Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Li num texto publicado na net - com referência a tê-lo sido, também, no Público - de um imigrante norte-americano, residente em Portugal, desde 2016, sob o título “Porque é tão difícil dominar a língua portuguesa”, o seguinte:
“Há uma conspiração. (…) Esta ideia de conspiração parte de imigrantes, como eu, de terras cuja língua materna é o inglês, que ficam frustrados com uma das barreiras mais difíceis de superar neste país. E que condiciona mesmo a nossa integração na sociedade portuguesa. Refiro-me à dificuldade de muitas pessoas em dominarem o básico da língua portuguesa”.
Após falar nas complicações fonéticas e gramaticais do nosso idioma, sobressai de essencial no seu testemunho o facto de os portugueses presumirem que os estrangeiros não conseguem falar nem perceber português, resultado do lauto número de lusos que falam inglês e da prevalência de informação anglófona, acrescentando:
“Nas minhas viagens por outros países da Europa, tenho sido obrigado a falar e a ler na língua local para sobreviver - isso não acontece em Portugal. (…) Muitos encontros entre portugueses e estrangeiros iniciam-se com o português a falar inglês, sem dar ao visitante a oportunidade de provar a sua capacidade de falar na língua da sua terra”, reforçando-o nestes termos:
“A via normal para aprender uma nova língua é passar tempo suficiente a ler, a ouvir, a escrever e a falar. As primeiras três atividades podem ser feitas por alguém sozinho. A última, no entanto, tem de ser praticada, preferencialmente, com um natural do país, alguém com tempo e paciência nas fases iniciais”.
Exemplifica-o, de novo, com a ideia comum entre turistas e imigrantes não lusófonos residentes entre nós, de não ser necessário falar português no nosso país, concluindo: “É como se o mundo português conspirasse contra os estrangeiros para manter a ilusão de que a língua, bem como a cultura, acolhe a todos. Mas parece que há um limite”.
Esta perceção é real, pois se é verdade que há uma nova vaga de imigrantes residentes que só ficam enquanto auferirem de um benefício pessoal imediato, não reconhecendo em Portugal uma fonte civilizadora, tendo como efeito um funesto voluntarismo na não aprendizagem do português, também é verdade que há os que se esforçam pela integração, apropriando-se saudavelmente da língua, sentindo-se frustrados pela não ajuda da maioria dos portugueses ao ocultarem dos ouvidos dos outros um bem de que se julgam o único possuidor.
Escrevi, a propósito, um texto neste blogue, reconhecendo responsabilidade nossa nesse impulso excessivo de falar inglês, por tudo e nada, mesmo que mal, após presenciar uma situação caricata, em que falo do provincianismo, no nosso próprio país, ao omitirmos o nosso idioma e usarmos o alheio “(…) mesmo que o interlocutor se esforce por o aprender e falar, chegando ao cúmulo de ter presenciado, num hipermercado, uma portuguesa a atender, sempre em inglês, um imigrante que se esforçava, expressando-se e respondendo sempre em português (apelei a uma colega, que se apercebeu, para chamar a atenção para o exagero, que compreendeu, prontificando-se a fazê-lo, dado me ter antecipado e não poder esperar)” (A Língua Portuguesa no Mundo, XCVI - Perfil de Anteriores e Novas Vagas Migratórias).
Consciente ou inconsciente, este sentimento de posse, mero voluntarismo, desejo de simpatia, secundarização linguística, complexo de inferioridade ou de subserviência linguística, é tanto mais desadequado, irrazoável e insólito quando somos useiros e vezeiros em exprimirmo-nos em qualquer idioma, que não o nosso, dentro da nossa casa, com estrangeiros, mesmo em relação a imigrantes residentes que nos apreciam e querem integrar-se embora, por princípio, seja dever de qualquer imigrante que nos procura aprender o básico do nosso falar.
Este ocultar do português dos ouvidos dos que o não têm como língua materna ou oficial, é tanto mais desprestigiante quando é objetivamente verdade que a língua portuguesa é, por direito próprio, um dos idiomas mais falados mundialmente, integrando o núcleo restrito das línguas de comunicação global, sendo útil e de valor estratégico para quem a fala, incluindo estrangeiros.
Será que persiste, como carga negativa, para além de um sentimento de posse, mesmo que inconsciente, uma baixa consideração social pelos próprios falantes nativos do nosso idioma, ao não terem o português em igualdade de estatuto com outras línguas, mesmo na própria casa?
A sua vida foi como a notícia da passagem de um astro: porque pensamentos e atos acontecem e conduzem e são presente e futuro.
Que o sofrimento imerecido é redentor? Tal como disse MLK no seu discurso? Isso vem da Bíblia, vem do seu espírito? Pergunta Fareed Zacaria a John Lewis.
John Lewis:
Vem da Bíblia, dos ensinamentos de Jesus, mas também do Dr. King e de Gandhi.
Chegamos a um ponto em que acreditamos que algo é tão correto e tão necessário que estamos dispostos a morrer por isso.
E digo:
O sentido que une os homens lembra uma idade não imaginada de aproximação a um fundo que tem tudo. Uma idade límpida e de anunciação ao que nos prometemos e que ainda não aconteceu.
Este sentido, depois de encontrado, revela-se como um sítio de verdade que origina a passagem de um astro.
Então, com a maior emoção, a voz do tempo, incomensurável, mas finita e grata aos nomes de Pitágoras, confirma dor e amor de perdição; reúne toda a poesia, toda a contradição, e o comboio que nos levará à morte a que estamos condenados desde o início, levar-nos-á a um novo domicílio.
Este o saber filosófico que se sabe e não se vê.
Certo é que quanto mais se difunde um pensar e um atuar como o de John Lewis, mais a nossa viagem se aproxima do descobrir, do encontro extraordinário com a esperança lúcida.
Esta a minha homenagem a John Lewis, apenas aquela de que sou capaz, aquela que vou reconhecendo o quanto o seu traço me é fiel.
E eis de novo que o cito:
Chegamos a um ponto em que acreditamos que algo é tão correto e tão necessário que estamos dispostos a morrer por isso. JL
A arquitetura e a cidade em Rohmer expõem falhas, modificações, reflexos, imagens, encontros.
“Dans le fond, ça me rassure, dis-je, j’aime bien qu’il y ait du monde dans les rues, à n’importe quelle heure. C’est ce qui fait l’agrément de Paris. Je ne connais rien de plus sinistre que les après-midi de province ou de banlieue…”, Fréderic In L’Amour, l’après-midi (Rohmer 1998, 214)
No filme L’Amour, l’après-midi (Eric Rohmer, 1972) a metrópole, neste caso Paris, apresenta-se como um lugar que salva da angústia e do aborrecimento quotidiano. A cidade oferece a possibilidade de o indivíduo desaparecer para emergir.
Lê-se em ‘Film as Theology’ de Keith Tester (2008) que o território dos filmes de Rohmer têm um sério compromisso com a realidade. Segundo Tester, o realismo dos seus filmes, distingue-se ao refletir a importância da graça teológica para a vida empírica de cada pessoa humana. Nos filmes de Rohmer, o território cartografado é precisamente o lugar para aprender a olhar e para atender às manifestações da graça.
Em L’Amour l’après-midi a cidade revela-se como sendo o lugar onde a imaginação se desenvolve e onde suposições se poderão eventualmente cumprir. É durante a hora de almoço tardia que Fréderic fantasia viver uma vida paralela. Mas assim que dá a possibilidade da vida imaginária se concretizar, através de Chloé, Fréderic escolhe conservar-se firme na sua vida real.
Na opinião de Tester, os filmes de Rohmer exploram o conceito de graça que está incorporado no mundo da experiência e da prática. Graça para Rohmer é o momento capaz de transformar o indivíduo de modo a poder perseverar na vida real. Rohmer revela assim a importância de cultivar o olhar aberto ao milagre que irrompe inesperadamente através dos outros e do mundo objetivo que nos rodeia.
A arquitetura e a cidade em Rohmer têm esse papel, porque é através desse espaço físico que se expõem falhas, modificações, reflexos, imagens, encontros... Segundo Rohmer é a graça divina que salva e que indica o caminho e o verdadeiro destino.
Tanto o cinema como a arquitetura, para Rohmer, moldam o espaço e têm a capacidade de influenciar e determinar o trajeto humano. Porém é sobretudo a arquitetura, que através da sua forma e escala pode ser uma abertura para a compreensão que transcende. A cidade onde Fréderic se move e trabalha é o espaço da sua vontade e da sua imaginação mas também lugar de uma vontade sublime. Para Tester, Rohmer com sua objetividade, explora sobretudo os momentos em que a infusão divina se perde e se manifestam erros, ilusões e estratégias na tentativa das personagens se preservarem da tentação.
Numa conferência sobre o silêncio, comecei por pedir um minuto de silêncio. E em silêncio perguntei-me como é que os participantes — este, aquela — terão ocupado esse minuto. A pergunta coloca-se aliás em relação a todos os minutos de silêncio pedidos em diversas circunstâncias. Sim, como se ocupa esse minuto de silêncio? Evidentemente, vai depender também das circunstâncias e de quem pede esse minuto.
Afinal — e isso é decisivo —, há muitos tipos de silêncio. Logo de início, é essencial entender que há os maus silêncios, alguns abomináveis, que é preciso exorcizar; depois, aqueles que a vida nos traz: uns impostos por situações dramáticas, outros, silêncios da decência humana, outros ainda, silêncios abençoados,, que nos vêm ao encontro na exultação da vida; impõe-se, em terceiro lugar, reflectir sobre uma cultura da pausa e do silêncio e ouvir o silêncio, se quisermos ser verdadeiramente humanos e não perder o essencial.
A. Comecemos pelos primeiros, os maus silêncios. Só exemplos.
O silêncio faltosoou mesmo pecador. Quando, na confissão, as pessoas me pediram ou pedem para fazer perguntas, a única pergunta que fiz ou faço é: “Há alguém com quem não fala?”. Negar a palavra a alguém, ao menos uma saudação, um “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, é uma forma de agressão. Tradicionalmente, até se usava uma expressão bela: para saudação, dizia-se “salvar” alguém, de tal modo que a pessoa que não foi saudada sentia-se tão magoada que dizia ou diz: “Imagine: nem me deu a salvação, essa pessoa não me salva”, e isso equivale a: “trata-me como se eu fosse um ninguém”.
Como é uma falta não pegar ao menos no telefone e dirigir uma palavra de saudação, de conforto, de solidariedade, a alguém que está na solidão, uma solidão que pode ser mortal. Como é mortal o silêncio que “ouvimos” num restaurante, por exemplo, com pais e filhos todos a dedar e sem uma palavra entre eles...
O silêncio mortalmente cobarde. Tantos que deviam uma palavra de explicação para o mal feito, mas abotoam-se no silêncio. A todos os níveis. Nem uma palavra de desculpa... E era obrigatório denunciar as injustiças, repor a verdade, mas isso não foi, não é, feito por medo e cobardia..., silêncio criminoso. Que dizer do silêncio e do encobrimento dos abusos sexuais do clero...
O silêncio indelicado, egoísta. Não houve, não há, uma palavra de gratidão por um favor, uma atenção, uma delicadeza. Por ocasião de uma festa, num aniversário, no meio de um pesar, pessoal ou familiar, não há a lembrança de uma palavra.
O silêncio amuado. O miúdo ou até já não miúdo, que amua, senta-se a um canto em silêncio torcido.
O silêncio manhoso. Alguém poderia obter uma vantagem para a sua vida. Isso não aconteceu, por causa do silêncio invejoso de alguém.
O silêncio irresponsável. Pessoas caíram na vida, porque alguém fez silêncio, não avisou.
O silêncio ignorante. Alguém devia responder, saber para formar, mas não responde, não forma, porque não sabe, é culpadamente ignorante.
B.1. Passamos aos silêncio que a vida traz, na sua dramaticidade.
O silêncio aterrado. Perante a iminência de um desastre brutal e inevitável..., a acontecer, não há tempo para palavras, fica-se em silêncio. Estava com uns amigos, quando surgiu a notícia: em França, um homem atacou com uma faca quatro crianças. Ficámos estarrecidos, em silêncio, não há palavras...
O silêncio recolhido. Perante a morte, sobretudo inesperada, de alguém muito, muito querido, muito querida..., no encontro com familiares e amigos, só restam um abraço, muito, muito apertadamente afectuoso, e um rosto em lágrimas. Na morte, somos remetidos para o silêncio, o silêncio que ela mesma constitui — o que dizemos exactamente, quando dizemos que alguém morreu? E aí está, do seu lado e do nosso lado, o silêncio fundo, misterioso, inabarcável, de um cemitério. O cemitério está num silêncio sepulcral e toda a nossa tagarelice, mesmo quando se é “uma picareta falante”, cai no silêncio.
O silêncio de chumbo. Perante certas catástrofes e alguns funerais, faz-se “um silêncio de chumbo”.
B.2. Silêncios que a vida requer na sua decência.
O silêncio imposto. Uma autoridade (o pai, a mãe, um professor...) manda calar e faz-se imperativamente silêncio.
O silêncio obrigatório. O segredo da confissão, por exemplo, é inviolável e tem de ser mantido em silêncio. Também há o segredo de justiça. A propósito: a quantas pessoas confiaria um segredo?
O silêncio secreto. Ai! Se tantos silêncios apenas balbuciados por cada um, cada uma saíssem do silêncio!...
O duplo silêncio da admiração positiva. No mausoléu de Immanuel Kant na antiga Königsberg, Prússia oriental, actual Kaliningrado, um enclave russo, encontra-se uma placa com o seu texto célebre, que diz o duplo silêncio: o silêncio admirativo e o silêncio imperativo da consciência que grita: “Duas coisas enchem o ânimo de uma admiração e de uma veneração sempre novas e crescentes quanto mais frequentemente e com maior persistência delas se ocupa a reflexão: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim.”
O silêncio do espanto perturbado. Afirmando-se o ser humano animal racional, o que dizer perante o aumento crescente de armamento, incluindo o nuclear, de tal modo que a Humanidade corre cada vez mais o risco de pôr fim a si própria, num suicídio colectivo?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 24 de junho de 2023
“A Mãe e o Crocodilo” de José Gardeazabal (Companhia das Letras, 2023) é uma metáfora sobre o tempo que atravessamos e vivemos, pleno de dúvidas e perplexidades.
A METÁFORA DA RECICLAGEM E se encontrássemos Vladimir, que trabalha numa fábrica de reciclagem e partlha a sua vida com um estranho animal doméstico, que é nem mais nem menos que um crocodilo? Eis o que o autor nos propõe, ainda por cima em ligação como uma misteriosa história de ocultação ou de esquecimento de uma mãe, que se recusa a revelar o nome de um pai desaparecido, mas ominipresente. O cenário é a Europa central e oriental, hoje lugar de todos os perigos e dúvidas. A geografia é muitifacetada, como não seria difícil de imaginar – ou seja, um lugar ex-fascista, ex-comunista, ex-leste, ex-industrial, ex-tudo… Foi esta a Europa que herdámos. O inesperado crocodilo chama-se Benito e talvez seja a mais previsível das personagens do romance. Benito é um símbolo e uma sombra permanente. Sim, o nome não parece ser um acaso, vem de uma História perturbadora. A sombra manifesta-se de maneiras diferentes. O mesmo se diga de Vladimir, que pode lembrar Vladimir Ilitch Ulianov, cujo nome servia para iludir os censores anticomunistas, para que não se falasse expressamente de Lenine. Mas este Vladimir pode lembrar ainda uma outra personagem, essa viva, que hoje anda nas bocas do mundo. Este Vladimir observa os hábitos do crocodilo, mas ainda sonha com uma mulher que deseja amar. A Alemanha é o horizonte que o motiva, por isso pergunta insistentemente “Warum?”. Cada vez mais próximo de Berlim…
UMA PERGUNTA INSISTENTE De facto, ele compreende mal o que se passa em redor, desejando superar essa dúvida. Contudo, subitamente, a parte da Europa em que Vladimir se encontra é atravessada por um grupo de refugiados que perturba a rotina moral da reciclagem, e Noor torna-se a paixão de Vladimir. As língua diversas faladas são aprendidas a caminhar pela Europa. “Aprendi línguas estrangeiras da melhor maneira, a fazer fila, à entrada das fronteiras”. Sobre a fábrica de reciclagem, temos de falar do seu proprietário Lazarus e do seu discurso e estratégia. Num tempo de ameaças ambientais, a reciclagem parece estar na ordem do dia. “A reciclagem é um trabalho de mãos, quem diria? Há turnos noturnos, a salvação do mundo não dorme, os dias são iguais às noites, não foram separados, não é o princípio do mundo, as condições de trabalho são terríveis e não as vejo a melhorar. A reciclagem não é sobre o presente, a reciclagem trata do omnipresente, os horários são semanais, os dias iguais, das nove às cinco e transportes públicos, turnos noturnos e os dias assim iguais até ao fim do capitalismo”. E quando estão cansados, vêem um video de uma cidade japonesa que só existe em imaginação. Assim, tudo fica mais calmo, com novas expectativas. Quanto ao nome do patrão da reciclagem, parece intencional, soa a pseudónimo de homem morto. E a reciclagem, industria supostamente avançada, corresponde a algo que vai contratar imigrantes pobres, operário contra operário, pobre contra pobre, pobres contra os mais pobres ainda. E o patrão da reciclagem fala de salários emocionais. “Um salário emocional é uma coisa nova, uma coisa que não custa dinheiro. As pessoas ficam tristes, ficam furiosas, as emoções ao rubro”. Mas há um ponto em que o mundo se sustém. “A reciclagem ardeu e o vermelho desse fogo fez o tempo avançaer, não sabemos para onde. Esse tempo não volta. A fábrica não volta, perdemos o nosso lugar pequenino no grande concerto da salvação do mundo. Música lenta, em fundo”.
A CHEGADA DE NOOR Eis o mundo do absurdo. Surge uma refugiada ou imigrante, chamada Noor. Acende-se o amor. Mas a situação da reciclagem é problemática. E Noor organiza as mulheres como os pobres e luta por um contrato coletivo, de que Lazarus não gosta. E acusa Noor de organizar sindicato selvagem…Este capitalismo verde tem muito que se lhe diga. O patrão não paga, fala de poesia e de terapia pela alma dos ricos.O mundo torna-se lixo… E a mágica reciclagem arde e faz o tempo avançar. “O desaparecimento da reciclagem faz-nos pensar no futuro Durante alguns dias, somos uma aldeia suiça. Estamos reunidos numa praça, fazemos um referendo de mãos nos bolsos”. E tudo se dilui. E a reciclagem deslocaliza-se, mas nem todos se deslocalizam – e a melhor entreajuda torna-se a fuga. E resta apenas a pergunta: “Warum?”. Porquê? E o mundo continua por revelar.
As aves marcam o relevo da maré e a estenografia das horas Mudam de estação como de idioma e ondulam pela areia de uma seara
Emergem de vírgulas interiores e anunciam uma ortografia madura entre as linhas de continentes decalcados a tinta impermanente
Têm uma caligrafia acidental em frente ao mar e uma forma nasalada de dizer meu pé, minha mãe, meu pão
Escrevem uma carta com sotaque de despedida, uma interrogação quando podia ser a travessia
in O Livro das Aves, 2009
Birds’ caligraphy
Birds register the movement of tides and the stenography of words They swap seasons like they swap languages and undulate over the wheat fields’ swaying sands
They emerge from inner comas and announce a ripe orthography between the lines of continents copied in erasable ink
They have an accidental calligraphy at the seafront and a nasal way of saying my foot, my mother, my bread
They write letters with a farewell accent, a question mark on the journey’s prospect
O MEU SONHO VESTIU-SE DE TURANDOT por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
O meu sonho vestiu-te esta tarde de Turandot... Vê tu bem, sonho muitas vezes acordado, até em charlas à hora do chá, com senhoras japonesas! Cabias imensa no abraço da nossa ternura, quando a Callas, na gravação de 1957, no Scala de Milão, clamava cantando: "Padre Augusto...connosco il nome dello straniero! Il suo nome é... Amor!" Vencida pelo amor de Calaf, que acertara na resposta aos três enigmas e assim escapara à morte reservada aos seus pretendentes, Turandot, a filha do imperador da celeste China, todavia tivera o destino dele preso pelo capricho dela. Se tivesse querido, denunciaria ao povo o verdadeiro nome desse príncipe desconhecido, não por tê-lo descoberto mas porque ele lho confessara. Confissão feita, não por obrigação, mas por renúncia à reclamação do direito que sobre ela já tinha como consequência do acerto com que respondera aos enigmas. Calaf, o príncipe desconhecido, não a quisera por direito de conquista, e por isso lhe dera, a ela, a oportunidade de o repudiar e condenar à morte, já fora do prazo estipulado no concurso: se Turandot adivinhasse o seu nome, ele renunciaria e entregar-se-ia à fatal sentença da Filha do Céu. É assim a entrega do amor: faz-se em função da pessoa amada, não em função de si mesmo. Na ópera de Puccini, a revelação final, o apocalipse do nome dele é também a descoberta do íntimo nome dela, que nunca quisera ou sempre receara proclamar. As perguntas enigmáticas, falam mais de desejo de vida do que de sentença de morte: "que fantasma alado vagueia pela noite, se abriga no coração, mas morre pela manhã?" Calaf responde: "La speranza!" E depois: "O que é que surge como chama, se enche de febre ou enfraquece, vermelho como o sol poente?" Hesitante, ainda grita: "Il sangue!" Finalmente, a terceira e última pergunta, a que define a pessoa: "Gelo e fogo, claridade e escuridão, fazendo de vós um escravo ou talvez um rei?" O príncipe contesta: "Turandot!" A princesa não aceitará de bom grado a verdade forte que a venceu. Ele não teima em reclamar, antes a põe, à quase deusa, perante o dilema de lhe descobrir o nome (e ele aceitará a morte) ou de se revelar o nome íntimo dos dois... "Amor omnia vincit". O libreto da ópera, por Giuseppe Adami e Renato Simoni, adapta uma peça do veneziano Carlo Gozzi, escrita no século XVIII, já fora alvo de diversas adaptações, até operáticas, algumas delas inspiradas na tradução de Gozzi por Schiller. Para mim, expliquei eu às madamas nipónicas, nesta ópera - aliás terminada por Alfano, por escolha de Toscanini, depois da morte (e aproveitando notas) de Puccini em 1924 - ressalta, mais do que o conflito da crueldade com o amor e a vitória deste, a descoberta do amor inscrito no coração dos homens, como princípio de criação e de vida nova. Daí saí para a "Lohengrin", em que sinto o inverso: Wagner vai buscar à mitologia teutónica as forças que se aniquilam, aquele misterioso impulso para a destruição que encontraremos também na "morte de Deus" de Nietzsche ou na barbárie nazi. Não deixa de ser curioso que ele - familiarizado com a poesia medieval alemã, onde aliás encontrou também inspiração para os "Meistersinger", "Parsifal", "Tannhäuser" e o próprio "Lohengrin" - não se tenha deixado tentar pelas promessas de um lirismo mais doce que, mesmo quando ensombrecido pelo pressentimento de algo que se possa recear, cantava o encanto chão das coisas humanas e possíveis. Como nestes versos de Walther von der Vogelweide, cujo alemão arcaico tanto lembra o inglês que conhecemos (a inversa é que é verdadeira, claro...) que recitei às minhas ouvintes atentas, pelo seu clima " japonês" (a natureza envolvente): "Unde der linden / an der heide, / dâ unser zweier bette was, / dâ mugt ir vinden / schône beide / gebrochen bluomen unde gras. / Vor dem walde in einem tal, / tandaradei, / schöne sanc diu nachtegal..." Debaixo da tília, no chão onde foi a cama da nós dois, podereis achar, lindamente pisadas, as flores e a erva. Na orla do bosque, num talude, riu piu piu, que bem cantava o rouxinol! Contemporâneo de Vogelweide é Wolfram von Eschenbach, que celebra uma dama que, ao nascer do dia, acorda nos braços do seu nobre amigo, e grita ao dia: "Já não pode o meu amado ficar ao pé de mim. Pois de mim o afasta a tua luz". É ele o autor do " Niebelungenlied", em que "se narram inúmeras maravilhas, que falam de gloriosos heróis e de penosas provas..." Há aí evocações de távolas redondas e amores proibidos, tabus antigos como a Grécia, em que - o próprio Wagner o refere pelo mito de Zeus e Semelé - não podem durar as relações entre os deuses e os homens, pois a satisfação do desejo é destruidora. Quando Kriemhild, "cujo coração puro quisera renunciar ao amor, e vivera muitos dias sem conhecer um só homem que quisesse amar... ...desposou um muito valente homem de armas", tudo a conduziu à verificação real do sonho em que "certa noite vira um belo falcão, forte e ousado, que ela criara, ser despedaçado por duas águias". É mais ao pessimismo germânico, a esse medo de deuses malévolos e espíritos malignos, espreitando-nos do frio escuro de misteriosas florestas e pântanos, que Wagner vai buscar a inspiração para contar amores humanos, excessivos e desprotegidos. Na "Lohengrin", uma maldição paira sobre os cavaleiros do Graal, um freio posto por poderes luminosos mas obscuros os trava e proíbe de pronunciar o nome e a linhagem. Como Kriemhild, Elsa von Brabant apaixona-se: eis que, no momento exato da humilhação final da dona por Friedrich von Telramund - o rejeitado pretendente à dama e à coroa que, sob o feitiço da bruxa Ortrud, a acusa de ter morto o irmão, herdeiro do Brabante - a salva um guerreiro desconhecido (aí tão ignoto como o príncipe da Turandot), que lhe conquista a mão e o amor que, afinal, já a habitava (tal como Turandot reconheceria Calaf já dono do seu coração...). A celebração do enlace dos amantes obedece a uma condição: Elsa nunca deverá perguntar a Lohengrin qual o seu nome, nem a sua linhagem. Mas qual Orfeu, olhando para trás para ver se Euridice o segue no regresso à superfície da terra da vida, Elsa pede uma resposta. Lohengrin poderia ter respondido como Turandot dando um nome a Calaf. Neste caso: o meu nome é amor! Mas não confessa. Fica sujeito à lei da cavalaria a que pertence. Ponho a tocar a "Lohengrin" que trouxe, uma gravação de 1964, com a Wiener Philarmoniker, dirigida pelo Rudolf Kempe, sendo Jess Thomas o Lohengrin e fazendo de Elsa a Elisabeth Grümmer. As madamas nipónicas ouvem de olhos cerrados e coração presente, o pranto suplicante de Elsa: "Bist du so göttlich,als ich dich erkannt,sei Gottes Gnade nicht aus dir verbannt!" Sei agora que vens de Deus, não rejeites a sua misericórdia! Se esta infeliz pelo sofrimento, expia a sua culpa, não a prives da tua presença! Não me repudies, por maior que seja o meu crime! E a resposta "justiceira" do guerreiro: Já o Graal se irrita com a minha demora! Assim terá de ser, assim terá de ser: seremos separados, arrancados um ao outro! As damas gostam da música, impressiona-as o rigor do mito. Para alívio lhes conto a história de Cupido, filho de Vénus, e de Psyché, de quem a deusa do amor inveja a beleza. Psyché também quer conhecer a verdadeira identidade do seu amante, mas Cupido não quer revelar-se. Instigada pelas irmãs, ela tenta apunhalá-lo, durante o sono, para lhe descobrir a alma. Mas ele acorda e ela foge. Ele persegue-a, não para se vingar, mas para lhe pedir que se case com ele. E Zeus acederá a uni-los. Tranquilas, mais confortadas, as senhoras pedem-me mais uma história bonita. Conto-lhes o encontro de Zéfiro com Flora, e como o vento levou a Primavera para se casar com ela e depois a deixou ser rainha das flores e dispensadora do mel. Sorriem. E eu com elas, a pensar no que lhes não digo e te recordo agora: Mandaste-me, há anos muitos, um postal de Nova Iorque, com o casamento de Cupido e Psyché do Andrea Schiavone, exposto no Metropolitan. Dizias só: "Cupido serás, mas eu de Psyché nada tenho. Que nome me darias?" Respondi-te de Frankfürt, num postal ilustrado com outro quadro de um italiano de quinhentos, Bartolommeo Veneto: "Flora". E repito de cor o que te escrevi então: "Esta minha cabeça, Santo Deus! / (Será da idade ou do muito amar?) / Não acerta os pensamentos meus / na oportunidade de os acertar... / O Olimpo percorro sempre à procura / do nome que a minha deusa tem... / Mas tonto, em desvario, nessa altura / não dou com nome que te fique bem! / Quedo-me desgostoso, sem dormir / (Eu, feito pr’ó sono e pr’à preguiça!) / mas, mesmo sem cabeça, eu acho agora / um nome que me alegra e me faz rir, / promessa, primavera tão noviça: / fosse eu sempre Zéfiro...e tu Flora!" E não lhes disse. Fiz duas boas ações: fui-te fiel e poupei-lhes ciúmes escusados. Para encerrar a sessão, voltei à Turandot que grita "Il suo nome é Amor!" e o povo rejubila: "Amor! O sole, vita, eternitá! Luce del mondo é amore! Ride e canta nel sole l´infinita nostra felicitá! Gloria a te! Mas, de regresso ao hotel, com saudades tuas, ia cantarolando o lamento de Orfeu na música de Gluck: "Ché faró senza Euridice..." Traduzi esta carta de Camilo Maria ao som das mesmas músicas...mas em CD!
CII - COMO VEÍCULO UNIFICADOR EM DIVERSIDADE CULTURAL E LINGUÍSTICA
A dimensão estratégica da língua portuguesa decorre de ter sido capaz de atravessar espaços geográficos deslocalizados territorialmente por quatro continentes, via descontinuidade linguística (língua transcontinental, transoceânica, transatlântica, transnacional), ser partilhada por várias culturas que a democratizaram, enriqueceram e moldaram, dando-lhe novas colorações e valor acrescentado, como língua absorvida, apropriada, enriquecida, miscigenada, incorporando vocábulos africanos, ameríndios, formando crioulos ou protocrioulos (língua transcultural, dinâmica, migratória, mestiça), permitindo-lhe ser permanentemente atuante e viva (língua flexível e dotada de plasticidade), transitando de uma língua de comunicação internacional (de falantes de português como língua materna ou oficial) para uma língua de comunicação global (como idioma de exportação que vai para além do espaço geolinguístico e lusófono da língua portuguesa).
Sendo uma língua global, um diassistema, une povos que a usam como um veículo unificador de um dizer, assumindo-se como um vetor estratégico para todos os que por ela comunicam, não só como fonte crucial de apreensão e interiorização de um modo de vida, de agir e pensar, mas também de afirmação cultural e identitária. Registe-se, no Brasil, ter levado à unificação de um país continental. Ter sido essencial na unificação e pacificação de Angola e na afirmação de soberania em Timor Leste.
Por sua vez, a existência de um idioma comum não equivale a uma inevitável nivelação das diversidades culturais e linguísticas próprias da cada um dos espaços que integram organizações como a CPLP, devendo promover-se e consolidar-se a unidade na diversidade, privilegiando o que é comum quando imprescindível, sem esquecer a heterogeneidade. Exemplos ilustrativos da não incompatibilidade do português como idioma oficial e comum a nível internacional, por confronto com falas locais, é a constatação, na primeira década deste século, do reconhecimento de quase duzentas línguas vivas no Brasil, quatro dezenas em Angola e Moçambique, 20 na Guiné-Bissau, 19 em Timor Leste, 4 em São Tomé e Príncipe e 2 em Cabo Verde (a que acresce o mirandês em Portugal).
PORQUE É HUMANO TENTAR QUANDO A RAZÃO PARECE PERDIDA
As andorinhas de Cabul, o filme do futuro, do futuro de hoje.
As cores das aquarelas instam a placidez do deserto face ao desastre perpétuo que se tem passado no Afeganistão, quando um sentido para a vida é procurado por dois homens e duas mulheres que mal sobrevivem ao martírio que o país perpassa, sob a loucura entregue às mãos da tirania talibã.
Todavia, nem sob o jugo do fanatismo religioso, esse mesmo que se alenta e gargalha quando as bolas de pano, pontapeadas pelas crianças, atravessam as argolas de corda preparadas para os enforcamentos; nem mesmo quando de pedrada a pedrada as mulheres sob a burca rolam de dores espraiando sangue até à morte, perante uma ovação furiosa; nem mesmo assim, o amor cede, nem mesmo assim a esperança parte dali.
E nada é milagre, mas antes desobediência. Desobediência no pequeno gesto que faz futuro apesar da miséria e da extrema violência que a obriga.
Porque há esperança e futuro quando há desejo de ensinar, na clandestinidade, as futuras gerações que têm de saber que a falta de liberdade acarreta a falsa estabilidade, num silêncio tão fundo que até os pensamentos, mata, e há que transmitir esta verdade, porque há gestos de andorinhas.
Porque há esperança e futuro quando nada parecendo acontecer que mude a dimensão trágica da vida, as andorinhas insistem no seu piar, no seu voo livre, desafiando os termos dos homens.
Porque há esperança e futuro quando o amor faz explodir as grilhetas que punem a humana tentação, o humano desejar.
O silêncio mata mais do que as armas, é certo, e os personagens centrais sabem-no, e tentam subverter as regras aguardando ou não que a misericórdia derradeira lhes seja concedida, já que apenas tentam.
O final deste filme portentoso?
Um murro explosivo no estômago. Uma centelha estrondosa de barulho no coração.
Teresa Bracinha Vieira
Obs: Estreou mundialmente este filme, no Festival de Cannes em 2019. Baseado no livro de Yasmina Khadra, pseudónimo de Mohammed Moulessehout, escritor argelino.
Filme realizado por Zabou Breitman e a ilustradora Élea Gobé Mévellec.
A metrópole revela-se como um lugar único, que se desenvolve através de correntes opostas, onde a nossa existência fugaz é apenas mais uma pequena célula.
“Je marche dans la foule qui sort de la Gare Saint-Lazare, et s’écoule dans les rues avoisinantes. J’aime la grande ville. La province et les banlieues m’oppressent. Et, malgré la cohue et le bruit, je ne rechigne pas à prendre un bain de foule. J’aime la foule comme j’aime la mer, non pour m’y engloutir, m’y fondre, mais voguer à sa surface, en écumer solitaire, docile en apparence à son rythme, pour mieux reprendre le mien propre, dès que le courant se brise ou s’effrite. Comme la mer, la foule m’est tonique et favorise ma rêverie. Presque toutes mes pensées me viennent dans la rue, même celles qui concernent mon travail.”, Éric Rohmer In L’amour l’après-midi
No filme L’Amour l’après-midi (Rohmer, 1972) Frédéric confessa o seu gosto pela grande cidade. A metrópole facilita oposições e vive de contradições. É através do mergulho na multidão, que Frédéric consegue revigorar-se e encontrar o seu próprio ritmo - e apesar de todo o barulho quase todos os seus pensamentos lhe vêm à cabeça na rua.
No texto “The Metropolis and Mental Life” ((adapted by D. Weinstein from Kurt Wolff (Trans.) The Sociology of Georg Simmel. New York: Free Press, 1950, pp.409-424)), Georg Simmel escreve que as condições da vida numa metrópole estão associadas a rápidas aglomerações de imagens em constante mudança, a descontinuidades acentuadas, a apreensões inesperadas e a impressões que se precipitam. O ritmo e a multiplicidade da metrópole contrasta com a vida das aglomerações mais pequenas onde há mais espaço e mais tempo para que as imagens mentais e sensoriais fluam mais lenta e uniformemente. Simmel explica que a vida nos círculos mais pequenos assenta em relações emocionais mais profundamente sentidas que crescem rodeadas em ritmos constantes e costumes ininterruptos.
Já a vida metropolitana tem como base o predomínio do intelecto. Segundo Simmel, o intelecto é a mais adaptável das forças interiores. O intelecto ajusta-se à mudança e ao contraste dos fenómenos sem choques, nem convulsões interiores. São as forças racionais que dominam o ser metropolitano. A intelectualidade é assim vista como uma capacidade menos sensível e mais afastada da profundidade da personalidade. E Simmel pensa ser esta a capacidade que preserva a vida subjetiva contra o poder esmagador da vida metropolitana.
A economia monetária e o intelecto estão intrinsecamente ligados na metrópole, ao partilharem a atitude mais dura e irrefletida perante pessoas e coisas. Simmel afirma que o intelecto pode ser indiferente a toda a individualidade genuína e a racionalidade extrema reduz tudo e todos a um número indiferenciado.
O individuo metropolitano relaciona-se com as outras pessoas de acordo com interesses e realizações objetivas. No pequeno círculo as pessoas conhecem-se e a produção tenta satisfazer a pessoa particular. Na metrópole a produção é feita em massa, para satisfazer pessoas anónimas, e por isso os interesses puramente individuais sobrepõem-se e tomam uma importância desmedida.
A metrópole, como organismo composto, só se concretiza na agregação de muitas pessoas com interesses muito diferenciados e na integração de muitas atividades e relações dentro de um espaço estável e impessoal. A pontualidade, a calculabilidade e a exatidão são impostas a todas os indivíduos por causa da extensão e da complexidade da metrópole.
Em contraste com a exatidão, a precisão e a impessoalidade na metrópole pode surgir uma incapacidade em reagir a novas sensações. Esta atitude de indiferença, resultado também da importância da economia monetária, pode provocar o alheamento em relação ao sofrimento e à exploração do outro.
O metropolitano tenta preservar o eu. O individuo da grande cidade ao ser mais reservado torna-se mais insensível - e a indiferença pode provocar estranheza, aversão, e até repulsa mútua, e que levada ao extremo pode transformar-se em ódio e em conflito físico.
Porém apesar do perigo da indiferença é a distância e a estranheza que protegem os indivíduos na grande cidade. Simmel explica que a dissociação da vida metropolitana é, na realidade, apenas uma das suas formas elementares de socialização. A reserva é o fenómeno mental mais geral da metrópole, pois pode conceder ao indivíduo liberdade pessoal e tolerância.
Um círculo social pequeno somente permite aos seus membros um campo limitado para desenvolver determinadas qualidades e movimentos individuais. Assim que uma pequena associação se expande (numérica e espacialmente) a unidade interior enfraquece e a rigidez da demarcação original contra os outros é suavizada através de múltiplas relações e ligações. E o indivíduo ganha liberdade de movimentos e adquire também uma individualidade específica e diferenciada, à qual a divisão do trabalho no grupo alargado dá ocasião.
Segundo Simmel, quanto maior for o círculo que forma o nosso meio e quanto mais abertas forem as relações com os outros, mais se dissolvem as fronteiras, mais se quebra o círculo que limita realizações, condutas de vida e perspetivas do indivíduo, e mais facilmente se dá uma especialização quantitativa e qualitativa.
A proximidade corporal e a estreiteza do espaço tornam a distância mental, entre indivíduos, muito visível e mais dificilmente suportável. Por isso, a reserva e a indiferença recíprocas sentidas na multidão da metrópole até estimula a independência e a aceitação de cada indivíduo.
Não é apenas a dimensão alargada da área e o elevado número de pessoas que faz da metrópole o local da liberdade. É também através da transcendência da extensão visível, onde o horizonte de cada indivíduo se expande de acordo com aspetos quantitativos da vida. No pequeno círculo, o indivíduo é reduzido aos limites do seu corpo. Mas, na metrópole o indivíduo não se esgota nos limites do seu corpo ou no espaço da sua atividade imediata. Na metrópole, alcance físico de uma pessoa é antes constituído por uma alargada rede de conexões que se disseminam temporal e espacialmente.
A liberdade individual, da metrópole, não deve ser entendida apenas no sentido da mera liberdade de mobilidade e da eliminação de preconceitos. O importante é que a particularidade e a incomparabilidade, que cada ser humano possui, se possa também exprimir na elaboração de um modo de vida particular e inconfundível. A grande diversidade de serviços, a enorme concentração de pessoas e a intensa dependência em relação ao outro, obrigam, o indivíduo a especializar-se numa função que é insubstituível. O indivíduo tem assim de afirmar a sua personalidade dentro das dimensões da vida metropolitana - a brevidade e a escassez dos contactos inter-humanos contribuem para que o individuo se possa destacar.
Na opinião de Simmel, o desenvolvimento da cultura moderna caracteriza-se então pela preponderância do "espírito objetivo" sobre o "espírito subjetivo”. A atrofia da cultura individual através da hipertrofia da cultura objetiva é uma das razões do ódio amargo que os pregadores do individualismo mais extremo nutrem contra a metrópole. Apesar de livre, o indivíduo sente-se igualmente só e perdido na multidão metropolitana. Na metrópole assiste-se igualmente a um retrocesso da cultura do indivíduo no que diz respeito à espiritualidade e ao idealismo. Esta discrepância resulta essencialmente da crescente divisão do trabalho e da crescente importância dada à economia monetária, como já foi atrás referido. O indivíduo é uma pequena peça inserida numa enorme organização de poderes - que lhe retira todo o movimento, toda a espiritualidade e todo o valor, de modo a transformar a sua forma subjetiva numa forma de vida puramente objetiva.
Por isso, Simmel explica que embora a vida se torne mais fácil para a personalidade se afirmar na medida em que os estímulos, os interesses, o uso do tempo e da consciência lhe são oferecidos por todos os lados, na metrópole a pessoa é transportada como se estivesse numa corrente, sem quase precisar de nadar por si própria. Mas, a vida metropolitana é composta por conteúdos e ofertas impessoais que podem provocar incomparabilidades. Isso faz com que o indivíduo recorra ao máximo à singularidade e à particularização, a fim de se preservar.
A metrópole contribui para a independência individual e para elaboração da própria individualidade mas também é o terreno que ultrapassa toda a vida pessoal. É desta tensão e conflito que vive a metrópole. É função da metrópole proporcionar espaço para esta luta e para esta reconciliação. Pois a metrópole apresenta as condições peculiares que nos são reveladas como oportunidades e estímulos para o desenvolvimento do indivíduo. A metrópole revela-se como um lugar único, que se desenvolve através de correntes opostas, onde a nossa existência fugaz é apenas mais uma pequena célula.