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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O ENIGMA DA PESSOA HUMANA


Com as biotecnologias, um dos novos continentes científicos é o cérebro, e a pergunta é se, com os avanços neste domínio, o enigma do ser humano será finalmente superado ou se, pelo contrário, ele permanecerá. Grandes debates se travam entre as neurociências e a filosofia, precisamente por causa de temas candentes e incendiários, como a subjectividade, a autodeterminação, a vontade livre.


Sobre estas questões, o filósofo e professor da Universidade de Tubinga Manfred Frank deu há algum tempo uma longa entrevista ao alemão “Die Zeit”. O que aí fica reflecte esse debate.


A questão da subjectividade pertence ao núcleo da reflexão humana. Embora algumas correntes filosóficas falem da sua dissolução, penso que o sujeito é ineliminável. Argumento, mostrando que a condição de possibilidade de objectivar — no caso do Homem, de objectivar-se — é o sujeito, de tal modo que, por mais que objective de si mesmo, nunca se objectivará completamente, já que continuará a ser o sujeito que (se) objectiva.


Frank também afirma que nunca será possível reduzir a consciência e o espírito a processos neuronais, e isso "por razões de princípio". Há uma questão de princípio: como explicam as neurociências a passagem de processos físicos inconscientes a processos mentais conscientes? "Não é possível substituir o saber sobre nós mesmos por um saber objectivo sobre o mundo." A subjectividade não pertence ao mundo dos objectos.


O "eu" do autoconhecimento não é redutível àquilo a que nos referimos com nomes ou caracterizações. "A autoconsciência é um conhecimento único, reflexivo, no qual uma pessoa se refere conscientemente a si mesma, mas a si mesma em posição objectiva. Como poderia ela, porém, captar este eu-objecto como ela mesma enquanto sujeito, se, antes desta apresentação objectiva, não tivesse tido uma consciência inobjectiva de si?" Esta consciência inobjectiva quer dizer vivida, pré-reflexiva.


Permanece uma questão: "Quando identifico espírito com matéria, não identifico matéria com matéria." Trata-se como que dos dois lados de uma moeda, mas as condições de verdade do neuronal não se identificam com as do espírito: as primeiras encontram-se num tratado de fisiologia enquanto as dos estados mentais são verificadas introspectivamente, como viu Descartes. Isso é experienciado também ao nível do vocabulário, que é diferente para descrever o psíquico e o estado físico correspondente: não teria sentido exprimir a inclinação amorosa por alguém, descrevendo os processos electromagnéticos no cérebro.


A tese de neurocientistas que afirmam não haver, por detrás do alegado livre arbítrio, senão processos neuronais, que determinam a vontade, contradiz não só a compreensão jurídica de responsabilidade mas também a nossa própria autocompreensão: queremos ser autores racionais de mudanças no mundo — tentamos "tomar decisões racionais".


Para lá dos sistemas jurídico-penais, que pressupõem a liberdade, um exemplo. Suponhamos que alguém tropeça, sem querer, e, ao cair sobre outra pessoa, esta é apanhada por um carro e morre. Distinguimos muito bem esta situação daquela em que alguém empurra intencionalmente outra pessoa. E há esta virtude admirável: resistir moralmente à maioria. Os opositores ao Terceiro Reich "merecem o nosso sumo respeito", precisamente porque foram poucos e capazes de enfrentar a morte. Aí, "os neurocientistas têm muito para justificar, no sentido de dar conta do correcto normativamente dessas decisões a partir de processos neuronais".


Tudo o que é essencial, quando pensamos na humanidade, "vinculamo-lo ao pensamento da subjectividade e não à nossa representação do cérebro. São sempre pessoas, sujeitos, que consideramos como criadores de literatura, cultura ou religião". Afinal, "temos cérebros e somos eus". Daí poder formular-se o imperativo categórico de Kant nestes termos: "Nunca trates os seres humanos como coisas, mas sempre como sujeitos e pessoas." Se o mundo consistisse só em objectos, não haveria ninguém a quem dirigir o preceito: "Porta-te decentemente com os outros sujeitos."


Neste mesmo sentido se pronunciam outros autores mais recentemente. Por exemplo, o médico e teólogo Alfred Sonnenfeld em El arte de la felicidad. Mente, cerebro y genes: “Apesar do interminável e espectacular dinamismo cerebral, permanece a pergunta pelo nosso eu, a nossa identidade. O “eu” que se vai formando não é a mesma coisa que o cérebro. Há quem opina que o eu é gerado pelo cérebro, o eu seria produto do cérebro e, por conseguinte, não seria livre. Mas esta afirmação carece de justificação. Na nossa análise sobre a formação do autoconsciente estaríamos equivocados se pensássemos que cada um é o seu cérebro. Sem dúvida, sem a posse de um cérebro mais ou menos são, não poderíamos pensar, estar despertos, ser conscientes. Mas disso não se pode concluir que somos idênticos ao nosso cérebro. O ser humano é muito mais do que o seu cérebro.”


Reflectindo sobre o eu irredutível (absolutamente irredutível também ao eu do pai e da mãe, também eles irredutíveis), expressão do milagre da pessoa, que é fim em si mesma e não simples meio, e sobre a liberdade que, numa situação-limite (por exemplo, numa guerra, um soldado é obrigado a matar um inocente sob pena de, se não o fizer, ele próprio ser morto, e não o faz), dá a vida para salvaguardar a dignidade, é inevitável não ser confrontado com a questão de Deus criador e salvador.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 29 de abril de 2023

A VIDA DOS LIVROS

De 1 a 7 de maio de 2023


Ernst Gellner escreveu em 1994 Condições da Liberdade (Gradiva, 1995), onde procede a uma análise de grande lucidez sobre a democracia moderna, numa obra que tem ganho importância acrescida nos últimos anos, quando assistimos a tendências preocupantes no sentido da desvalorização da liberdade.

 


OS ECOS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA
Fustel de Coulanges publicou em 1864 uma obra histórica fundamental cujos ecos chegaram aos nossos dias. A Cidade Antiga procurou caracterizar as principais experiências sociais e políticas da antiguidade clássica, esclarecendo uma dúvida persistente sobre a visão idílica desse passado, pondo os pontos nos ii sobre diferenças no tempo que não devem ser esquecidas. “A ideia que se tem da Grécia e de Roma confundiu frequentemente as nossas gerações. Tendo observado de forma deficiente as instituições da cidade antiga, pensámos fazê-las reviver nos nossos dias. Criámos ilusões sobre a liberdade entre os antigos e, assim, pusemos em perigo a liberdade entre os modernos”. O tempo da Revolução francesa pretendeu restaurar as tradições da República Romana e disso nos apercebemos quer nas referências simbólicas do neoclassicismo, quer no cultivar de certas fórmulas históricas pelos autores mais célebres desse tempo. Aliás, no sentido desse esclarecimento, em 1819, Benjamin Constant (1767-1830) escreveu o volume Sobre a Liberdade dos Antigos Comparada com a dos Modernos, onde analisava a distinção entre a liberdade dos indivíduos em relação ao Estado (“liberdade de”) e a liberdade no seio do Estado (“liberdade em”). Nessa perspetiva, a liberdade dos antigos, segundo a fórmula tornada clássica, era participativa, mas limitada às sociedades que dispusessem de uma cidadania exclusiva, na qual só alguns tinham direitos, enquanto a liberdade dos modernos se baseava numa cidadania mais ampla e positiva, centrada no primado da lei, na representação pelo voto e no consentimento indireto.


NO ESTEIO DE POPPER
No esteio do pensamento de Karl Popper, Ernest Gellner (1925-1995), britânico de origem checa, viria a salientar a ausência de uma autêntica liberdade individual entre os antigos, mesmo que estes não estivessem limitados por um tirano ou pelo domínio estrangeiro, uma vez que o cidadão estava sujeito à cidade sem quaisquer reservas, já que a sua vida privada não escapava à tirania do Estado e da sociedade nos mais diversos pormenores Esse constrangimento projeta-se nos nossos dias, mesmo que saibamos que uma sociedade civil institucionalmente organizada pode garantir uma maior liberdade individual. Os riscos são, porém, evidentes, num tempo em que novas e subtis censuras se manifestam, lembrando-nos do que George Orwell designou como “duplipensar”, como paródia ao termo dialética, para indicar o modo como uma nova tirania de convicções pode pôr em causa a capacidade de duvidar. E assim a cooperação social, a lealdade e a solidariedade apenas podem tornar-se efetivas se tomarmos consciência de que a verdade não é monopólio de quem quer que seja. Trata-se, no fundo, de garantir a soberania da capacidade do indivíduo se questionar a si próprio.


VEM À BAILA TOCQUEVILLE
Como afirmou Tocqueville, ao analisar a democracia na América, a coesão social pressupunha a existência de valores comuns, com a capacidade de integração em associações e instituições eficazes, que não fossem totais, encadeadas umas nas outras, apoiadas por rituais. E poder-se-ia abandonar essa associação quando se discordasse, sem haver acusação de traição. A sociedade civil, de facto, torna-se eficaz, porque é flexível, específica e instrumental. E assim o ser humano moderno é ao mesmo tempo individualista e igualitário, com capacidade de coesão contra qualquer poder total, estatal ou social, precisando a sociedade civil de uma base económica independente. O “doce comércio” de Montesquieu ou a paz de Kant contrapõem-se à lei da guerra. E não sabemos o suficiente para ser intolerantes, segundo Popper, baseando-se a sociedade civil na separação entre as instituições políticas e a vida social e económica, sem domínio da vida e da cultura por supostos detentores de uma qualquer verdade.  


Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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