“…NUNCA HAVER CHEGADA” …
Em boa hora acaba de ser publicada Toda a Prosa, de Manuel Alegre (D. Quixote, 2023), com prefácio de Paula Morão. Em complemento natural de uma obra poética bem conhecida, o presente volume apresenta uma evidente coerência com a produção lírica e épica de um escritor que se insere, como poucos, na linhagem da língua portuguesa, provinda da tradição dos trovadores. Não podemos esquecer, aliás, que as raízes galaico-portuguesas levaram D. Dinis a adotar de modo pioneiro o idioma vulgar como língua dos tabeliães em lugar do latim e logo como língua nacional, em simultâneo com a definição fronteira e com a afirmação da nação ancorada no Estado. Se há autor que nos conduz à compreensão de uma ligação íntima à mais antiga cultura dos portugueses, desde que aberta à renovação e à diversidade, ele é Manuel Alegre, e a prosa ora apresentada ou recordada demonstra-o de modo inequívoco. Pode mesmo dizer-se que é lendo em paralelo a poesia da Praça da Canção, de O Canto e as Armas ou de Um Barco para Ítaca com a obra em prosa de Manuel Alegre, como Jornada de África – Romance de Amor e Morte do Alferes Sebastião ou Alma que podemos compreender, não apenas a personalidade e a força de um autor, mas sobretudo um momento da história portuguesa em que só a coexistência de fatores diversos e complementares, mais do que contraditórios, permite entendermos, apesar de mil defeitos, quem somos, donde vimos e para onde poderemos ir. Além dos trovadores, encontramos facilmente os ecos inconfundíveis de Camões, mas também o romanceiro transmitido por Garrett, a Nau Catrineta e a Barca Bela. Razão tem Paula Morão ao ligar o forte impulso narrativo aos poemas devedores de epopeias antigas e modernas. E assim a ficção ocupa um lugar de muito relevo com a poesia.
Alma é Portugal. E só podemos entender este povo de onde “a terra se acaba e o mar começa”, neste cadinho de mil diferenças, ao ler: “Para me perceber a mim mesmo, não posso esquecer que nasci e fui criado entre a tensão da energia e o desprendimento da contemplação. (…) Essa fronteira passará sempre por dentro de mim, é uma guerra civil que no mais fundo de mim mesmo nunca se resolverá”. E ouvimos Sá de Miranda: “Comigo me desavim, / Sou posto todo em perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim…”. E esse confronto íntimo encontra-se na presença do pai e da avó do protagonista: “Olhava ora o meu pai ora a minha avó, ambos muito antigos, com uma forma de coragem que nunca mais encontrei (…). Eles eram invencíveis, havia dentro deles algo que não se vergaria nunca”. E quando vamos lendo Jornada de África, A Terceira Rosa, Rafael ou Tudo é e não é descobrimos essa marca de carácter tão evidente na poesia como na ficção. Não disse o poeta sobre Portugal: “O teu destino é nunca haver chegada / O teu destino é outra índia e outro mar / E a nova nau lusíada apontada /A um país que só há no verbo achar” (Chegar Aqui)? A História faz-se de indeléveis dúvidas e contradições. Quando uma tia contou a triste história de D. Sebastião e do seu desaparecimento em Alcácer Quibir, nunca foi capaz de dizer que o rei morreu na batalha, falava sempre dele como um rei desaparecido. “As nações todas são misteriosas”, e em Jornada de África, Sebastião vai à mala buscar uma credencial que está em O Desejado, um exemplar autografado por António Sérgio a que falta a página 149… E em Rafael, é lembrado o herói de Aljubarrota, no levantar ao raiar da aurora – “o nosso nome é esse, todos nós nos chamamos Nuno Madruga, somos poucos, mas somos um quadrado”. E assim encontramos, como diz Paula Morão, heróis junto de homens comuns, alicerçados em mitos e na ficção, a preparar a Liberdade. “Mesmo na noite mais triste / em tempos de servidão / há sempre alguém que resiste / há sempre alguém que diz não”.
GOM