Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Assinalamos esta semana, o Centenário do nascimento de Eduardo Lourenço (1923-2020), homenageando o amigo de longa data do Centro Nacional de Cultura e nosso sócio honorário.
LIBERDADE, HISTÓRIA E CIÊNCIA Leitor atento, Eduardo Lourenço conhecia bem a conferência de Karl Jaspers, nos primeiros Encontros Internacionais de Genebra, em 13 de outubro de 1946, quando em resposta à pergunta – o que é a Europa, invocou três palavras: liberdade, como vitória sobre o arbitrário e compreensão da intranquilidade e da inquietação; história, enquanto encontro e diálogo e procura da liberdade política; e ciência, como apelo à verdade, uma vez que “a liberdade exige a ciência, não só a ciência como passatempo dos nossos ócios, não só como técnica subordinada a fins práticos, não só como jogo de pensamento lógico, mas como vontade absoluta universal de conhecer o conhecível”. Todo o percurso do autor de Heterodoxia foi feito de um apego claro relativamente à tripla invocação feita em Genebra. De facto, a heterodoxia que cultivou assentava nas ideias de autonomia e emancipação, pelo que quem firmemente acreditasse que possuía a liberdade, já a teria perdido de modo irreversível. O culto do paradoxo pelo ensaísta significou, assim, a compreensão da incompletude humana e de uma inelutável imperfeição. Daí o apego ao método do ensaio, com demarcação permanente relativamente a um “pensamento fechado e completo”. Assim, o que lhe surgia como problema ou questão de “identidade”, para a pessoa, o grupo ou a nacionalidade, não diria respeito à identidade propriamente dita, mas á sua manifestação ou à sua expressão, enquanto “perturbação”. E deste modo a liberdade individual tornava-se um fator de visão crítica. Como disse em Nós e a Europa ou as duasrazões, numa conferência proferida nos Estados Unidos (em Durhan), em 1984, podia “concluir-se que, em sentido rigoroso, não há nunca questão alguma de identidade. Seria uma conclusão apressada. Mais exato é afirmar que para o indivíduo, o grupo, a nação, a questão da identidade é permanente e se confunde com a da mera existência, a qual não é nunca um puro dado adquirido de uma vez por todas, mas o ato de querer e poder permanecer conforme ao ser ou ao projeto de ser aquilo que se é”.
PENSAMENTO E AÇÃO Tal como encontrara na conferência de Jaspers e nas suas considerações proféticas, o pensador ocupou-se da reflexão sobre a identidade num mundo global – onde coexistem fatores contraditórios, inerentes à própria complexidade. Nenhum facto, nenhuma consequência tem apenas uma razão ou explicação. E a situação atual do mundo demonstra, a cada passo, essa exigência de entendimento da importância do “ato de querer e poder”, que deve permanecer “conforme ao ser”, enquanto situação e projeto. Desde a queda do muro de Berlim, quando se esperava uma convergência de sistemas e de paz, assistimos à fragmentação política; e quando prevíamos a emergência de um regionalismo supranacional, deparámo-nos com um perigoso tribalismo, que agrava os riscos do nacionalismo. E sobre os escombros da guerra fria ocorreram perigosas polaridades difusas – desde o terror de 11 de setembro aos novos imperialismos larvares que redundam na emergência de guerras incontroláveis. Daí a coexistência de esperança e de desencantamento, que são, no fundo, faces da mesma moeda. E o ensaísta, na linha essencial de Montaigne, partiu da experiência pessoal para a realidade que nos cerca. Daí que a compreensão do Portugal moderno devesse fazer-se em ligação estrita com a noção de “Europa como Cultura”, como encontramos no texto com este título escrito em “Finisterra” no ano emblemático de 1989, e que hoje renasce com uma imprevista atualidade.
A EUROPA EM CONSTRUÇÃO Que Europa se vai construindo? Há sinais preocupantes. “É provável que, dentro em pouco, a Europa constitua um supermercado florescente, um espaço dourado por excelência de uma sociedade hiper-consumista, ao mesmo tempo que num lugar de diversão sem rival no planeta. Esta perspetiva não só é plausível, como, de certo modo, fatal”. Contudo não é uma cultura europeia que se constrói, mas um “invólucro vazio, uma realidade sem alma nem memória. Uma Europa cortada da relação com os valores culturais que criou, indiferente à sua herança E à sua riqueza cultural, será apenas uma Disneylândia para a nossa pseudo-infância de europeus”. Se todas as culturas, todas as civilizações fizeram de si mesmas e do mundo à sua volta uma história global, numa relação privilegiada com a Verdade, através de ídolos, deuses e do próprio Deus, em nome da sabedoria e da certeza, a consciência europeia criou uma cultura de inquietação, de angústia e de desafio aos deuses. E assim, nós europeus, tornámo-nos os únicos humanos que não temos identidade. “A essência da cultura ocidental cifra-se na vontade de nos dar um nome”. E como “continente metafísico” a Europa confronta-se com a divergência, o conflito e com a inquietude. “Em boa verdade, o passado europeu com os seus intermináveis conflitos, os recentes horrores do nosso século não abonam muito a esta tentativa – ou tentação – de amalgamar a história europeia à da luta pela liberdade, como de formas diversas o puderem fazer Michelet, Hegel ou ainda Croce”. Afinal, a Democracia europeia resulta de um longo conflito, insiste Eduardo Lourenço, o que “não é um dado, um dom caído do Céu, mas uma conquista, sempre inacabada, sempre ameaçada e a reformular em temos cada vez mais complexos e, em última análise, imprevisíveis. O seu cimento foi a audácia, o sacrifício, o sangue, mas acima de tudo, uma exigência de justeza nas ideias e de justiça nos atos”.
A Europa foi construída pelas ameaças dos persas, turcos, mongóis, árabes, que forjaram a nossa identidade. “No fim de contas, o único inimigo que os portugueses sempre tiveram foram eles mesmos. O que era já visível para Erasmo não deixou de o ser em vésperas da sua conversão em ‘Comunidade Europeia’…” A guerra civil perpétua europeia foi atenuada pela razão, mas há um esquecimento cíclico que nos assalta e que nos leva a contentar-nos erradamente com os resultados comerciais ou económicos de curto prazo. Para Eduardo Lourenço, somos, porém, demasiado indiferentes aos conceitos e ideais que preocupavam Jaspers em 1946, quando este pensava numa regeneração: Verdade, Valor, Liberdade, elementos que durante séculos constituíram a referência imperiosa do pensamento, da ética, da arte e da ação europeias. “Se não houver Europa como cultura, e enquanto a não houver, todos os outros sucessos europeus repousarão sobre a areia”. Mitificação do cultural? Apenas a simples lembrança de que “Europa foi sempre, não apenas uma cultura entre outras, mas uma exigência do sentido que engloba a crítica da própria cultura”. Contudo, o pensador não falava de um museu mais ativo do que uma mera referência turística, nem de um mero espaço de deslumbramento alargado, de comunicação de tesouros ou uma rede de gabinetes de curiosidades, mas da tomada de consciência das raízes comuns. “A Europa como cultura é outra coisa que essa fluidez nas trocas culturais relativas ao passado e ao presente, qualquer coisa que tem pouco que ver com o espetáculo televisual dos jogos inter-fronteiras”. Importaria demarcar-nos de uma ideia pobre de mínimo cultural, emerso no puro universo do espetáculo e da distração, da internet e dos robôs, em lugar de encarar a cultura e arte como valores … Como quis Coudenhove-Kalergie, podemos acrescentar, ser necessário entender Ulisses como o protótipo do europeu, enquanto o herói do primeiro romance de aventuras do Ocidente, cujo caráter tem várias dimensões. Não foi apenas bravo e magnânimo, mas dispôs de ardil e astúcia, com uma paixão temperada pela medida, não procurando a aventura, mas dominando-a, sem procurar a luta, mas ganhando-a.
Para Eduardo Lourenço, Camões, Antero de Quental ou Fernando Pessoa – ao lado da grande plêiade de europeus como Ésquilo, Dante, Erasmo, Goethe ou Rilke, Tolstoi ou Dostoievski – definiram, através das suas obras, um espaço exigente, enigmático, inventivo e grandioso da cultura concebida como cultura das diferenças, vivendo da busca do que T.S. Elliot considerava ser o muito da sabedoria que se perdia na informação e no conhecimento. Em suma, dependemos “da invenção de um caminho e de uma saída que ninguém nos deu nem pode descobrir em vez de nós”. E a nossa relação com o ensaísta tem a ver com essa inalienável necessidade de termos presente esse poderoso desafio que nos liga à humanidade e à cultura como vida.
Nenhum comboio nos leva tão longe: uma cidade morta vive ainda na rara canção. Escuta as palavras que ensina e todas as coisas que volta a mostrar: a noite, o regresso ao quarto emprestado, as caves com livros de Charing Cross Road e o tempo lá fora tão frio.
in Ladrador, 2012
A parallel life
No train will take us this far: a dead city still alive in a rare song. Listen to its teaching words and to all the things it shows yet again: the night, the return to the borrowed room, the book-stuffed basements of Charing Cross Road and the weather outside so cold.
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA MALINCONIA LUSITANA
1. Agora que Franco Maria Ricci se aproximou de Portugal, a revista que há poucos meses deixou de ser dele (embora dele conserve as iniciais efémeras) dedicou, pela primeira vez, um artigo a uma obra de arte alegadamente portuguesa. Para mim, ver os Painéis, ditos de Nuno Gonçalves, nas páginas da minha revista de arte de cabeceira (eu sei que há quem a odeie) espicaçou-me muito mais a luso "auto-estima", do que os nossos feitos no Euro, a escolha de Durão Barroso para a Comissão Europeia ou os discursos presidenciais. Mas não façam muito caso. Eu não sou exemplo para ninguém, a não ser para mim, o que além de egocêntrico é tautológico. Devo algumas explicações preliminares? É bem certo que as devo. Como recordei em crónica já velhinha ("Do Infeliz Machado à Décima Segunda Noite", Público, 2 de janeiro de 2004), Franco Maria Ricci, esse tal que fez jogo homófono com Ephemeris (leiam em voz alta, e obtêm FMR, iniciais dele e título da revista) entrou em acordo com a Bertrand de Zita Seabra e editou, no Natal de vai fazer um ano, O Presépio Barroco Português, livro magnifico sobretudo dedicado a Machado de Castro. Ao que li algures, prepara-se para reincidir em co-edições portuguesas e, se não estou em erro, com o célebre Atlas de D. Manuel, que a Bertrand irá lançar sob os seus auspícios.
Enquanto isto, e enquanto se dedica a uma fabulosa série de livros sobre as coleções do Vaticano (já saíram dois, mas ainda faltam dez) abandonou a revista que fundara em 1982 e entregou-a a Marilena Ferrari. Mudou o formato (agora mais alto e, sobretudo, mais largo) e mudou a numeração. O número publicado em abril-maio de 2004 foi o último número algarismado à árabe (nº163). A partir de junho-julho de 2004, o numeral passou a cursivo. Uno, due, tre. Reminiscência da Revolução Francesa, nova era? Felizmente, nada disso. Como logo explicou a nova diretora no seu primeiro editorial, a mudança fez-se sob a sábia égide do Príncipe de Salina: se tudo muda é para que tudo fique na mesma. Aliás "tudo" é um exagero dela. O herói de Lampedusa e de Visconti nunca disse tal coisa, mas limitou-se advogar a mudança de algumas coisas para assegurar a permanência. Para lá do formato e da numeração, ainda não dei por transformações capitais. Ela lá terá as suas razões para chamar ao Príncipe de Salina "maestro de transizione". A principal mudança de que me dei conta foi mesmo essa a que me referi no inicio e que levou a que o "numero tre", que tem na capa um "mascherone" da decoração escultórica da base do sepulcro de D. Pedro de Toledo, vice-rei de Nápoles de 1532 a 1553, consagre um artigo ao famigeradíssimo políptico do Museu de Arte Antiga. É certo que já em tempos tinha havido um precioso texto (com preciosas reproduções) sobre os marfins indo-portugueses.
Mas a pintura portuguesa - se acaso o foi e lá chegarei - nunca havia tido tais honras. E serão coisas minhas - serão certamente - mas alguns pormenores das gloriosas reproduções (fotografias do português José Pessoa) pareceram-me "mieux que nature", eventualmente tocadas pela graça da vizinhança com o sepulcro do pai de Eleanora de Toledo, essa Eleanora de Bronzino, de mim e de pouca gente mais.
2. Chegou a altura de ordenar estas orgias, como diria Dolmancé. O artigo, com o mesmo título desta crónica, é do francês Yves Hersant, diretor de estudos da École de Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris. Malinconia Lusitana é bem achado. Já Cioran dizia que, "de um modo geral, se podem distinguir na Europa três formas de tristeza: a russa, a portuguesa e a húngara". E se ele tem razão, raras vezes essa tristeza (ou essa malinconia", o que não é a mesma coisa mas anda lá perto) foi tão bem expressa como pelo autor dos Painéis. É mesmo essa a principal razão que me leva a acreditar que eles foram mesmo pintados por um português, sensivelmente contemporâneo daquele que inventou o "nunca tão tristes vistes / outros nenhuns por ninguém". Já estou a arranjar lenha para me queimar, ou para ficar mais apainelado.
Tocar nos Painéis, desde que foram descobertos em 1882, no convento de São Vicente de Fora, em Lisboa, ou, pelo menos, desde que José de Figueiredo, em 1910, escreveu um livro sobre eles, nunca deu saúde a ninguém e arruinou muitas reputações. Num caso até, levou ao suicídio um historiador incauto, que ficou tão triunfante quando julgou ter descoberto um manuscrito que lhe confirmava as teses, que nem sequer reparou que o dito era uma grosseira falsificação, armadilha de rivais que, conhecendo-o, sabiam que ele ia morder o isco. Quando a história se descobriu, impotente para provar a boa fé, preferiu meter uma bala na cabeça a viver o resto dos seus dias com a fama de troca-tintas. Era nos anos 20, quando a honra ainda tinha valor. Não sei se Yves Hersant sabia desta e doutras histórias (a última tocou de perto o filho de uma amiga minha). Mas a verdade é que decidiu ser muito cauto. Para entrar na "guerra" (guerra dos cem anos, sem nenhuma Joana d'Arc) adotou duas posições.
Primeira posição: o leitor não é português, o nome de Nuno Gonçalves não lhe diz coisíssima nenhuma e visita pela primeira vez o Museu das Janelas Verdes. Só há, para esse visitante, uma conclusão possível: "o políptico é uma das mais complexas figurações herdadas do Renascimento. Seguem-se ditirambos e algumas observações pertinentes. Relevo a que o faz evocar Alberti e o tratado De Pictura, publicado alguns anos antes da composição do retábulo (a acreditar que este foi pintado entre 1446-48). Hersant recorda-nos que Alberti defendeu, como primeira finalidade da pintura, "dar presenças aos ausentes", ou "fazer ressurgir os mortos aos olhos dos vivos". Além disso, deve despertar-nos os afetos, mostrar ações que nos comovam ou que nos aprazentem, contar uma historia. Hersant vê bem quando diz: "Perante os painéis de Lisboa, a historia escapa-nos. Provocam, certamente, emoções, já que, em termos albertianos, os homens que foram pintados manifestam intensamente o movimento próprio das suas almas. Talvez nos façam sentir com intensidade a presença dos ausentes, de tal modo o pintor observou escrupulosamente a natureza. Mas o essencial, ou o que Alberti tinha por essencial, não está lá, nega-se com obstinação". Aqui chegado (bem chegado, a meu ver) muda de posição.
Segunda posição: o leitor (ou o espectador) é português. Sendo-o, sorrirá desdenhosamente do acima transcrito. Não é historia o que falta aos Painéis. Pelo contrário, sobra-lhes história, o excesso de histórias acerca deles. Já nos explicaram tudo e o contrario de tudo; já nos deram dois Nunos Gonçalves; já nos juraram que não houve Nuno Gonçalves nenhum; já nos traçaram histórias diversíssimas; já nos juraram que o santo é S. Vicente ou é o Infante Santo, ou é outro, ou é mesmo outra; já os expuseram como dois trípticos ou em disposição políptica; para muitos, falta um sétimo quadro (painel central); para outros faltam quatro, senão mesmo nove. Já ouvimos dizer que foram pintados antes de 1440 e cerca de 1460. Contra as teses "vicentinas" e "fernandistas", já houve a acutilante proposta de Vitorino Magalhães Godinho (1959) segundo o qual os Painéis representariam a passagem de poder do Infante D. Pedro (regente do reino) ao jovem rei D. Afonso V, em 1446. Mas também já se chamou à hipótese Godinho, hipótese marxista encapotada, tornando o suposto ou real Nuno Gonçalves num Fernão Lopes da pintura, cronista da burguesia contra os senhores feudais. Após se auto-flagelar com as hipotéticas reações portuguesas, Hersant põe-se numa terceira posição. Façam como eu. Ou "sejam como eu". "Suficientemente estrangeiro para que qualquer das ideologias nacionais não possa prevalecer sobre a análise estética; mas suficientemente português para que Gonçalves me atinja no mais profundo de mim próprio". Tanto se lhe dá como se lhe faz que um dado personagem seja X ou outro Y. O que lhe interessa, o que o comove, é que no Políptico (se for Políptico) "emerge uma consciência (...) consciência impossível na Idade Média". O Políptico é uma maravilha "porque interroga ao mesmo tempo a identidade individual e a identidade de uma nação". Cada figura está separada de todas as outras "por uma impercetível película", "mas, ao mesmo tempo, "no espaço conceptual concebido pelo pintor, cada um não é mais do que elemento de um corpo social que, a um nível superior, também toma consciência".
Daí vai desaguar num texto antigo doutro francês (René Huyghe) e por um afluente na "malinconia lusitana". Como alguns terão adivinhado, chega a mau porto, com a sacrossanta invocação da "intraduzível saudade".
3. Fica-me pouco espaço e pouco tempo para desordenar a orgia, o que não é propriamente um mal. Quanto a mim - para me colocar na terceira posição de Hersant - ainda nada nem ninguém me convenceu tanto como Jorge de Sena, num luminoso ensaio de 1963, publicado em São Paulo, na Revista de História. Sabendo perfeitamente que ousava muito, Jorge de Sena limitou-se a dizer que só sabemos que não sabemos nada. Desmonta a autoria de Nuno Gonçalves e combate o "crime" (a palavra é dele) de retirar os Painéis à arte portuguesa. E conclui "O centro deles sempre estará na Flandres sem que, por isso, os painéis deixem de ser da melhor pintura do século XV, nem deixem de ser tesouros artísticos, iconograficamente portugueses, que Portugal possui". Passaram-se mais de 40 anos sobre este artigo e nunca o vi convincentemente refutado. Mas, folheando as páginas da FMR, basta-me a mesma certeza que Sena tinha. E Sena sabia, como eu sei, que ao falar-se da "melhor pintura do século XV" se está a falar de Van Eyck e de Van der Weyden, de Uccello e de Antonello. Basta ou não basta?
por João Bénard da Costa 26 de novembro 2004, Público
- O senhor anda sempre à procura do livro ideal. Mas não existe. Ramiro concordou. - Foi uma frase genial. Nunca a esqueci, até hoje. Anos e anos comprador e leitor compulsivo de livros, frequentava uma livraria, género biblioteca, bar e tertúlia, onde nos seus solilóquios mais íntimos desejava encontrar uma resposta à pergunta: “Qual o sentido da vida?”. Entenda-se: “o seu sentido último”. De uma crença incondicional na literatura, ansiava por um livro que lhe desse a resposta, estabelecia prioridades e triagens nas suas consultas de escritos, leituras e compras, sentia-se a toda a hora insatisfeito, desarrumava livros já arrumados, deslocalizando-os e ordenando-os de novo, querendo arrumar o caos, o infinito, organizando-o e tornando-o finito. Gostava de filosofia, tinha consciência da insuperável insuficiência do conceito de Deus, acreditando existir um muro entre o mundo divino e o humano. Os livros eram um meio de o ajudar a encontrar a explicação última de tudo. Um dia, porém, ouviu de uma voz feminina, que o atendia e observava com regularidade, por entre uma miscelânea e enciclopédia de buscas, rebuscas e procuras insistentes, que não há um livro ideal. - E é verdade. Nunca tinha pensado nisso! Disse, Ramiro, abanando a cabeça. Consciencializou, de vez, sermos imperfeitos e perfectíveis.
A nossa última oportunidade reside na biodiversidade
O mundo natural está a desaparecer aos poucos. As provas estão por toda a parte. Aconteceu durante a minha vida. Eu vi com os meus próprios olhos. David Attenborough
Como se sabe, com o início da agricultura, alteramos a nossa relação com a natureza. Passámos a entender que o mundo selvagem era algo para usar, subjugando-o, e assim fomos perdendo o nosso equilíbrio.
Perdemos a ideia íntima de sermos parte integrante da natureza e colocamo-nos à parte dela, numa louca anarquia.
O nosso mundo humano perdeu a bússola da viagem da biodiversidade pensada para nos manter no caminho certo, e parece que nenhum alerta foi ácido o suficiente que mudasse o nosso comportamento.
A única medida que resta às nossas ações é a de tomarmos já as decisões certas, pela natureza e por nós mesmos.
Os seres humanos de tão inteligentes, desaprenderam a viver nos recursos finitos da Terra, desaprenderam igualmente a partilha que deles deviam fazer.
Da finitude de um mundo finito, não fará nunca parte o crescimento eterno. Só seremos bem-sucedidos com esta exata realidade: a realidade da necessidade absoluta da sustentabilidade.
O desafio hoje da peugada da nossa espécie é, ao mesmo tempo, o de melhorar a vida e o de reduzir o nosso impacto no mundo, e a cada ano existirão vencedores e vencidos. As árvores também crescem no local onde outras caíram.
A vida faz-se dos que desaparecem e dos recém-chegados e são estes que vão aumentar as probabilidades de outros serem inovatórios ao exporem as novas oportunidades.
Assim o lugar do mais completo projeto de vida, do mais bem-sucedido dos mundos, é o lugar da maior biodiversidade que a humanidade ainda não foi capaz de atingir.
Poderemos ainda refrear a tempo tudo o que tenha impacto negativo no ambiente? Poderemos ainda desfrutar de uma vida com sentido deixando que a natureza recupere?
A natureza não tem nem nunca teve preço e afinal de contas as práticas de a cotar em bolsa continuam a ter lugar.
O grande tema é o de recuperar o mundo a tempo de nele ainda podermos viver.
Num especial aperitivo para o renovado Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian deparamo-nos nestes dias com “Histórias de Uma Coleção”, uma extraordinária reunião de obras de arte do último século cujo regresso encheu de emoção quantos acorreram à inauguração da exposição. Sentia-se o “espírito Gulbenkian”, como nos grandes momentos de uma vida plena, enquanto no Grande Auditório tinha lugar a prodigiosa apresentação da violinista sul coreana Bomsori Kim, sob a direção de Giancarlo Guerrero, no concerto para Violino e Orquestra em Ré maior, opus 77, de Brahms. Em iniciativas paralelas, com públicos diferentes, a cultura e a arte manifestavam-se numa sublime convergência.
O que é uma Coleção? De que histórias é feita? Um aperitivo é um anúncio do que virá. À entrada, um conjunto de 73 obras, numa parede mágica, convida-nos a uma imersão total como acontece com as crianças ávidas numa loja de brinquedos. E perguntamos: Quem? Onde? Como? E compreendemos que “histórias de uma coleção” são a procura dos mil mistérios que se escondem e que se revelam na relação entre os artistas e as suas obras, e no caminho destas ao encontro de quem as demanda. E as obras de arte tornam-se, elas mesmas, protagonistas de fascínio, que se torna indescritível nessa imersão total que nos torna participantes desse diálogo que torna a arte uma procura de nós mesmos.
Ao reencontrar o “Fernando Pessoa” de Almada Negreiros, senti não apenas o carácter fulgurante deste ícone português, mas a memória da revista “Orpheu”, que foi um dos momentos mais importantes da moderna cultura em língua portuguesa. E lembro o facto de José de Azeredo Perdigão, o primeiro presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, ter participado no grupo de “Orpheu” (em 1915) e ter sido um dos fundadores da revista “Seara Nova” (1921), dois exemplos essenciais da nossa contemporaneidade. A primeira versão deste quadro de Almada foi feita em 1954, por encomenda de “Os Irmãos Unidos”, o restaurante do Rossio, de que era sócio Alfredo Guisado, um dos companheiros de “Orpheu”, onde tiveram lugar muitas reuniões do grupo, “em camaradagem e conta fiada”, na expressão de José-Augusto França. A cabeça que está no quadro foi primeiro desenhada em 1935, e publicada no “Diário de Lisboa” quando o poeta morreu. A tela que está na Gulbenkian é a réplica, encomendada em 1964. A Fundação procurara adquirir a versão original, na sequência da atribuição do prémio de pintura extraconcurso na I Exposição de Artes Plásticas da Gulbenkian em 1957. Não houve, porém, acordo quanto ao valor, que, aliás, se fixaria em leilão. E assim foi encomendada pela Fundação ao artista uma réplica, que Almada realizou, projetando o primeiro quadro em espelho, com “curiosas incongruências na posição das mãos e do papel”, mas inspirando-se nos misteriosos painéis de S. Vicente de Fora, que apaixonaram o pintor, centrado na figura repetida do que se pensa ser S. Vicente, como esclarece no belo catálogo Ana Vasconcelos, podendo ainda lembrar-se a disposição geométrica do chão, que permitiu a ordenação dos painéis no Museu de Arte Antiga a partir de 1940. “Fernando Pessoa está sentado a uma mesa de café, pelo verão de 1915. Sobre o tampo da mesa o número 2 de ‘Orpheu’. É o retrato do poeta e da sua geração que a simples presença da revista anuncia. E também, de certo modo, um retrato de Lisboa, que entra, num sol matutino pela sala dentro, envolto em cheiro de maresia – porque se está no Terreiro do Paço e o café só pode ser o ‘Martinho da Arcada’. O poeta suspendeu a escrita, pousou a caneta, vai puxar uma fumaça. O café espera, ao lado com o açucareirozinho de metal amolgado” (segundo J.A. França). Eis porque considero esta obra-prima um ícone português, porque aí encontramos uma preciosa síntese de tradição e modernidade. “Serei Vitória um dia / - Hegemonia de Mim!” – como disse Almada em “A Cena de Ódio”.
Será que, de modo geral, as mães não são mais sacrificadas pelos e para os filhos do que os pais? Evidentemente, é um amor diferente, mas a pergunta tem sentido: alguém se sacrificou e nos amou e ama mais do que a mãe?
Por isso, dá que pensar o modo como as mulheres foram e são tratadas ao longo da História. E impressiona que também as religiões tenham de ser acusadas, pois, com excepção do taoísmo, tendem para a misoginia. Ficam aí alguns textos universais significativos. "A mulher deve adorar o homem como um deus" (Zaratustra). Um texto antigo budista diz que "a filha deve obedecer ao pai; a esposa, ao marido; por morte deste, a mãe deve obedecer ao filho". "A natureza só faz mulheres quando não pode fazer homens. A mulher é, portanto, um homem falhado" (Aristóteles). "Toda a malícia é leve, comparada com a malícia da mulher" (Bíblia, Ben Sira). "Dou-te graças, Senhor, por não ter nascido mulher" (oração dos judeus ortodoxos). "As mulheres estão essencialmente feitas para satisfazer a luxúria dos homens. Não permito à mulher ensinar nem ter autoridade frente ao homem, mas estar em silêncio" (São João Crisóstomo). "A ordem justa só se dá quando o homem manda e a mulher obedece" (Santo Agostinho). "Nada mais impuro do que uma mulher com a menstruação. Tudo o que toca fica impuro" (São Jerónimo). "No que se refere à natureza do indivíduo, a mulher é defeituosa e mal nascida, porque o poder activo da semente masculina tende a produzir um ser perfeito parecido, do sexo masculino, enquanto que a produção de uma mulher provém de uma falta do poder activo " (Santo Tomás de Aquino). "Os homens têm autoridade sobre as mulheres em virtude da preferência que Deus deu a uns sobre outros" (Alcorão, que permite desposar duas, três ou quatro mulheres e também bater nas que se rebelem).
A pergunta é: que razões se apresentam para esta situação? As primeiras figurações da divindade foram femininas, mas, depois, com a sedentarização, seguiu-se, também no domínio religioso, o modelo predominantemente patriarcal, com as mulheres no lar e sob a tutela dos homens. Alguma inveja em relação às mulheres: afinal, da vida quem percebe são elas. Os homens têm mais força física, mas elas são mais resistentes. As mulheres estavam sujeitas à impureza ritual e eram consideradas passivas também na geração, pois o óvulo feminino só foi descoberto em 1827; dada esta passividade, a mulher não poderia ser imagem de Deus e, embora Deus esteja para lá da determinação sexual, nunca se poderia recitar o Credo, dizendo: "Creio em Deus, Mãe todo-poderosa, criadora dos céus e da terra." Ela não poderia pregar. Foi um escândalo quando o Papa João Paulo I disse que Deus também é Mãe. E há outra razão: quem escreveu os textos eram homens, a educação era para os rapazes...
E Jesus? Escandalosamente, pois era contra o espírito e a atitude daquele tempo, tinha discípulos e discípulas. Segundo o Evangelho de São Lucas, "acompanhavam-no os Doze e algumas mulheres", ensinava tanto homens como mulheres, ficando em casa, por exemplo, de Marta e Maria. Acabou com o tabu da impureza feminina, deixou-se tocar e acarinhar publicamente por uma prostituta, louvando o seu gesto de o perfumar e perdoou-lhe os pecados. Seguiram-no até à morte, como se lê no Evangelho segundo São Mateus: "Junto à cruz havia muitas mulheres que tinham seguido Jesus desde a Galileia, entre elas Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e José, e a mãe dos filhos de Zebedeu." As primeiras testemunhas da fé na ressurreição — na morte, Jesus não caiu no nada, pois entrou na plenitude da vida em Deus, está vivo em Deus para sempre como esperança e desafio para todos —, foram mulheres, a começar por Maria Madalena, chamada até por Santo Agostinho a "Apóstola dos Apóstolos". E como poderiam ser de São Paulo, que está na base da tomada de consciência da igual dignidade de todos, ao proclamar, na Carta ao Gálatas: "Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus", certas afirmações de menosprezo e subordinação das mulheres, que lhe são indevidamente atribuídas? Não é ele que, na Carta aos Romanos chama "apóstola" a Júnia? “Saudai Andrónico e Júnia, meus concidadãos e meus companheiros de prisão, que tão notáveis são entre os apóstolos e que, inclusivamente, se tornaram cristãos antes de mim.”
Foi com a lenta transformação da Igreja numa gigantesca instituição de poder e com a sacerdotalização dos ministérios — a ordenação sacerdotal, distinguindo duas classes na Igreja: o clero e o povo —, que os leigos em geral e sobretudo as leigas foram, contra a vontade de Jesus, que tinha declarado explicitamente: “sois todos irmãos”, sendo subordinados e desiguais, como se pode ler na encíclica Vehementer Nos do Papa Pio X (foi canonizado): “A Igreja é, por natureza, uma sociedade desigual. É uma sociedade composta por uma dupla ordem de pessoas: os pastores e o rebanho... a multidão não tem outro dever senão o de aceitar ser governada e cumprir com submissão as ordens dos seus pastores.”
Neste contexto, é necessário considerar como histórica, quase uma revolução, a recente decisão do Papa Francisco anunciando que 80 entre os participantes com direito a voz e voto no próximo Sínodo dos Bispos sobre a sinodalidade, em Outubro, não serão bispos e “que 50% deles serão mulheres”.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 13 de maio de 2023
Em Yuste, foi entregue na passada semana o Prémio Europeu Carlos V. Recordamos aqui o marido da Imperatriz Isabel de Portugal, filha de D. Manuel I e a tradição bem portuguesa do Dia da Espiga, que invoca a Cultura da Paz e a salvaguarda do meio ambiente e da proteção da Natureza.
A quinta-feira de Ascensão é, em Portugal, como aliás na Europa, um dia de grandes e antigas tradições. Se entre nós a data deixou de corresponder a um feriado, por troca com a festividade do Corpo de Deus, o certo é que grande parte dos feriados municipais tem essa invocação. No mundo rural havia mesmo o uso muito antigo de subir a um monte, como sinal de dedicação espiritual, de exigência pessoal e de homenagem à Ascensão aos céus do Senhor Jesus, quarenta dias depois da Páscoa e dez dias antes do Pentecostes. Mantém-se, porém, a tradição de feitura de um ramo que assinala o Dia da Espiga, que pode variar de região para região, mas tem a sua base definida. Em regra, é constituído da seguinte forma, por seis elementos: por uma Espiga de trigo, que corresponde ao desejo de fartura de pão; por Malmequeres, que simbolizam a abundância; por Papoilas que representam o amor e a vida; por um ramo de Oliveira pelo anseio de bom azeite e pelo apelo à paz; por um ramo de Videira, que almeja um bom vinho e muita alegria; e o Alecrim ou Rosmaninho que se ligam ao desejo de saúde e força. Diz-se que o ramo da Espiga deve ser guardado em casa, junto da porta de entrada, como sinal de bom augúrio, “não devendo ser perturbado na sua quietude, e apenas sendo substituído no ano seguinte por outro ramo de igual composição, mas mais viçoso”.
NATUREZA, DIGNIDADE E CULTURA DA PAZ Esta simbologia, invoca três fatores de grande relevância e atualidade: o equilíbrio entre a humanidade e a natureza, a dignidade da pessoa humana como centro da vida comunitária e uma cultura de paz como base fundamental do aperfeiçoamento humano. Sendo a sociedade imperfeita, cabe-nos um esforço determinado no sentido da perfetibilidade. Pela experiência, pela aprendizagem, pela atenção e pelo cuidado, trata-se de usar o gradualismo como modo fazer da sociedade um lugar de diálogo e de emancipação. Esta ideia leva-nos à recente declaração do Secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, ao receber o Prémio Europeu Carlos V, que afirmou não ser a guerra coisa do passado, já que as divisões persistem e crescem, enquanto estamos a queimar a única casa comum. “Há famílias obrigadas a fugir de guerras ou de eventos climáticos extremos, numa escala não vista há décadas”. Urge compreender que “a paz é ilusória e a invasão da Ucrânia está a causar sofrimento e degradação do país e do povo”. Daí ser tempo de reinventar o multilateralismo, sem renunciar a uma identidade aberta – “em lugar das balas, devemos recorrer aos arsenais diplomáticos”.
As negociações, a mediação, a conciliação e a arbitragem têm de ser exaustivamente consideradas, a fim de se resolverem pacificamente os conflitos. “O discurso de ódio, a polarização, o racismo e a xenofobia espalham-se à velocidade de um clique e perante o crescimento destes movimentos, é necessário defender a humanidade e rejeitar o discurso que explora as diferenças e mina a coesão territorial”. A pandemia expôs “fraturas chocantes” e, num olhar para a atualidade, as diferenças entre ricos e pobres e a crise do custo de vida estão a empurrar milhões para a pobreza. É urgente, assim, construir um mundo mais justo, mais inclusivo e digno que não deixe para trás ninguém. “Não pode haver paz duradoura sem solidariedade. Não há coesão social sem direitos humanos. Não há justiça sem igualdade”. De facto, importa articular as preocupações ligadas à paz na Europa e no mundo com a defesa e salvaguarda do meio ambiente e, no entanto, “uma ganância grotesca está a punir as pessoas mais pobres e vulneráveis, enquanto destrói a nossa única casa”.
A circunstância atual obriga a uma reflexão muito séria e determinada que permita integrar os grandes desafios humanos perante os quais nos encontramos. A guerra às portas da Europa é a ponta de um vulcão em atividade descontrolada. A situação da Ucrânia apresenta um perigoso impasse caracterizado pela persistência de uma perigosa destruição mútua. Desde o Médio Oriente ao Sudão, verifica-se a incapacidade de regulação por via diplomática. Contudo, além da força do ódio, prevalece o egoísmo suicida da sociedade do consumo e do desperdício, que afeta gravemente a sustentabilidade humana e ambiental. Algumas vozes, porém, reivindicando soluções imediatas e totais, apenas contribuem para arrastar os problemas e para justificar adiamentos dando espaço a quantos recusam solidariedade em relação às gerações futuras. Em lugar de medidas urgentes para garantir a justiça distributiva e preservar a equidade entre gerações persiste a ideia de que não vale a pena contrariar uma suposta fatalidade quanto à destruição do nosso planeta único…
COMO JAPÃO E EUROPA SE ENTREVÊEM… por Camilo Martins de Oliveira
Minha saudosa Princesa de mim:
Recebi esta tarde, de um grupo de senhoras japonesas cujo clube cultural me convidara a falar sobre "Olhares trocados: como Japão e Europa se entrevêem na arte", um "kakemono" com a caligrafia de "ichi go ichi é", máxima que exprime o espírito da cerimónia do chá e posso analiticamente traduzir por: "um encontro é um tesouro que não se repete"... Sensibilizou-me a intenção e o gesto; comove-me o pensamento. Das vezes que, namorados, nos encontrámos e demos a mão, e os olhos de cada um foram a luz dos olhos do outro, não saberei distinguir uma só, nem posso dizer que foram todas iguais, ou alguma diferente. Pela simples razão de que todas foram e são únicas. A contemplação do amor é descobrir sempre o mesmo como pela primeira vez, com a mesma novidade da emoção. Assim também é o olhar do japonês para a natureza ou o objeto ou obra de arte, mesmo artesanal. Para nós, a verdade das coisas é aquela que se descobre, que "se traz ao de cima", que se manifesta. E esta atitude vala tanto para o naturalista que reproduz, como para o impressionista, o cubista ou o abstracionista: em todas essas escolas ou correntes se afirma uma visão própria, ou se pretende transmitir realidades tal como nos apoderámos delas. Para o japonês, o que se procura, o que conta e determina a entrega à contemplação, é o que não se vê. O olhar, ou o escutar - assistir a um concerto no Japão é perceber como o silêncio é participante - torna-se assim, mais do que um exercício dos sentidos, uma extensão da alma. E é esse olhar da alma que traz o objeto de arte - que é visível mas cheio de invisível - para o convívio quotidiano. Se compararmos o recheio e decoração dos palácios e casas grandes onde nascemos - e a sua acumulação de objetos exibicionistas de abundância material - com o despojamento dos interiores coevos das residências e retiros da nobreza japonesa, logo nos aperceberemos dessa diferença essencial. Nas salas japonesas, a prova de bom gosto não amontoa. Afasta e singulariza cada objeto de estimação - um "kakemono" pendurado (seja uma caligrafia, um "sumi é"), uma pintura, ou um arranjo de flores, ou uma peça de cerâmica ou de metal - de modo a poder ser contemplado e convidar ao diálogo invisível... Este sentimento da decência e da superioridade espiritual do que é simples, está patente na arquitetura e arrumo interior dos santuários, templos e mosteiros, como nas casas e pavilhões de repouso da nobreza, tenham estes a grandeza de Katsura ou sejam mais pequenos, como o Gingakuji e o Kinkakuji. E apraz-me pensar que tal contenção material terá moderado a arrogância e os excessos decorativos de construções afirmativas do poder político e militar e suas linhagens, como nesses magníficos monumentos do "barroco" Tokugawa que são o Nijo jo, aqui em Kyoto,e os túmulos dos "shogun" dessa família, em Nikko, a noroeste de Tokyo. Lembrei-me de ti, por interposta referência, durante a minha charla desta tarde. Sabes bem que não preciso de cábulas para que me sorrias à janela do coração.. Mas ocorreu-me, vinda de fora dos tópicos que tinha alinhado, a memória de Mondrian (o Piet Mondrian, nosso conterrâneo, compatriota de teus pais pelo passaporte, já que somos família de muitas fronteiras). Recordas-te da exposição que, juntos, visitámos em Paris, e de eu te ter dito que aqueles Mondrian me evocavam a geometria das plantas da arquitetura japonesa, ou ainda o desenho de portas e janelas - e dos quebra-luz das lanternas portáteis - as madeiras que dividem o espaço e seguram a translucidez do papel de arroz? Na altura em que falava, "vi" primeiro a divisão do interior da minha caixa de "ô bentô", donde fui petiscando o almoço de ontem, no "shinkansen" que me trouxe de Tokyo, onde tinha aterrado. Os compartimentos dessa "merendeira" são lineares e desiguais, contendo cada um a sua dose de alimentos diferentes, pela substância e pelo paladar. O seu consumo não obedece a qualquer ordem pré-estabelecida, vamos comendo, daqui e dali, conforme "conversamos" com eles. Na sua apresentação, há todavia a proposta de oferta, em quantidades que são, para nós, amostras, de produtos conformes à estação da natureza. E a intenção de nos conformar a ela, tornando-os mais apetecíveis pelo prazer cromático que, à vista, cada petisco em seu arrumo nos dá. Em toda a sua "sofisticação" (diríamos nós), o "bentô" é comida popular, quase sempre almoço do funcionário, do empregado, do trabalhador comum. Mas tem, para lá da saúde dietética e da economia, uma dimensão espiritual, na medida do seu usufruto estético e da sua referência à mãe-natureza (nós diríamos Criação...). Mondrian, que tanto se preocupou com a relação da arte à vida, perceberia o que quero dizer. O mesmíssimo princípio estético se aplica ao "kaiseki ryiori" com que fui gratificado ao jantar num "ryotei", restaurante fino e caríssimo. Aqui, não só a variedade dos catorze serviços obedece também à sazonabilidade dos produtos, mas, nas mesinhas baixas dispostas à nossa frente, as louças e lacas em que se nos oferecem as iguarias apresentam formas e desenhos alusivos à estação do ano... É já mais copiosa a refeição, mas "quem pode" não é obrigado a comer tudo... Vai-se bebendo "saké", acompanhando os pratos de "sashimi", "tempura" e os outros, cozidos, avinagrados ou mais adocicados, grelhados, etc... Mas, no fim da refeição, com a "miso shiru" (sopa de soja fermentada) e os "pickles", vem a malga de arroz. Esta, em princípio é para ser totalmente ingerida. Todos a comem, como quem cumpre. Tal como na nossa tradição cristã, não se deita fora o pão dos pobres." Quando, décadas mais tarde, na senda de Camilo Maria, me calhou andar pelo Japão, encontrei muito do mesmo. E também a coexistência de tudo isso com um Japão eletrónico e "pop". E pensei muito nessa coexistência, que não se anuncia só nas caixas do "bentô". Está no cerne de uma visão do mundo, com a aceitação de si e do seu contraditório, ou simplesmente da diferença, como se explica até pela convivência do shintoísmo com o budismo desde o século VII. Talvez também se possa dizer que, para o japonês, um momento de distração desse princípio de bondade universal, ou seja, a afirmação "erga omnes" da diferença pretendida, pode conduzir à barbárie. Sentimos, penso eu, de quando em vez, ou dessa vez quando estamos às avessas com a circunstância, um desejo fúnebre de embirrar com o mundo. Daí, mal nenhum ao mundo virá, pois tão pouco podemos que nem para aguentar a birra - ou o burro amarrado - temos força... A menos que a gente se dê conta de que a birra, afinal, nossa não é, mas cegueira, sim, da circunstância. Como quando, esta noite, me assusto ao imaginar, depois de tanto comentário mais televisivo do que silenciosamente sábio, que estamos todos a ser arrastados para um barranco de cegos...
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 31.05.13 neste blogue