A CIDADE VELHA…
O programa “Visita Guiada” da RTP-2 de Paula Moura Pinheiro regressou, partindo, em boa hora, até à Ilha de Santiago, à Cidade Velha da Ribeira Grande em Cabo Verde. Liga-me uma relação de especial afeto a esta cidade. Acompanhei com muito gosto e entusiasmo a sua classificação pela UNESCO como património da humanidade em junho de 2009 e não esqueço o empenhamento pessoal do Presidente Pedro Pires, o entusiasmo de Mário Soares, que depôs formalmente a favor dessa classificação, do mesmo modo que a defesa dessa causa pelo antigo Diretor-Geral da UNESCO Federico Mayor. Lembro ainda o papel ativo desempenhado pela Embaixadora Graça Andresen Guimarães, então representante de Portugal na Praia, bem como o incansável papel desempenhado pelo grande amigo Conselheiro José Carlos Delgado, meu antigo aluno, então na presidência do Tribunal de Contas de Cabo Verde. E desejo que as duas “visitas guiadas” agora apresentadas sejam oportunidade para aprofundar a qualidade patrimonial da Cidade Velha.
Os testemunhos do arqueólogo André Teixeira e do meu amigo António Correia e Silva fizeram luz sobre a importância fundamental da Ribeira Grande como placa giratória das navegações do Atlântico, o último grande oceano a ser conhecido pela humanidade. E a Cidade Velha foi a primeira fundada por europeus ao sul do Saara, dois anos após a morte do Infante D. Henrique (1462), a quem tinha sido atribuído por D. Duarte o senhorio da ilha. A abundância de água e as facilidades para a agricultura na foz da Ribeira Grande foram determinantes na escolha do lugar para centro do povoamento, servindo depois de apoio às rotas marítimas, no abastecimento de água e de frescos e na possibilidade de se efetuarem reparações dos navios. O conjunto monumental da Cidade Velha envolve o altaneiro Forte de S. Filipe, base do sistema defensivo da cidade; a ruína da Sé Catedral construída, sob as ordens de Frei Francisco Cruz, terceiro bispo de Cabo Verde, entre 1556 e 1700, mas com vida curta, já que foi destruída pelo ataque do corsário francês Jacques Cassard; as ruínas da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, construída depois da chegada dos primeiros colonos e ainda a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, do século XV, onde pregou o Padre António Vieira em 1652, que se admirou com a qualidade artística encontrada.
Apesar de ter deixado de ser capital em 1769 em benefício da Praia, nota-se ainda na Cidade a estrutura da urbe antiga – com o Largo do Pelourinho, ponto de encontro de quarteirões irregulares, mas também base de um tecido urbano de desenho claro nas Ruas da Banana e da Carreira, abrindo para os bairros de S. Pedro e S. Brás, com as ruas da Horta Velha e Direita da Cidade. A feitoria de Santiago foi até à fixação em S. Domingos do Cacheu na Costa da Guiné em fins do século XVIII a feitoria portuguesa de África, sendo escala das navegações do Atlântico, porto de abastecimento alimentar e da navegação, reexportador das mercadorias africanas com destino à Península Ibérica e às Índias de Castela. Daí a presença de mercadores andaluzes ao lado dos portugueses, numa partilha ibérica. A evolução cultural e económica é de um grande interesse, pela constituição de uma sociedade com uma rica marca própria, evidenciada na evolução da língua portuguesa e dos crioulos, sendo levados a crer que os africanos se serviram do português, embora o tenham adaptado a uma estrutura gramatical próxima das suas línguas de origem. O híbrido cultural que encontramos tem, assim, uma configuração múltipla, não só fruto do encontro entre o branco e o escravo, mas também de africanos de diferentes origens (balantas, fulas, mandingas, bijagós), marcados pela procura de uma identidade própria. Temas apaixonantes.
GOM