Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Há um católico, que pessoalmente não conheço, mas muito preocupado com os dogmas e que frequentemente me consulta sobre eles. Telefonou-me recentemente a perguntar: “Como cristãos podemos e devemos odiar o diabo? É que Jesus disse que devemos amar os inimigos...” Disse-lhe que o problema não se põe, pois o diabo não existe. Ele: “Mas está na Bíblia...”.
Dado o interesse que o diabo desencadeia — reuniram-se ainda há pouco tempo em Roma 241 alunos, vindos de 42 países, para um curso para futuros “expulsadores de demónios” —, volto ao tema, retomando, porque facilita a reflexão, uma conversa que tive há anos na televisão com a jornalista Fátima Lopes. Uma reflexão sobre o diabo, as possessões diabólicas, demoníacas, e os exorcismos.
Fica aí o essencial da conversa, prevenindo que nem sempre será literal.
Antes de mais, vamos começar por explicar às pessoas o que é isto do exorcismo. Comecemos por aí.
O exorcismo parte do princípio de que há diabo e que o diabo, por vezes, se mete dentro de uma pessoa.
Atormenta as pessoas.
Não atormenta só. Mete-se mesmo dentro de uma pessoa e então vem o padre, e só pode ser um padre que esteja nomeado pelo bispo da diocese para isso, para expulsar, tirar o diabo de dentro da pessoa.
Dito isto, se me pergunta se eu acredito nisso, não, não acredito.
Mas não acredita que o diabo possa entrar para dentro da pessoa ou não acredita no próprio diabo?
Eu não acredito no diabo. O diabo é o contrário de símbolo, que significa reunião, coincidência (por exemplo, uma aliança no dedo de alguém remete para outra aliança no dedo de outra pessoa, o que significa que há entre elas uma união). A palavra diabo também vem do grego, diábolos, que significa aquele que separa, que dispersa, que desune, que traz zaragatas e problemas à vida. Se me pergunta se há diabo, eu não acredito. Aliás, o diabo não está no Credo, no Credo cristão. Jesus não pregou o diabo, Jesus pregou o Reino de Deus, o Evangelho, o Mistério último, que é Deus enquanto Pai/Mãe. O Evangelho é uma notícia boa, como diz a própria palavra, e felicitante, que traz alegria, felicidade, às pessoas. Há alguma notícia mais felicitante do que esta? Deus gosta de todas as pessoas, Deus gosta de si, de mim, foi isto que Jesus veio dizer. Deus ama-nos, ama todos os homens e mulheres, independentemente da sua condição, independentemente de se ser católico ou não, ama os ateus, ama-nos enquanto filhos e filhas, porque Ele é um Pai/Mãe querido e bom. Deus não nos criou para a sua maior honra e glória, não, Deus criou-nos por causa de nós, porque é amor e quer a nossa felicidade. Esta é uma notícia boa e felicitante, o Evangelho de Jesus.
Concordo plenamente consigo. Mas como, se na Igreja Católica, se fala às vezes, não todos, mas há quem fale, desta figura do diabo? É uma coisa extremamente intimidante; a figura do diabo põe-nos em sentido!
Claro. Veja, não é por acaso que o diabo até tem tantos nomes: é o Diabo, é o Satanás, é o Belzebu, é o Mafarrico, é o Lúcifer e, frequentemente, aquilo que eu noto é que há pessoas que não acreditam em Deus, mas acreditam no diabo. Eu assisti uma vez a um debate na Alemanha — eu era muito amigo do maior biblista do século XX, católico, professor na Universidade de Tubinga, Herbert Haag, e também conheci pessoalmente um dos maiores filósofos do século XX, alemão também, Ernst Bloch, ateu. Eles tiveram uma vez um debate e veja: o padre a dizer que não havia diabo e o ateu a dizer que havia diabo. Já viu?
Fico baralhada!
É uma baralhada, é! Porque há muitas pessoas que não acreditam em Deus, no Deus de Jesus, por culpa também, às vezes, da Igreja e dos padres, que, em vez de pregarem o Evangelho, esta notícia boa e felicitante, em vez de pregarem o Evangelho, pregam o Disangelho, que é uma notícia má, uma notícia que não traz alegria e felicidade, mas traz medo. E muitas vezes prega-se o diabo por causa do medo; é que, se as pessoas tiverem medo, é mais fácil exercer o poder sobre elas e controlá-las. Ora, é preciso dizer a verdade: Jesus não pregou o diabo, pregou o Reino de Deus, a alegria do Evangelho.
Mas agora diga-me uma coisa, pois não podemos perder de vista este tema do exorcismo. O que me está a querer dizer é que, quando alguém, por exemplo, diz: eu tenho que chamar aqui um padre habilitado para fazer um exorcismo porque esta pessoa está possuída, porque esta pessoa está o que for, isto não faz sentido. Então, o que se passa com essa pessoa que tem comportamentos estranhos, desajustados, alucinações às vezes, coisas esquisitas? Se não é o diabo, é o quê?
Jesus ajudou as pessoas e é isso que a Igreja e os padres e todos devemos fazer: ajudar as pessoas e ajudá-las com os meios que nós temos.
Foi isso que Jesus pediu, não pediu outra coisa...
Exacto. Se Deus é amor, ama-nos, gosta de nós, devemos gostar de nós e uns dos outros, é isso, e ajudarmo-nos. De facto, muitas vezes, na altura, atribuía-se ao diabo doenças, depressões, que nós hoje sabemos que são do foro psicológico ou psiquiátrico e, portanto, devemos ajudar as pessoas mandando-as ao médico, mandando-as ao psiquiatra. É isso que é preciso fazer. Não se pode de modo nenhum continuar a atribuir ao diabo aquilo que efectivamente é de outra ordem. Nós hoje, felizmente, sabemos mais da mente, sabemos mais do cérebro...
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 27 de maio de 2023
Referimos hoje a reconstrução no Jardim da Estrela da antiga Creche, pioneira em Lisboa na educação de infância, segundo o método de Friedrich Froebel (1782-1852), que dará lugar à nova Biblioteca do Ambiente.
Junto do coreto do jardim da Estrela, António Homem Cardoso recordou-me que aquele cenário nos lembrava o tempo do Passeio Público. De facto, recordando-nos de Eça de Queiroz, foi no velho Passeio, no enredo de “O Primo Basílio”, que Jorge conheceu Luísa e foi lá que D. Felicidade esperou pelo Conselheiro Acácio, afrontada por flatulências. Aquele belo coreto da Estrela, o maior da capital, nasceu a pensar no fim do Passeio Público e foi da autoria do prolífero arquiteto José Luís Monteiro, que também assinou a Estação do Rossio e a Sala de Portugal da Sociedade de Geografia. O coreto foi inaugurado em 1894 na Avenida da Liberdade (depois de estar dez anos desmontado num armazém), tendo sido, apenas em 1936, transferido para onde está. A história conta-se em duas palavras: na reconstrução de Lisboa depois do Terramoto, Sebastião José encarregou em 1764 o arquiteto Reinaldo Manuel de projetar um parque à inglesa, no leito alagadiço da Ribeira de Valverde, nos terrenos das Hortas da Cera, da Mancebia e de S. José, que ficou concluído entre 1773 e 1777. Depois da vitória liberal em 1834, houve uma renovação do Passeio Público, a construção de uma imponente cascata, a implantação das estátuas decorativas dos rios Tejo e Douro e o rebaixamento dos muros. Mas com o impulso de José Gregório Rosa Araújo, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, e segundo o plano da autoria de Frederico Ressano Garcia, sob um coro de protestos, o Passeio Público foi demolido, dando lugar em 1879 à Avenida da Liberdade, segundo o modelo parisiense.
Se falo do arquiteto José Luís Monteiro, tenho de referir que se lhe deve a Escola Froebel ou “Creche” do Jardim da Estrela, que foi totalmente reconstruída, com respeito da traça original de 1882, para instalação da nova Biblioteca do Ambiente. O Jardim de Infância da Estrela resultou da aplicação da Lei de 2 de maio de 1878, assinada por Rodrigues Sampaio, que determinava a criação de estabelecimentos públicos de Educação infantil. José Luciano de Castro em 1880 defendeu, como diversos pedagogos, a adoção do método de Froebel e, no âmbito das comemorações do centenário de Camões, a Câmara Municipal de Lisboa tomou a iniciativa de fundar uma instituição modelo, que foi implantada no Jardim da Estrela, por ser o que melhor cumpria as recomendações do pedagogo alemão: integração na natureza, janelas amplas para garantir a renovação do ar, entrada de sol, iluminação natural, e pátios cobertos onde as crianças poderiam trabalhar e brincar. Finalmente, a 21 de abril de 1882, data exata do centenário do nascimento de Friedrich Froebel (1782-1852), foi inaugurado o estabelecimento educativo (Kindergarten), apesar de ter havido um breve contratempo pelo protesto popular em virtude da destruição de sete árvores e nove vergônteas. A escola começou logo a funcionar com duzentas crianças, tendo sido frequentada até 1892 por três mil crianças, entre os 2 anos e meio e os 7. Para Froebel, discípulo de Pestalozzi, a criança deveria ser tratada com compreensão e liberdade e o educador deveria ser um guia experimentado e amigo fiel, com mão flexível, mas firme. O alemão foi o primeiro pedagogo a dar importância ao brinquedo, à atividade lúdica e à família nas relações humanas, valorizando o contacto com a natureza, as excursões de estudo e a utilização das histórias, mitos e contos como fatores de criatividade e sentido crítico. A memória da Escola Froebel merece, assim, referência especial. Foi uma experiência pioneira, defendida pelos melhores espíritos do tempo – na compreensão exata de que a aprendizagem desde cedo e ao longo da vida é o melhor modo de formar cidadãos livres e responsáveis.
as manhãs primitivas queimam o sono e a febre crepita pela parte mais vertical das palavras. o teu dedo sobre o meu nome faz uma pressão insuportável e há um espasmo que percorre este texto enquanto o inferno nos nasce lentamente no peito como uma cobra a rastejar junto às cavidades inseguras das horas. dos livros soltam-se faíscas e as fogueiras cicatrizam com urgência cada respiração menos voluntária mas há designações menos doces que outras e há sílabas que se propõem a tentar vibrar até ao centro da mais funda inocência.
in O Sono Extenso, 2011
Innocence
rough mornings burn away sleep and fever fizzes up the most vertical of words. your finger on my name exerts agonising pressure and a spasm runs through this text while hell is slowly hatching inside my chest like a snake creeping into the unsteady hollows of the hours. sparks fly out of books and the flames urgently heal each less intended breath but there are assignments less sweet than others and there are syllables set to vibrate in the core of the deepest innocence.
LITERATURA E MÚSICA por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
"Regresso de Kyoto a Tokyo, mas não escapo às associações recreativas de senhoras japonesas. Num jantar na embaixada de França, fico à mesa presidida pela embaixatriz, ao lado da Senhora Totomi, próxima da família imperial e presidente de "Les Amies de la Langue Française", clube de senhoras da "alta", que reúne japonesas eruditas e outras francófonas do corpo diplomático. A dama é do tipo arredondado - de corpo e espírito - esperta e bem humorada. Fala-me do seu grupo de cultura e recreio, e desafia-me a entretê-las, num chá, com uma charla sobre literatura e música francesa. Animado pelo Château Margaux, digo-lhe que mais facilmente lhe diria sim se o grupo antes se chamasse "Les Joyeuses Filles de la Langue Française" ou "Les Parlantes de Français Galant"... Ri-se, com a mão gordinha, como terceira bochecha, a esconder-lhe a boca gulosa, e concede: "Chame-nos o que lhe parecer bem, mas tenha a gentileza de nos falar de literatura e música!" Assim me arrancou um assentimento condicional: proponho-me levar-lhes algumas poesias em várias línguas europeias, todas elas traduzidas em música, ou temas que a literatura e a música tenham coincidentemente tratado. E prometo não esquecer discos que as reproduzam. Não recorrerei sempre a libretos de ópera, nem a letras propositadamente feitas para canções... Assim se desenhou o programa que contigo aqui partilho. Apetece-me começar pelo alemão, não por me dirigir a francófonas, nem por me ser familiar, mas por me ocorrer a semelhança dos apelidos do poeta (Christian Schubart) e do compositor (Franz Schubert). Ou por me acontecer trautear a "Die Forelle" quando estugo o passo na pressa de ir fazer chichi. Brinco. O "lied" de Schubert - que ouvi pela primeira vez adolescente ainda - canta as palavras de Schubart, começando ledamente assim: "In einem Bächlein helle, / Da shoss in froher Eil/ Die launige Forelle, etc... Num límpido ribeiro, alegremente, a truta foge, viva, veloz e caprichosa. E eu na margem, em doce sossego observava o alegre banho da bela na clara água do ribeiro. Ein Fischer mit der Rute, etc... Resumindo: esse pescador à linha, da margem vê o peixinho a mover-se, e o poeta pensa que ele não apanhará a truta com o anzol. Mas eis que esse ladrão, num movimento de onda, a prende, e o poeta sente, com o coração aos pulos, o debater da presa. Depois, o poema conclui com um aviso à juventude sobre o perigo da inconsciência, e com uma evocação erótica, que o "lied" de Schubert não retoma: "Denkt doch an die Forelle;/ Seht ihr Gefahr, so eilt!/ Meist fehlt ihr nur aus Mangel/ Der Klugheit. Mädchen, seht/ Verführer mit der Angel! Sonst blutet ihr zu spät...". Pensem pois na truta e se um perigo vier, fugi! A mais das vezes é por falta de prudência que pecais. Sede vigilantes, meninas de olhos doces, com os pescadores! Podereis sangrar tarde demais.
Uma das senhoras pergunta-me porque não escolhi antes a "Ode à Alegria" do Schiller, que é, afinal, um hino à amizade (seria então "An die Freunde" em vez de "Freude") que coroa a 9ª sinfonia de Beethoven. Respondo que "Die Forelle" me parece muito próximo do espírito da poesia japonesa pelo recurso à natureza como metáfora. E recito "tobu ayu no soko ni kumo yuku nagare kana", um "haiku" de Onitsura, que se pode traduzir mais ou menos assim: "um peixe voador...nuvens por debaixo, fluindo na corrente..." Ou seja: o peixinho, saltando, sobe o ribeiro (para ir desovar a montante)... e, refletindo-se nas claras águas, as nuvens parecem deixar-se levar para o mar... Alusão à efemeridade da vida: estes peixes ("sweetfish", em inglês) nascem no alto dos rios donde depois descem, na Primavera, até ao mar donde regressam, no Verão, para subirem contra a corrente e porem acima os seus ovos (como o peixinho do "haiku"). No Outono, regressam ao mar, para morrer. Vivem um ano só. Ponho a tocar no gira-discos "Die Forelle", cantada pela Elisabeth Schwarzkopf, acompanhada ao piano por Gerald Moore. E logo salto do alemão para o castelhano, da Germânia para a Hispânia. De Franz Schubert para Manuel de Falla, de peixes e nuvens, que as águas da vida percorrem, para flores e pássaros que a terra pára, porque é assim o tempo: corrente ou quieto, somos nós que passamos por ele. E ocorre-me a "arte poética" do Jorge Luis Borges: "Mirar el rio hecho de tiempo y agua / Y recordar que el tiempo es otro río, / Saber que nos perdemos como el río / Y que los rostros pasan como el agua." Antes de ouvirmos todos (devia dizer todas, sou o único homem na sala!) uns trechos de "La Vida Breve" do Falla, pela Orquestra Nacional de España, dirigida por Rafael Frühbeck de Burgos, e com Victoria de los Angeles no papel de Salud, leio-lhes uns versos da seguidilha, que são, como todo esse drama musicado por Falla, de Carlos Fernández Shaw: "Flor que nace con el alba / se muere al morir el dia. / Que felices son las flores,/ que apenas puen enterarse, / de lo mala que es la vía! / Un pájaro, solo y triste, / vino a morir en mi puerta; / cayó y se murió en seguía. / Pa vivir tan triste y solo / mas le vale haberse muerto!" Enquanto as damas escutam, em concentrado arrebatamento, calado vou pensando no meu próximo passo, numa ponte para um tema japonês. E surge-me a "Glover Mansion", em Nagasaki, que se celebra como sítio do amor letal de Cio-Cio San por Pinkerton, na "Madama Butterfly" do Puccini: "mutatis mutandis" (a localização e uns pormenores) está ali o tema de "La Vida Breve". Que é, penso eu, mais do que o do amor humano " traído", o da perplexidade enquanto incredibilidade onde a esperança morre. Porque, afinal, nem Salud nem Cio-Cio morrem, muito embora partam deste mundo. Permanecem na memória de muitos corações e testemunham o desengano, essa pena terrível. Será isso o inferno: não haver esperança? As madamas da sala lembram-se logo da "Madame Chrysanthème" do Pierre Lotti, que também inspirou outra ópera: a "Lakmé" do Delibes. Uma das senhoras, todavia, alvitra que o fogo inicial da japonesa abandonada se acendera já no século XVI, por um português marinheiro... A ária mais conhecida da "Butterfly" - e quiçá a mais bonita - é um canto de esperança que lhe sai do fundo da alma: "Un bel di vedremo / levarsi un fil di fumo / sul estremo confin del mare. / E poi la nave appare - poi la nave bianca / entra nel porto, romba / il suo saluto. Vedi? / È venuto!" Aproveito a emoção inesperada daquelas senhoras instaladas em vidas onde o amor, muitas vezes, é um episódio passageiro ou uma convenção, para lhes falar de uma perspetiva escatológica, que lhes é culturalmente estranha: o amor humano, porque gerador e portador de esperança, é uma promessa. E promessa é compromisso. Para um cristão, adianto, é um sacramento, um sinal do que se há-de cumprir um dia. "Un bel di vedremo...". Com tanta conversa e música, esqueci o tempo e esse jeito de as mulheres japonesas levarem a água ao seu moinho. Ficou combinado voltar e falar-lhes do nome que se diz ou não deve dizer: de Turandot e de Lohengrin. Depois te contarei. Vou agora escrever ao nosso Camilo Português: penso dar-lhe conselhos, mas afinal desabafo-lhe inquietações. Envelheço.
Adeus Princesa!"
A carta que Camilo Maria me escreveu e aqui refere manifesta a sua preocupação com a deterioração da consciência ética no governo das sociedades ocidentais. Publicá-la-ei, apesar de lhe sentir algum cansaço, que nem a ironia com que sempre nos fazia rir consegue disfarçar.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 07.06.13 neste blogue
140. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O POLITICAMENTE CORRETO
Se, no essencial, a liberdade de expressão se justifica para os que discordam de nós, nos escrutinam, incomodam e questionam, dado que só me interessa quando sou controverso, perseguido ou posso sê-lo, pela minha contundência ou sentido crítico, não se justificando quando concordam connosco ou dizem bem, uma vez que, quando assim é, não somos escrutinados, incomodados, questionados ou perseguidos, é porque é um foco de resistência ao poder, à normalização, ao politicamente e usualmente correto, uma segurança das minorias contra as maiorias, dos mais fracos contra os fortes, uma garantia de limites ao poder estabelecido.
Se o poder, por sua vez, tem como arma de defesa o politicamente e usualmente correto, o “status quo”, o pensar da maioria, coexistindo em democracia com o politicamente incorreto e a discordância via uso da liberdade de expressão, esta e o politicamente usualmente correto e o desusadamente incorreto colaboram e coexistem entre si, sendo duas faces da mesma moeda, escrutinando-se e limitando-se na imperfeição e numa exigência permanente pelo melhor.
Só que nem sempre o politicamente correto coincide com o pensar e opinião da maioria ou de quem tem o poder, dada a existência de minorias, tidas por superiormente iluminadas, que se têm como progressistas, de ideias e pensar da esfera do politicamente correto, onde só pode haver espaço e mentalidade para uma opinião, a alinhada como o seu discurso e pensamento mais “limpo”, querendo higienizar, censurar ou cancelar, fixando o tolerável e o intolerável porque, por exemplo, “leitores ou pessoas sensíveis”, ainda que à revelia da maioria e dos autores.
Mesmo que não o assumam, a liberdade de expressão, na sua pluralidade, é mal vista, mas é bem-vinda quando em causa o pensamento politicamente correto que defendem, onde a mera discordância de alguém contra o seu pensar, mesmo que em minoria, é tida como ofensiva, no mínimo.
Quão fácil é ser-se intolerante e ter vontade de acabar com o debate numa sociedade onde a liberdade de expressão tolera o politicamente correto e incorreto, ao invés de se aí tolerada e vigente uma só via de pensar.
Claro que podemos ser apenas pessimistas e desistir.
Podemos mesmo dar uma mão a quem tem certezas de que o pior vai mesmo acontecer e assim sossegarmos a desesperança.
Também podemos começar algo diferente, por exemplo: deixar nascer o propósito que levará o mundo a vencer a infelicidade.
Se pensarmos que as perguntas sem fronteiras vão tanto, mas tanto para além do sistema visual humano, que não existem termos de comparação com o que não conhecemos, tanto é bastante, para que o início que nos anima o pensamento, seja suficientemente elástico e forte para, por escolha, podermos fazer face ao desespero.
Podemos, na verdade, ser um veículo do nosso raciocínio que, conseguindo ver o caminho que até hoje percorremos, procuramos agora exprimir e revelar enfim por onde se pode reiniciar mundo novo.
O embrutecimento face à dor alheia, é algo não humano, é algo “distraído” do tempo da Vida, mas que se vive é bem mais a dos quereres e dos poderes que se cruzam pelos mais diversos meios, em jeito de consumismo de conquista.
Que se não diga, então, que se desconhece a tarefa que se assumiu para aqui chegarmos.
Parece, pois, razoável acreditar - no que nos respeita - que se fomos capazes de alcançar a monstruosidade da não vida, então, em nós reside, com igual gana, a capacidade de eliminarmos grande parte dos obstáculos que impedem os homens do acesso à vida, do acesso a uma felicidade.
E tudo isto, tudo isto acontecerá quando deixarmos viver o propósito que nos leva a algo diferente, a algo que dá cor ao futuro da nossa espécie, e à água que a sacia.
As formas estranhas permitem que as fronteiras entre nós e a natureza cessem de existir.
“Even as a child I had had at intervals a fondness for observing strange forms in nature, not so much examining them as surrendering myself to their magic, their oblique message.” (Hesse 2017, 84)
No livro “Demian”, Hermann Hesse escreve acerca das formas estranhas que existem na natureza. Estas ao misturarem-se com a nossa imaginação e com os nossos sonhos passam a pertencer ao nosso corpo - e assim passam a ser reconhecidas como nossas.
Hesse explica que, a consideração do irracional e a rendição ao estranho na natureza, produz uma sensação de harmonia do nosso ser interior com a vontade maior responsável por essas formas. As novas formas, e aquilo que nos é estranho demora tempo a fazer parte de nós. Mas assim que, nessas formas permanecemos, logo nos arriscamos a entendê-las como fazendo parte da nossa própria criação, invenção e imaginação.
Estas formas permitem que as fronteiras entre nós e a natureza cessem de existir. Hesse clarifica que, os limites entre nós e a natureza, ao estremecerem e se dissolverem fazem com que sejamos incapazes de decidir se os nossos contornos físicos resultam de impressões exteriores ou vindas de dentro de nós.
“Long tree-roots, coloured veins in rock, patches of oil floating on water, flaws in glass - all such things had a certain fascination for me, above all, water and fire, smoke, clouds, dust and especially the swirling specks of colour which swam before my closed eyes.” (Hesse 2017, 84)
Hermann Hesse sugere que as formas estranhas abrem a possibilidade de fazermos parte integrante da natureza e de ter a capacidade de criar com ela, em uníssono. Para Hesse, é através dessas formas que se descobre simplesmente o quão criativos somos e que o nosso corpo e espírito efetivamente participam no invento contínuo do mundo.
As formas da mundo completam-se em nós e nós completamo-nos através delas. Essas formas misturam-se com a nossa invenção, imaginação, com projeções, expetativas e desejos. Não existem assim puras em si mesmos, e não terminam nos seus limites designados. Vão para além do que está demarcado. E o irracional da natureza faz-nos ter consciência disso.
Hesse acredita, deste modo, que existe uma entidade indivisível que actua simultaneamente em nós e na natureza, e que se manifesta através da nossa capacidade de criar e imaginar, e que poderá até ter a capacidade de salvar o mundo, se este for destruído. Porém isso só acontecerá se cada forma da natureza encontrar um eco, uma ressonância e um reflexo em cada ser.
“For mountain and stream, tree and leaf, root and blossom, every form in nature is echoed in us…” (Hesse 2017, 85)
Hesse escreve que todas estas formas coincidem e realizam-se na eternidade que existe dentro de cada um de nós, e manifestam-se na capacidade que cada ser tem em criar.
Hesse acredita que natureza acrescenta-se e conclui-se com o sonho e a presença do ser humano. E por isso, Hesse escreve que as coisas que vemos são as coisas que já existem dentro de cada um de nós e acrescenta que cada ser humano contém dentro de si todo o conhecimento do mundo: “We always set too narrow limits on our personalities. We count as ours merely what we experience differently as individuals or recognize as being divergent. Yet we consist of the whole existence of the world, each one of us, and just as our body bears in it the various stages of our evolution back to the fish and further back still, we have in our soul everything that has ever existed in the human mind.” (Hesse 2017, 85)
Como foi possível ensinar e pregar que Deus mandou o seu Filho Jesus para ser crucificado, pagando assim a dívida infinita da Humanidade para com Ele? Desse modo, Deus aplacou a sua ira e reconciliou-se com a Humanidade. Esse seria um Deus no qual não se pode acreditar: um Deus sádico, bárbaro, vingativo. Face a esse Deus é preciso ser ateu. Esse não seria o Evangelho, uma notícia boa e felicitante, mas um Disangelho.
Pelo contrário, o que Jesus anunciou foi realmente o Evangelho, notícia boa e felicitante, repito. E fê-lo por palavras e obras. Esta é a notícia, a melhor notícia que a Humanidade ouviu na sua História: Deus é bom, é Pai e Mãe de todos e o seu interesse é a alegria, a felicidade, a realização plena de todos os seus filhos e filhas.
Nem todos estavam nem estão de acordo com esta mensagem, pois se Deus é bom eu também devo ser bom, se Deus não se vinga eu também não me posso vingar, se Deus é bom, Pai e Mãe de todos os seus filhos e filhas, não pode haver guerras de destruição e horror entre eles. A mensagem de Jesus ia contra os interesses de muitos, nomeadamente contra os interesses da religião oficial da lei, uma religião que oprimia o povo, e contra os interesses imperiais de Roma — a finalidade dos impérios não é explorar? Por isso, os sacerdotes do Templo coligaram-se com Roma, julgaram Jesus, que foi condenado à morte e morte de cruz, a morte que os romanos davam aos escravos e subversivos. Jesus morreu assassinado pelos interesses dos que se opõem aos interesses de Deus, do Deus bom, Pai e Mãe de todos. Jesus não se acobardou, sacrificou-se até ao fim, até ao horror da morte na cruz, fazendo inclusivamente a experiência do aparente abandono de Deus, para dar testemunho da Verdade e do Amor.
Os discípulos fugiram, até Pedro, o primeiro Papa, se acobardou e negou o Mestre. Só as mulheres o acompanharam até à cruz. E a pergunta que fica sempre é esta: o que é que aconteceu para que os discípulos que, tristes e desiludidos, voltaram às suas vidas, pensando que tinha sido o fim, se reunissem de novo para irem anunciar que verdadeiramente aquele Jesus assassinado, crucificado, é o Messias, o Salvador, o Evangelho vivo? Mais uma vez, foram as mulheres. Nomeadamente, Maria Madalena foi a primeira a fazer a experiência avassaladora de fé de que aquele Jesus, o crucificado, está vivo para sempre em Deus. Deus é infinitamente poderoso, Jesus deu a vida por Ele, testemunhando o seu amor sem limites e, por isso, Deus não podia deixá-lo abandonado à morte, ressuscitou-o, Jesus está vivo para sempre na plenitude da Vida. E, lentamente, os discípulos foram fazendo a mesma experiência avassaladora de fé e reuniram-se e partiram, anunciando a boa notícia. E morreram por ela.
Muitos acreditaram e formaram-se comunidades por todo o lado. E viviam a alegria da fé, por palavras e obras. Souberam que Jesus, antes de entregar-se à morte por amor, celebrara uma ceia com os discípulos, uma ceia de despedida, pedindo que se lembrassem dEle. Assim, os novos discípulos celebravam banquetes festivos, recordando essa ceia, a Última Ceia, e lembrando Jesus, o que Ele disse, o que Ele fez, a sua morte, a sua ressurreição, e sabiam que Ele está presente. Quem presidia era algum cristão ou alguma cristã com uma casa melhor.
Com o tempo, foram escolhidos presbíteros e bispos, para a coordenação das comunidades, o anúncio da mensagem... Só mais tarde, nos séculos III-IV, quando os cristãos foram acusados de não oferecer sacrifícios à divindade, se interpretou a Eucaristia como sacrifício — mactatio mystica Christi, cheguei a ler em manuais de Teologia — e apareceram os sacerdotes, com a ordenação sacerdotal, e, desse modo, a divisão da Igreja, Povo de Deus, em duas classes: clero e leigos. No Novo Testamento, não se fala em sacerdotes, Jesus não ordenou sacerdotes, sacerdote é Jesus e o povo cristão é “povo sacerdotal”. Com a ordenação sacra, foi surgindo o celibato, que se foi impondo como lei, e, evidentemente, por causa da impureza ritual, as mulheres foram excluídas.
Hoje, com a urgência da renovação profunda da Igreja, esta questão é decisiva. Neste sentido, o jesuíta José I. González Faus escreveu uma carta aberta a Francisco: “estamos obrigados a procurar remédio para a exclusão da mulher”. Começa por pôr em causa um duplo princípio na Igreja que Francisco, para negar a possibilidade de acesso da mulher ao presbiterado, foi buscar ao teólogo Urs von Balthasar: o princípio mariano (Maria mãe da Igreja) e o princípio petrino (Pedro é a rocha), sendo o primeiro superior ao segundo, mas fechando o acesso da mulher ao ministério eclesiástico. O equívoco está na falsa ‘sacerdotalização’ do ministério, que poderia levar à ideia de “mulheres sacerdotisas”, evocando “figuras pagãs como as prostitutas sagradas”.
O que se impõe não é excluir a mulher. O que se exige, quando se atende ao Novo Testamento, é “a compreensão de que também o presbítero não é um sacerdote, por muito acostumados que estejamos a essa linguagem imprópria. Linguagem que provocou uma sacralização dos presbíteros, que está na base do nefasto clericalismo, que tanto tens combatido e criticado, Papa Francisco, e que foi causa de tanto abusos de todas as espécies. Comecemos, pois, nós, os homens ordenados, por despojar-nos dessa atribuição irreverente de sacerdotes.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 20 de maio de 2023
Assinalamos esta semana, o Centenário do nascimento de Eduardo Lourenço (1923-2020), homenageando o amigo de longa data do Centro Nacional de Cultura e nosso sócio honorário.
LIBERDADE, HISTÓRIA E CIÊNCIA Leitor atento, Eduardo Lourenço conhecia bem a conferência de Karl Jaspers, nos primeiros Encontros Internacionais de Genebra, em 13 de outubro de 1946, quando em resposta à pergunta – o que é a Europa, invocou três palavras: liberdade, como vitória sobre o arbitrário e compreensão da intranquilidade e da inquietação; história, enquanto encontro e diálogo e procura da liberdade política; e ciência, como apelo à verdade, uma vez que “a liberdade exige a ciência, não só a ciência como passatempo dos nossos ócios, não só como técnica subordinada a fins práticos, não só como jogo de pensamento lógico, mas como vontade absoluta universal de conhecer o conhecível”. Todo o percurso do autor de Heterodoxia foi feito de um apego claro relativamente à tripla invocação feita em Genebra. De facto, a heterodoxia que cultivou assentava nas ideias de autonomia e emancipação, pelo que quem firmemente acreditasse que possuía a liberdade, já a teria perdido de modo irreversível. O culto do paradoxo pelo ensaísta significou, assim, a compreensão da incompletude humana e de uma inelutável imperfeição. Daí o apego ao método do ensaio, com demarcação permanente relativamente a um “pensamento fechado e completo”. Assim, o que lhe surgia como problema ou questão de “identidade”, para a pessoa, o grupo ou a nacionalidade, não diria respeito à identidade propriamente dita, mas á sua manifestação ou à sua expressão, enquanto “perturbação”. E deste modo a liberdade individual tornava-se um fator de visão crítica. Como disse em Nós e a Europa ou as duasrazões, numa conferência proferida nos Estados Unidos (em Durhan), em 1984, podia “concluir-se que, em sentido rigoroso, não há nunca questão alguma de identidade. Seria uma conclusão apressada. Mais exato é afirmar que para o indivíduo, o grupo, a nação, a questão da identidade é permanente e se confunde com a da mera existência, a qual não é nunca um puro dado adquirido de uma vez por todas, mas o ato de querer e poder permanecer conforme ao ser ou ao projeto de ser aquilo que se é”.
PENSAMENTO E AÇÃO Tal como encontrara na conferência de Jaspers e nas suas considerações proféticas, o pensador ocupou-se da reflexão sobre a identidade num mundo global – onde coexistem fatores contraditórios, inerentes à própria complexidade. Nenhum facto, nenhuma consequência tem apenas uma razão ou explicação. E a situação atual do mundo demonstra, a cada passo, essa exigência de entendimento da importância do “ato de querer e poder”, que deve permanecer “conforme ao ser”, enquanto situação e projeto. Desde a queda do muro de Berlim, quando se esperava uma convergência de sistemas e de paz, assistimos à fragmentação política; e quando prevíamos a emergência de um regionalismo supranacional, deparámo-nos com um perigoso tribalismo, que agrava os riscos do nacionalismo. E sobre os escombros da guerra fria ocorreram perigosas polaridades difusas – desde o terror de 11 de setembro aos novos imperialismos larvares que redundam na emergência de guerras incontroláveis. Daí a coexistência de esperança e de desencantamento, que são, no fundo, faces da mesma moeda. E o ensaísta, na linha essencial de Montaigne, partiu da experiência pessoal para a realidade que nos cerca. Daí que a compreensão do Portugal moderno devesse fazer-se em ligação estrita com a noção de “Europa como Cultura”, como encontramos no texto com este título escrito em “Finisterra” no ano emblemático de 1989, e que hoje renasce com uma imprevista atualidade.
A EUROPA EM CONSTRUÇÃO Que Europa se vai construindo? Há sinais preocupantes. “É provável que, dentro em pouco, a Europa constitua um supermercado florescente, um espaço dourado por excelência de uma sociedade hiper-consumista, ao mesmo tempo que num lugar de diversão sem rival no planeta. Esta perspetiva não só é plausível, como, de certo modo, fatal”. Contudo não é uma cultura europeia que se constrói, mas um “invólucro vazio, uma realidade sem alma nem memória. Uma Europa cortada da relação com os valores culturais que criou, indiferente à sua herança E à sua riqueza cultural, será apenas uma Disneylândia para a nossa pseudo-infância de europeus”. Se todas as culturas, todas as civilizações fizeram de si mesmas e do mundo à sua volta uma história global, numa relação privilegiada com a Verdade, através de ídolos, deuses e do próprio Deus, em nome da sabedoria e da certeza, a consciência europeia criou uma cultura de inquietação, de angústia e de desafio aos deuses. E assim, nós europeus, tornámo-nos os únicos humanos que não temos identidade. “A essência da cultura ocidental cifra-se na vontade de nos dar um nome”. E como “continente metafísico” a Europa confronta-se com a divergência, o conflito e com a inquietude. “Em boa verdade, o passado europeu com os seus intermináveis conflitos, os recentes horrores do nosso século não abonam muito a esta tentativa – ou tentação – de amalgamar a história europeia à da luta pela liberdade, como de formas diversas o puderem fazer Michelet, Hegel ou ainda Croce”. Afinal, a Democracia europeia resulta de um longo conflito, insiste Eduardo Lourenço, o que “não é um dado, um dom caído do Céu, mas uma conquista, sempre inacabada, sempre ameaçada e a reformular em temos cada vez mais complexos e, em última análise, imprevisíveis. O seu cimento foi a audácia, o sacrifício, o sangue, mas acima de tudo, uma exigência de justeza nas ideias e de justiça nos atos”.
A Europa foi construída pelas ameaças dos persas, turcos, mongóis, árabes, que forjaram a nossa identidade. “No fim de contas, o único inimigo que os portugueses sempre tiveram foram eles mesmos. O que era já visível para Erasmo não deixou de o ser em vésperas da sua conversão em ‘Comunidade Europeia’…” A guerra civil perpétua europeia foi atenuada pela razão, mas há um esquecimento cíclico que nos assalta e que nos leva a contentar-nos erradamente com os resultados comerciais ou económicos de curto prazo. Para Eduardo Lourenço, somos, porém, demasiado indiferentes aos conceitos e ideais que preocupavam Jaspers em 1946, quando este pensava numa regeneração: Verdade, Valor, Liberdade, elementos que durante séculos constituíram a referência imperiosa do pensamento, da ética, da arte e da ação europeias. “Se não houver Europa como cultura, e enquanto a não houver, todos os outros sucessos europeus repousarão sobre a areia”. Mitificação do cultural? Apenas a simples lembrança de que “Europa foi sempre, não apenas uma cultura entre outras, mas uma exigência do sentido que engloba a crítica da própria cultura”. Contudo, o pensador não falava de um museu mais ativo do que uma mera referência turística, nem de um mero espaço de deslumbramento alargado, de comunicação de tesouros ou uma rede de gabinetes de curiosidades, mas da tomada de consciência das raízes comuns. “A Europa como cultura é outra coisa que essa fluidez nas trocas culturais relativas ao passado e ao presente, qualquer coisa que tem pouco que ver com o espetáculo televisual dos jogos inter-fronteiras”. Importaria demarcar-nos de uma ideia pobre de mínimo cultural, emerso no puro universo do espetáculo e da distração, da internet e dos robôs, em lugar de encarar a cultura e arte como valores … Como quis Coudenhove-Kalergie, podemos acrescentar, ser necessário entender Ulisses como o protótipo do europeu, enquanto o herói do primeiro romance de aventuras do Ocidente, cujo caráter tem várias dimensões. Não foi apenas bravo e magnânimo, mas dispôs de ardil e astúcia, com uma paixão temperada pela medida, não procurando a aventura, mas dominando-a, sem procurar a luta, mas ganhando-a.
Para Eduardo Lourenço, Camões, Antero de Quental ou Fernando Pessoa – ao lado da grande plêiade de europeus como Ésquilo, Dante, Erasmo, Goethe ou Rilke, Tolstoi ou Dostoievski – definiram, através das suas obras, um espaço exigente, enigmático, inventivo e grandioso da cultura concebida como cultura das diferenças, vivendo da busca do que T.S. Elliot considerava ser o muito da sabedoria que se perdia na informação e no conhecimento. Em suma, dependemos “da invenção de um caminho e de uma saída que ninguém nos deu nem pode descobrir em vez de nós”. E a nossa relação com o ensaísta tem a ver com essa inalienável necessidade de termos presente esse poderoso desafio que nos liga à humanidade e à cultura como vida.