UM ÍCONE PORTUGUÊS
Num especial aperitivo para o renovado Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian deparamo-nos nestes dias com “Histórias de Uma Coleção”, uma extraordinária reunião de obras de arte do último século cujo regresso encheu de emoção quantos acorreram à inauguração da exposição. Sentia-se o “espírito Gulbenkian”, como nos grandes momentos de uma vida plena, enquanto no Grande Auditório tinha lugar a prodigiosa apresentação da violinista sul coreana Bomsori Kim, sob a direção de Giancarlo Guerrero, no concerto para Violino e Orquestra em Ré maior, opus 77, de Brahms. Em iniciativas paralelas, com públicos diferentes, a cultura e a arte manifestavam-se numa sublime convergência.
O que é uma Coleção? De que histórias é feita? Um aperitivo é um anúncio do que virá. À entrada, um conjunto de 73 obras, numa parede mágica, convida-nos a uma imersão total como acontece com as crianças ávidas numa loja de brinquedos. E perguntamos: Quem? Onde? Como? E compreendemos que “histórias de uma coleção” são a procura dos mil mistérios que se escondem e que se revelam na relação entre os artistas e as suas obras, e no caminho destas ao encontro de quem as demanda. E as obras de arte tornam-se, elas mesmas, protagonistas de fascínio, que se torna indescritível nessa imersão total que nos torna participantes desse diálogo que torna a arte uma procura de nós mesmos.
Ao reencontrar o “Fernando Pessoa” de Almada Negreiros, senti não apenas o carácter fulgurante deste ícone português, mas a memória da revista “Orpheu”, que foi um dos momentos mais importantes da moderna cultura em língua portuguesa. E lembro o facto de José de Azeredo Perdigão, o primeiro presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, ter participado no grupo de “Orpheu” (em 1915) e ter sido um dos fundadores da revista “Seara Nova” (1921), dois exemplos essenciais da nossa contemporaneidade. A primeira versão deste quadro de Almada foi feita em 1954, por encomenda de “Os Irmãos Unidos”, o restaurante do Rossio, de que era sócio Alfredo Guisado, um dos companheiros de “Orpheu”, onde tiveram lugar muitas reuniões do grupo, “em camaradagem e conta fiada”, na expressão de José-Augusto França. A cabeça que está no quadro foi primeiro desenhada em 1935, e publicada no “Diário de Lisboa” quando o poeta morreu. A tela que está na Gulbenkian é a réplica, encomendada em 1964. A Fundação procurara adquirir a versão original, na sequência da atribuição do prémio de pintura extraconcurso na I Exposição de Artes Plásticas da Gulbenkian em 1957. Não houve, porém, acordo quanto ao valor, que, aliás, se fixaria em leilão. E assim foi encomendada pela Fundação ao artista uma réplica, que Almada realizou, projetando o primeiro quadro em espelho, com “curiosas incongruências na posição das mãos e do papel”, mas inspirando-se nos misteriosos painéis de S. Vicente de Fora, que apaixonaram o pintor, centrado na figura repetida do que se pensa ser S. Vicente, como esclarece no belo catálogo Ana Vasconcelos, podendo ainda lembrar-se a disposição geométrica do chão, que permitiu a ordenação dos painéis no Museu de Arte Antiga a partir de 1940. “Fernando Pessoa está sentado a uma mesa de café, pelo verão de 1915. Sobre o tampo da mesa o número 2 de ‘Orpheu’. É o retrato do poeta e da sua geração que a simples presença da revista anuncia. E também, de certo modo, um retrato de Lisboa, que entra, num sol matutino pela sala dentro, envolto em cheiro de maresia – porque se está no Terreiro do Paço e o café só pode ser o ‘Martinho da Arcada’. O poeta suspendeu a escrita, pousou a caneta, vai puxar uma fumaça. O café espera, ao lado com o açucareirozinho de metal amolgado” (segundo J.A. França). Eis porque considero esta obra-prima um ícone português, porque aí encontramos uma preciosa síntese de tradição e modernidade. “Serei Vitória um dia / - Hegemonia de Mim!” – como disse Almada em “A Cena de Ódio”.
GOM