada para os estados espirituais? Ou, como já viu Leibniz e é acentuado também pelo filósofo Th. Nagel, mesmo que, por exemplo, tivéssemos todos os conhecimentos científicos sobre os processos neuronais de um morcego, não saberíamos o que é o mundo a partir do seu ponto de vista? A questão é: como se passa de acontecimentos eléctricos e químicos no cérebro — processos neuronais da ordem da terceira pessoa — para a experiência subjectiva do eu na primeira pessoa?
Apesar de não se afastar por princípio a possibilidade de se poder vir a dar essa compreensão, o filósofo Colin McGinn pensa que talvez nunca venhamos a entender como é que a consciência surge num mundo corporal, a partir de processos físicos. Também o neurocientista W. Prinz disse: "Os biólogos podem explicar como funcionam a química e a física do cérebro. Mas até agora ninguém sabe como se chega à experiência do eu nem como é que o cérebro é capaz de gerar significados."
E sou livre ou não? É claro que, como escreveu o filósofo M. Pauen, se as nossas actividades espirituais se identificassem com processos cerebrais, segundo leis naturais, já se não poderia falar em liberdade: "as nossas acções seriam determinadas não por nós, mas por aquelas leis."
Mas, afinal, quem age, quem é o autor das minhas acções: o meu cérebro ou eu? "Como não é a minha mão, mas eu, quem esbofeteia esta ou aquela pessoa, não é o meu cérebro, mas eu, quem decide. O facto de eu pensar com o cérebro não significa que seja o cérebro, e não eu, quem pensa", escreve o filósofo Th. Buchheim.
Só existe liberdade, se há alguém capaz de autodeterminação. A determinação por um "eu", segundo um juízo de valor, é que faz com que uma acção seja livre e não puro acaso ou enquadrada no determinismo das leis naturais. Como já aqui tentei explicar, a liberdade é-nos dada numa experiência — faço a experiência de ser dado a mim mesmo e, consequentemente, a experiência de ser dono de mim próprio e, portanto, dono dos meus actos. Por isso, sou responsável por mim e por eles, isto é, respondo por eles e por mim. Dada a neotenia — nascemos por fazer —, a nossa missão e tarefa é, fazendo o que fazemos, fazermo-nos a nós próprios. E todos morremos inacabados. Para os crentes, morremos para Deus, o Outro absoluto que finalmente nos dirá quem somos para Ele e Ele para nós. A plenitude.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 22 de abril de 2023
As notícias da guerra da Ucrânia sobre o património cultural são motivo de grande preocupação.
EFEITOS DEVASTADORES DA GUERRA
Cerca de 250 monumentos já foram ou completamente destruídos ou danificados desde o início da guerra, a 24 de fevereiro de 2022. Segundo a UNESCO, verificaram-se graves danos nos locais de valor cultural do país, correspondendo os prejuízos a estragos irreparáveis. A diretora-geral Audrey Azoulay, estima que serão necessários 6,3 mil milhões de euros para recuperar os valores culturais materiais afetados na Ucrânia se se considerarem os níveis de qualidade próximos dos que existiam antes do início do conflito. Nesse sentido, a diretora-geral manifestou disponibilidade da organização para ajudar as autoridades ucranianas a elaborar um plano de reconstrução nacional para o património cultural do Estado soberano que é a Ucrânia. Deve ficar claro que os objetivos essenciais da UNESCO se relacionam com a Cultura da Paz, que constitui um fator fundamental para a salvaguarda da Carta das Nações Unidas e das finalidades originais da organização, que permitam realizar progressos efetivos nos domínios da educação, da ciência, da cultura e da livre circulação de ideias. Trata-se de contribuir para o desenvolvimento económico e social das nações e para a realização de uma cultura centrada na dignidade humana, em especial nos países e regiões em dificuldades, lembrando em especial desde as situações extremas de guerra às da pobreza, fome e destruição. Se lembrarmos a fórmula do preâmbulo do Ato Constitutivo da UNESCO, temos em vista o objetivo da “prosperidade comum da humanidade”. A construção, a prevenção e a manutenção da paz, bem como a proteção dos direitos humanos, têm, assim, uma essencial componente cultural, que não pode ser menosprezada. Por isso, segundo os fundadores da UNESCO, a manutenção da paz deveria ser uma obrigação superior a todas as outras, à qual se deveria subordinar toda a sua ação. Daí a importância fundamental da cooperação internacional, da compreensão mútua entre as nações, da solidariedade humana, da educação orientada para a liberdade, a igualdade e a justiça, bem como da ciência centrada no saber e na experiência, no saber fazer e da cultura assente no respeito dos outros e das diferenças, no exemplo e no cuidado.
A UNESCO E A GUERRA
A Ucrânia conta atualmente com sete bens culturais e um natural, declarados como Património da Humanidade pela UNESCO. Todos estão diretamente ameaçados, devendo referir-se, como temos lembrado, a Catedral de Santa Sofia de Kiev, o conjunto de edificações monásticas e o Mosteiro de Petchersk, símbolos da Nova Constantinopla, de um valor cultural e espiritual incalculável (inscrito em 1990); bem como o conjunto e a malha urbana medieval do Centro Histórico de Lviv, além das construções barrocas da cidade (inscrito em 1998 e 2008); dezasseis Tserkvas de madeira na região dos Cárpatos, em territórios da Polónia e Ucrânia, templos da igreja ortodoxa tradicional (inscritos em 2013); o Arco Geodésico do astrónomo Friedrich Georg Wilhelm Struve (realizado entre 1816 e 1855), abrangendo dez países, desde o Báltico ao Mar Negro (inscrito em 2005); a Residência dos Metropolitas da Bucóvina e da Dalmácia em Tchernivtsi, junto da Roménia e da Moldávia, do arquiteto checo Josef Hlavka, reflexo da política de tolerância religiosa do Império Austro-húngaro (inscrito em 2011); a Cidade Antiga de Quersoneso na Crimeia, que corresponde aos restos da cidade fundada pelos gregos dóricos no século V a.C. no norte do Mar Negro, importante centro vinícola animado pelos povos grego, romano e bizantino com referências até ao século XV (inscrito em 2013), além do Centro Histórico de Odessa (inscrito com caráter de urgência em 2023); e, no domínio natural, as Florestas Primárias de faias dos Cárpatos, abrangendo 12 países (inscrito em 2007). No caso de Odessa, foi seguido um procedimento excecional, que permitiu a integração em janeiro de 2023 na lista da UNESCO, tendo a diretora geral afirmado: “Odessa, cidade livre, cidade-mundo, porto lendário que marcou o cinema, a literatura, as artes, passa a estar colocado sob a proteção reforçada da comunidade internacional”. Perante a situação de guerra, esta inscrição corresponde à determinação da UNESCO no sentido de garantir que a cidade, afetada por muitos distúrbios mundiais, seja preservada de novas destruições. Paralelamente ao processo de inscrição, a UNESCO pôs em prática medidas de urgência visando assegurar a reparação dos danos infligidos no Museu de Belas-Artes de Odessa e no Museu de Arte Moderna. A organização forneceu os equipamentos necessários para inventariação de cerca de mil obras e da coleção documental dos Arquivos de Estado de Odessa, além de material de proteção para as obras ao ar livre. Estas medidas fazem parte de uma ação global da UNESCO na Ucrânia que já mobilizou 18 milhões de dólares em favor da educação, cultura, ciência e comunicação. Recorde-se que a Ucrânia é membro do Conselho da Europa e é signatária da Convenção-Quadro sobre o valor do Património Cultural para a sociedade contemporânea, assinada em Faro em 2005, entrada em vigor em junho de 2011. A Ucrânia assinou a Convenção em outubro de 2007, tendo sido a mesma ratificada em janeiro de 2014 e entrado em vigor em maio de 2014.
PATRIMÓNIO EM PERIGO
Considerando o património em perigo ou parcialmente afetado, refira-se o Centro Histórico de Chernigov, perto de Kiev e a Catedral da Transfiguração do século XI. Há a lamentar a destruição confirmada e irreversível do museu de Ivankiv, a noroeste de Kiev, com 25 obras da Maria Prymachenko (1908-1997), artista popular ucraniana, admirada por Pablo Picasso. Algumas obras deste acervo foram salvas por um cidadão local, com risco da própria vida. Representantes da UNESCO e autoridades ucranianas decidiram colocar Escudos Azuis nos bens ameaçados na zona do conflito, segundo a Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, assinada na Haia (1954). O Comité Internacional do Escudo Azul (Blue Shield ou Bouclier Bleu) foi fundado em 1996 pelo ICOM, ICOMOS, Conselho Internacional dos Arquivos e Federação Internacional dos Bibliotecários, com o fim de assegurar a proteção do património cultural ameaçado por guerras e catástrofes naturais. Invocar a situação dramática em que nos encontramos na Europa, num momento de guerra, de total incerteza, que podemos designar, como faz o Papa Francisco, como uma terceira guerra mundial em pedaços, significa pôr sobre a mesa os valores éticos que chamem a cultura, a arte e a humanidade à ordem do dia enquanto memória e património cultural como realidades vivas. Há demasiada indiferença, muito egoísmo e esquecimento. Precisamos de estabelecer comunicações entre os seres humanos, uma circulação de culturas e a possibilidade de imaginar, ou seja, de ver longe e largo, em nome da paz.
Nada existe que não tivesse começado. Mesmo na lonjura, decisiva porção iluminada, em territórios despojados de todo o fim, em areais de mares a desaguar desconhecidamente, mais não olhamos senão a extensão do que vimos. Se campos da livónia vão dar a campos da mazúria, se mosaicos amaciam na água de banhos mornos, e além houver só cemitérios seguindo cemitérios, e a meio deles, parado sem vento, o bosque de bétulas, se o sol é o lume do azeite a esmiolar o pão ou o clarão lascado nas muralhas de helsingor, se o enredo da morte é igual em toda a parte, seja na flauta de santa maria ou no gaiteiro de tallinn, é porque modulamos num lugar o que lastrou de outro. Mesmo sem querer, ou sejam sombras afastando-se, mais não tecemos que a linha de acasos e acertos que uma corrente conduz, a cada um, em separado, à passagem mais sensível do acabamento. Mesmo isolando os lugares numa função laboriosa, detalhando as suas divergências, e as pontas extremas — a parecença entre o que são e o que pensámos serem, mesmo nas regiões cruzadas por comboios extensos, onde a noite cairá em escamas de lavanda, seguiremos a mesma história — afundamos os pés no mesmo solo. Naquilo por que vamos repetidamente levados, ansiando o que se manifeste acolá na próxima enseada, alisando com a mão os castanheiros onde inscrevemos, depois de outros, nossos sinuosos nomes, nossos amores, sempre tornamos ao ponto em que tudo se repete e inicia, de que atingimos apenas um minuto só — um instante, a lâmina que medeia o ano que passa e o ano que vem.
in A Ordem do Mundo, 2005
Nothing exists…
Nothing exists that hasn’t had a beginning. Even in the distance, a clear lit speck, in territories stripped from all limits, on sands that flow from unknown seas, we only contemplate the extent of what we perceived. If fields in livonia lead to fields in masuria, if tiles are smoothed in tepid bath waters, and further on graveyard follows graveyard, and in their midst, inert in the lack of wind, the birch wood stands, if the sun is the flame of the olive oil crumbling the bread or the chipped lightening on the walls of helsingør, if the death plot is everywhere the same, be it in the santa maria flute or in the tallinn concertina it is because we modulate in one place what has seeped from another. Even unwillingly, or perhaps it’s the shadows on the move, we weave no more than a row of chances and discretions along a current which takes each one of us, separately, to the most sensitive final passage. Even if laboriously we detach the places, detailing their diversions and extremes – the similarity between what they are and what we thought they were, even throughout regions intersected by extensive trains, where night will fall in scales of lavender, we’ll follow the same story – we sink our feet in the same mud. In that which repeatedly sucks us in, as we yearn for whatever comes to pass further in the next cove smoothing with our hands the oak trees on whose bark we inscribe, like others before us, our sinuous names, our loves, we constantly return to the point where all is repeated and begun, of which we grasp a mere minute – an instant, the blade mediating between this year and the next.
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA NINGUÉM QUE NÃO TENHA NOME
1 - A coleção chamava-se "Os Grandes Livros da Humanidade". Julgo que se começou a publicar nos finais dos anos 30 do século passado, ou nos inícios dos anos 40. Editou-a a Livraria Sá da Costa, ao tempo em que também editou os famosos "clássicos" que permitiram o acesso efémero a muito do melhor da nossa literatura e da literatura universal. Mas Os Grandes Livros da Humanidade eram adaptações dos mais "famosos textos", "destinados a promover nos jovens e no povo o gosto pela cultura". Não sei que resultado tiveram junto do "povo", mas desculpa-se o chavão pela generosidade do propósito. Junto dos jovens, por mim falo. Se aprendi a ler, devo-o, em boa parte, a esses livros brancos de capa a cor que me revelaram, era eu criança, a "Peregrinação e a História Trágico-Marítima", o "Caramuru" e a "Crónica do Condestável". António Sérgio, Aquilino, Jaime Cortesão, João de Barros, Marques Braga, etc. foram os adaptadores. Nem sempre brilhantes, mas quase sempre cativadores. O melhor resultado - sempre falando por mim e por aqueles que de mim herdaram - foi alcançado por João de Barros (que eu ainda conheci, a buscar os netos à escola, baixinho, muito branquinho e de monóculo) com a adaptação da "Odisseia" de Homero, que foi o segundo título da coleção. Na capa, figurava-se Polifemo, o Cíclope medonho, aquele que "não se assemelhava / a quem se alimenta de pão, mas antes ao cume cheio de arvoredos / de uma alta montanha, que à vista se destaca dos outros". Imenso e nu, com um só olho na testa, como todos os da sua estirpe, estava sentado no chão de uma gruta, com as partes vergonhosas convenientemente cobertas e segurava na enorme dextra dois jovens que se preparava para comer. Fosse pela capa (de Martins Barata) fosse pela narrativa do célebre episódio, a história do Cíclope que comeu seis dos dez companheiros de Ulisses foi sempre a que mais me fascinou, de entre as terríficas e maravilhosas aventuras de Ulisses, desde que saiu de Tróia, até que aportou em Ogígia, onde vivia Calipso, a deusa de belas tranças, "deusa terrível de fala humana" que dele cuidou e a ele amou (Cantos IX a XII da "Odisseia"). Muito mais tarde, em adaptação de adaptação, bem ao meu jeito e ao meu modo, contei-a aos meus filhos e aos meus netos, não me temendo de assustá-los com os três banquetes antropófagos e com a minuciosa descrição de como Ulisses cegou o monstro, girando no único olho dele o tronco de oliveira em brasa, até o sangue "correr quente em toda a volta". Entre um e outro festim carnal, tinham rido às gargalhadas, quando eu lhes contava como o astuto Ulisses o enganara no nome, dizendo chamar-se Ninguém. "Ninguém é como me chamo. Ninguém chamam-me / a minha mãe, o meu pai e todos os meus companheiros." Mais riam quando, já cego, Polífemo chamava os irmãos cíclopes em seu socorro. "Quem te mata pelo dolo e pela violência?". "Ó amigos, Ninguém me mata pelo dolo e pela violência". E eles iam-se embora, dizendo estas palavras "apetrechadas de asas". "Se na verdade ninguém te está a fazer mal e estás aí sozinho / não há maneira de fugires à doença que vem de Zeus." Ulisses "ria-se no coração", "porque os enganara o nome e a irrepreensível artimanha". É claro - ou é escuro - que eu reforçava Homero entre os versos 385 e 420 do canto IX (porque é que os cantos nonos são sempre os mais libidinosos, é pergunta para que ainda não achei resposta). Polífemo não se ficava com a seca recusa dos irmãos. Na minha versão, também "destinada a promover nos meus descendentes o gosto pela cultura", sem que eu e eles tivéssemos disso clara consciência, Polífemo insistia: "Não! Não! Não se vão embora! Ninguém me faz mal! Ninguém me mata!" Três vezes o repetia, acentuando desesperadamente o Ninguém maiúsculo. Três vezes os outros o repreendiam. "Se ninguém te faz mal, se ninguém te mata, porque nos importunas a esta hora da noite e nos arrancas ao sono?" Entre a maiúscula e a minúscula, entre o nome definido e o pronome indefinido, Polífemo se perdia para gáudio de várias gerações de benardzinhos.
2 - Conheci, pois, a "Odisseia", mesmo se contada às crianças, em mui tenra idade e dei-a conhecer a crianças de igual tenrura. Além de Polífemo, o Cavalo de Tróia, Círce "a das muitas poções mágicas", a ilha das duas sereias, Cíla com as doze pernas, os seis pescoços e as três filas de dentes, a Caríbdis temível, sugadora da água escura, e as "robustas ovelhas do sol", pastoreadas pelas ninfas de belos cabelos, Featusa e Lampécia. Só no fim da adolescência, entre o Pedro Nunes e os corredores do Convento de Jesus, no meio das voltas de muitos elétricos, me abeirei (Clássicos Sá da Costa) da versão em prosa dos Padres Dias Palmeira e Alves Correia, de que me apartou o português retorcido. Foi nos tempos em que aprendi algum grego e, para meu grande espanto de hoje, juro que a Ana Maria e eu chegámos a traduzir do original os primeiros cem versos do canto I. Mas a plena revelação deu-se com a tradução francesa (em prosa, como a dos padres portugueses) de Mario Meunier, edição da Guide du Livre de Lausanne, que me acompanhou pela vida dentro. Se me lembro do princípio, em francês o recordo: "Quel fut cet homme, Muse, raconte-le moi, cet homme aux milles astuces, qui si longtemps erra, après avoir renversé de Troade la sainte citadelle?" A pouco e pouco, esquecido o português de João de Barros, e ainda mais esquecido o grego dos meus 19 anos e de um explicador diligente e tímido, de quem nem o nome recordo, a "Odisseia" começou a falar-me em francês com um Odisseus de mil astúcias e uma Atena "aux yeux pers", adjetivo que me queriam convencer a traduzir por "glauco", palavra que sempre me pareceu feia, lembrando-me logo horrores de glaucomas. Se sempre esse livro me foi "o livro" (pelo menos tanto quanto A Bíblia), faltou-me sempre, como para A Bíblia me falta, a língua dele. E, nestas coisas, não há volta a dar: ou a língua é a original (e é tarde demais para eu pensar em voltar a aprender grego, de que, néscio, tão cedo me distraí) ou a língua é a minha. Mas, na minha língua, nenhuma "Odisseia" me valia, embora me digam que há uma ou outra de tempos pretéritos e de acesso recôndito que vale a pena consultar.
3 - Por isso, o maior acontecimento editorial do ano que acabou há poucos dias foi o lançamento da tradução de Frederico Lourenço, que motivou esta subjetiva digressão, onde todas as passagens citadas entre aspas dele vêm, com a óbvia exceção das autocitações que fiz da minha versão oral para crianças. Publicada pela Cotovia, essa tradução define logo, com clareza e concisão admiráveis, os seus dois objetivos fundamentais: a) colmatar uma lacuna evidente, pois que nenhuma tradução disponível, do original grego e em verso, existia para quem, como eu, procurava uma língua para Homero; b) "Devolver ao leitor de língua portuguesa o prazer do texto homérico. Significa isto que, apesar de vertida do grego e com a máxima fidelidade ao original, não é uma tradução arcaízante nem académica. É uma tradução para ser lida pelo gozo de ler." Da fidelidade ao original não serei eu, pelas razões que já expliquei, a poder ajuizar. Mas aquela que é unanimemente reconhecida como a nossa maior helenista - falo da Prof. Maria Helena Rocha Pereira, conhecida por ser parca em elogios - já veio a público (creio mesmo que no PÚBLICO) gabar essa fidelidade. Quanto ao "gozo de ler" (e como eu estou agradecido ao Frederico Lourenço por ter tido a coragem de o invocar como objetivo supremo), ele me foi incomparável. Mais ainda quando a leio em voz alta ("além do que é preciso não esquecer que 'A Ilíada' e 'A Odisseia' são textos orais. Não foram concebidos para a leitura. A forma de receção do texto, implícita na própria contextura poética, é a audição") do que quando a leio em voz baixa. Não me sobra espaço para exemplos. Mas, no "verso aparentemente livre", "no fundo apoiado sobre o hexâmetro" e no ritmo dele, que Frederico Lourenço foi buscar a poetas como Sophia, Ruy Belo ou Eugénio de Andrade, soube ele encontrar a "pulsação das sílabas", num português em estado de graça. E, nesse português, contou a história do regresso a Ítaca de Odisseus, o filho de Laertes, aquele que só disse o seu nome e só contou essa sua história, quando o pai de Nausicaa, a das lindas vestes, lhe recordou que "entre os homens não há ninguém que não tenha nome, uma vez que tenha nascido". E com o meu nome vos digo que um dia, quando assentar a poeira e não restar memória dos "light tops" editoriais de 2003, se saberá que o grande livro escrito em língua portuguesa, neste ano da Graça de Deus, foi "A Odisseia", traduzida por Frederico Lourenço, quando Palas Atena nele insuflou a grande força poética.
por João Bénard da Costa 9 de janeiro de 2004, in Público
Eis algumas palavras da intervenção de Paulina Chiziane, escritora moçambicana e prémio Camões 2021, na abertura do festival literário da Póvoa de Varzim, este ano: “Começaria por um verso célebre: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Mas que tempos? De que tempos falo eu, que vim de África? Falo (…) dos tempos de ódio até aos tempos de paz.”
Acrescenta: Estamos aqui nas Correntes d`Escritas, todos chamados a conviver apenas numa língua que é a Língua Portuguesa. Estão aqui todas as raças. Viemos de vários países. Temos várias histórias, algumas de opressão, outras de opressores, outras de lutas de libertação. O que aconteceu para estarmos aqui? O que nos uniu? Mudaram os tempos”
Prosseguindo, responde: “As Correntes d`Escritas provam-nos que, (…), o mundo pode ser melhor. O opressor de ontem pode ser o amigo de hoje. As Correntes d`Escritas: este movimento que nos uniu e tirou de casa, de diferentes continentes, para estarmos aqui. Se, ontem, a língua portuguesa era para nós a língua do opressor (…) hoje é a língua do “bontu” (…) que significa língua de humanidade, (…) de harmonia, (…) de fraternidade. (…) Deixou de ser língua de opressão para ser língua de união. (…) os tempos podem mudar para melhor. (…) E, para o amanhã, na língua portuguesa, podemos construir um mundo melhor.”
Outro moçambicano, Mateus Katupha, quando antigo ministro da Cultura, em 1999, declarou: “A língua portuguesa já não é mais só dos portugueses, é universal”.
Linguagem só surpreendente para quem defende que os portugueses transferem para o idioma devaneios, quimeras e sentimentos imperiais, porque a língua nasceu em Portugal, pertence aos portugueses, que não aceitam o princípio simples de que pertence àqueles que a falam, tratando-se de uma visão em que o nosso país, por ter sido o ex-colonizador, tem de ser sempre o mau da fita.
Por mais que se diga que este idioma comum pertence, em primeiro lugar, aos respetivos falantes em igualdade de partição e uso, que Portugal não programou qualquer estratégia neocolonial, nem tem poder para, doravante, por si só, se impor como “força imperial” através da língua (voluntariamente escolhida pelas ex-colónias), que os antigos impérios coloniais europeus são cada vez menos eurocêntricos, dada a emergência e ascensão, a todos os níveis, de algumas das suas ex-colónias, há sempre quem entenda, por ressentimentos, no mínimo, que tudo o que se herdou do ex-colonizador (e do ocidente) é sempre mau, incluindo a língua, por muito útil e funcional que seja, mesmo que, por mera opção dos mesmos, em qualquer momento, deixe de o ser.
É, pois, gratificante o reconhecimento feito, sem ressentimentos, a esta língua comum, por vozes africanas, neste caso de Moçambique, nomeadamente por um dos nomes consagrados da literatura moçambicana e lusófona (Paulina Chiziane) que, juntamente com Mia Couto e Craveirinha, também a promovem internacionalmente, e a quem o português muito deve, em novas palavras e vocábulos, originários do continente africano.