Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
"Ou Deus quer tirar o mal do mundo, mas não pode; ou pode, mas não o quer tirar; ou não pode nem quer; ou pode e quer. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, não nos ama; se não quer nem pode, não é o Deus bom e, além disso, é impotente; se pode e quer - e isto é o mais seguro -, então donde vem o mal real e porque é que não o elimina?"
Este é o famoso dilema de Epicuro: ou Deus pôde evitar o mal, mas não quis, e então não é bom; ou quis, mas não pôde, e então não é omnipotente.
Quando se considera o dilema, é preciso ser consequente. De facto, não é legítimo invocar o mistério de modo cego. O mistério é, pela sua própria natureza, supraracional ou transracionl, mas não pode ser contra a razão. A primeira luz que temos é a da razão e, concretamente depois da modernidade, quando a razão alcançou a sua maioridade autónoma, não se lhe pode ser infiel. Isto significa, no caso pendente, que, se Deus pudesse criar o mundo sem mal e o não tivesse feito, não poderíamos acreditar nele, já que seria um Deus que não merece o nosso crédito nem a nossa confiança. Qual é o pai ou a mãe que, se pudesse evitar o mal do filho, o não faria? Que diríamos de alguém que, podendo aliviar as dores de outra pessoa, o não fizesse? Não consideraríamos essa pessoa sádica? Deus não pode ser menos bom do que os seres humanos.
Assim, ou há alguma falha no dilema de Epicuro ou só resta mesmo a alternativa do ateísmo. O que falha é o pressuposto de que é possível um mundo perfeito. Mas precisamente um mundo finito perfeito é o que não é possível, pois é contraditório. Já Leibniz viu claramente que é a limitação do mundo que torna inevitável a existência do mal. Isto não significa que o mundo seja mau em si mesmo, mas que, dada a sua finitude, inevitavelemente está afectado pela negatividade, seguindo-se daí os males concretos, físicos e morais. Como escreve o filósofo da religião Andrés Torres Queiruga — e a filosofia e a teologia terá sempre essa dívida para com ele —, um mundo finito "não pode existir sem que no seu funcionamento e realização apareça também o mal". Portanto, isto também não significa que Deus seja impotente ou mau. O mesmo filósofo dá um exemplo: a mãe, matemática famosa, não pode ensinar ao seu menino de quatro anos trigonometria ou a teoria da relatividade. Teoricamente, ela sabe e pode ensinar e ama o filho, mas este, dada a sua tenra idade, não é ainda capaz de receber as lições. Deus é omnipotente e infinitamente bom, mas, quando se fala em omnipotência, ela não pode ser entendida de modo arbitrário, infantil e abstracto: por exemplo, Deus não pode cometer suicídio nem fazer com que dois mais dois não sejam quatro nem criar um mundo finito perfeito... Não pode criar pessoas livres - já pensámos suficientemente no milagre da liberdade? – e, ao mesmo tempo, por causa da finitude, evitar o seu mau uso. Já São Paulo se queixava: “Ai de mim, que sou um homem desgraçado, pois faço o mal que não quero e deixo de fazer o bem que que quero”.
Surge então a objecção de fundo. Como pode Deus dar-nos a salvação plena que esperamos depois da morte, se continuaremos finitos e precisamente a finitude é que torna inevitável a existência do mal? A resposta desdobra-se. Em primeiro lugar, é preciso compreender que este mundo é finito, mas perfectível. O mundo e as pessoas nele não apareceram fixos, acabados, já feitos. Pense-se, por exemplo, no que seria cada um de nós aparecido no mundo já adulto. Alguém é capaz de pensá-lo? Portanto, tanto o mundo como as pessoas estamos em processo de nos fazermos e realizarmos. O tempo pertence constitutivamente à estrutura do ser finito, de tal modo que se deve mesmo dizer que o tempo é o modo como o ser finito se realiza. Depois, o crente é aquele que espera — e não é verdade que, no que se refere às respostas às questões últimas, todos (crentes religiosos, ateus ou agnósticos) se colocam num plano de fé? —, após o tempo do crescimento e da maturação na história, a salvação plena por dom gratuito do Deus que lhe vem ao encontro. Então, já para lá dos limites da História, "não se pode afirmar que seja contraditório que, ao intensificar-se a presença criadora fora dos limites do espaço e do tempo, a criatura participe, de algum modo, com tal força na infinitude divina, que resulte livre do mal", conclui Andrés Torres Queiruga.
De qualquer forma, só temos indícios que nos permitem esperar com razões. Immanuel Kant viu bem quando preveniu que estamos apetrechados para conhecer dentro do espaço e do tempo. A morte é o abalo total precisamente porque nos arranca do espaço e do tempo, deixando-nos, por isso, em total silêncio. Quando se trata de representações para lá do espaço e do tempo cósmicos, ficamos sem palavras.
O mal é o aguilhão contra a fé; assim: por um lado, a existência do mal põe a fé em sobressalto, mas, por outro, sem a fé em Deus, não há resposta para o abismo do mal. No processo de nos fazermos, é sensato e razoável acreditar e esperar em Deus que dará realização plena à aspiração de plenitude, constitutiva do ser humano.
Entretanto, é essencial, vital, evitar o mal evitável, pelo qual somos directa ou indirectamente responsáveis. E já nem me refiro aos horrores incríveis da guerra, como a gente vê agora na Ucrânia, mas a coisas simples: cumprir o nosso dever, impedindo males e contribuindo para a alegria de outros; por vezes, uma simples palavra basta.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 17 de junho de 2023
“Pátrias – Uma História Pessoal da Europa” de Timothy Garton Ash (Temas e Debates, 2023) é um livro precioso para a compreensão da evolução europeia, dos seus riscos e potencialidades.
NOVA FRONTEIRA DA EUROPA Em maio de 1994, convidei Timothy Garton Ash, no âmbito dos III Encontros Internacionais de Sintra, organizados pela SEDES, com o apoio da então Comissão portuguesa da Fundação Europeia de Cultura. O tema era “A Nova Fronteira da Europa”, e houve oportunidade para refletir sobre as consequências do fim da guerra fria e sobre os cenários para a reconstrução europeia, considerando a reunificação alemã de 1990, o tratado de Maastricht e a reforma monetária, a trágica evolução na guerra dos Balcãs, a incerteza na situação russa (entre o otimismo de Hélène Carrère d’Encausse e o realismo de Iouri Afanassiev) e a iminência da entrada da Suécia na União Europeia. Nessa circunstância, não bastaria invocar a União Política europeia, tornava-se fundamental dar passos para que o espaço supranacional comunitário fosse dotado de órgãos de decisão e de controlo constitucional representativos e legítimos capazes de resolver problemas comuns e de consolidar a solidariedade europeia. Por outro lado, os alargamentos exigiriam especiais cautelas, porque uma Europa de portas abertas obrigaria a uma casa arrumada, devendo a solidariedade ser resultado de uma vontade comum, de instituições representativas e de uma legitimidade democrática comummente aceite. A epígrafe que animava a reflexão era de Karl Jaspers: “A Liberdade mantém o europeu na intranquilidade e na inquietação”. Nada mais apropriado para o momento e para a complexidade dos problemas então vividos…. Era um tempo em que Vaclav Havel representava o melhor do início do período pós-Muro e a ex-Jugoslávia representava o pior.
UMA HISTÓRIA PESSOAL Timothy Garton Ash é um dos mais lúcidos analistas da situação europeia e acaba de publicar um livro notável que merece uma leitura muito atenta, confirmando o bem fundado da afirmação de Jaspers, que servia de mote à reunião de 1994. Refiro-me a Pátrias – Uma História Pessoal da Europa (Temas e Debates, 2023). Longe de uma tentativa de interpretação ou de uma previsão relativamente ao futuro, encontramos nesta reflexão uma rica experiência pessoal e a necessidade de compreender a falibilidade das tentativas de prever o futuro sem consideração da complexidade. Há trinta anos, num congresso sobre prospetiva chegou-se, aliás, à conclusão de que um dos poucos exercícios de sucesso para antecipar o futuro coube, não a um relatório de especialistas, mas a Júlio Verne, numa obra póstuma, “Paris no século XX”, que o editor em 1860 se recusou a publicar em vida do autor, por ter previsões arriscadas. Todavia, quando hoje lemos o livro (então considerado impossível), lá estão, por exemplo, muitos dos instrumentos de comunicação que se tornaram comuns. E Timothy Garton Ash constata que, num simpósio em Delfos realizado em 2018 para falar do futuro, lembrando o velho oráculo, ninguém foi capaz de prever que o mundo iria estar em breve sob o domínio de uma pandemia nem que iríamos ter uma guerra importante na Europa em menos de quatro anos. “É loucura imaginar que podemos saber o que vai acontecer amanhã, para já não falar de mais tarde no futuro. É sabedoria tentarmos fazer as conjeturas mais informadas e inteligentes sobre os desafios que é provável que venhamos a enfrentar, para nos prepararmos para eles”. De facto, a questão não está em tentar prever a natureza, mas em fazer planos de emergência melhores. Como afirmou Reinhart Koselleck, “quanto mais as nossas previsões informadas se possam inspirar na experiência recorrente, maior será a probabilidade de serem rigorosas”. Mas há sempre surpresas. O velho império soviético caiu em apenas três anos praticamente sem um tiro, daí que fosse provável uma reação violenta da antiga potência imperial. Por isso, a partir de 2008 ocorreram a intervenção na Geórgia, a tomada da Crimeia, a guerra continuada na Ucrânia oriental desde 2014, e ainda a invasão de 2022… Ocorre, assim, consultando a bola de cristal, considerar que enquanto Putin estiver no Kremlin teremos uma Rússia agressiva e impiedosa, que o maior desafio global é a China, que utiliza já a sua riqueza para exercer influência designadamente no Sudeste europeu, sendo muito atraente para o hemisfério sul, enquanto o tema de Taiwan abre incertezas sérias quanto à hipótese de um conflito com os Estados Unidos. Tudo isto, a somar aos efeitos do aquecimento global, à crise da energia e à dependência dos combustíveis fósseis, aos desafios demográficos, às migrações, à saúde e à aprendizagem. Garton Ash intitula esta sua viagem como uma história pessoal, considerando o foco em especial no centro e leste da Europa. Desde o dia D e da participação de seu pai no desembarque da Normandia, passando pela destruição ocorrida no fim da guerra em 1945, pela divisão ocorrida entre 1961 e 1979, pela batalha pela liberdade (1980-1999), pelo mundo do pós-Muro, repleto de contradições, esperanças e desilusões (1990) e pelas vacilações recentes, financeiras, sanitárias e bélicas (2008-2022). É este o quadro histórico possível de desenhar. A referência às Pátrias pressupõe o realce do patriotismo, no sentido que De Gaulle lhe dá: “é amar o teu próprio país; enquanto nacionalismo é detestar o dos outros”. E Konrad Adenauer esclarece que “A História é a soma total de coisas que podiam ter sido evitadas”.
MEMÓRIAS DE UM EUROPEU Ao lermos Stefan Zweig em Memórias de Um Europeu, compreendemos que andámos para trás, e que regressamos a um tempo de todos os riscos: “Nunca amei mais a nossa velha terra do que nesses anos anteriores à Primeira Guerra Mundial, nunca tive mais esperança na unificação europeia, nunca acreditei mais no seu futuro do que nesse tempo, quando pensávamos que estávamos a entrever uma nova alvorada. Mas, na verdade, já era o clarão do incêndio da conflagração mundial que se adivinhava”. E os acontecimentos recentes na Ucrânia lembram-nos ainda o discurso de Péricles, relatado por Tucídides: “O segredo da felicidade é a liberdade e o segredo da liberdade é a coragem”. Quando Putin lançou a ofensiva contra a Ucrânia, muitos pensaram que David estava condenado a ser vencido por Golias. Tudo seria muito rápido. Mas os acontecimentos contrariaram a expectativa e quando o “Moskva”, o navio almirante russo, foi afundado deu-se o que ninguém podia prever. E houve quem invocasse que o espírito de Aquiles, vencedor de Heitor em Troia, estava agora na ilha das Cobras no Mar Negro, que os mapas mais antigos designavam por ilha de Aquiles. Era esse espírito que agora animava os resistentes ucranianos. E, continuando a pensar em Tucídides, a verdade é que o desfecho da guerra do Peloponeso, não seguiu a lógica previsível dos estrategos. Na “casa comum europeia”, há muito por fazer numa “causa merecedora de esperança”, resta saber como prevenir o futuro.
ao teu lado, no lugar do morto, enquanto conduzes a conversa a uma frase sem preparação. chegámos tarde à praia, como a quase tudo. o vento levanta o pó do parque de estacionamento e não saímos do carro. não sei a resposta certa e por isso represento mal o meu papel secundário. limito-me a ficar em silêncio, onde sempre me senti mais confortável. um lugar sombrio, discreto, abrigado e ainda assim, segundo dizem, o mais perigoso.
in Livre Arbítrio, 2009
the passenger seat
next to you, in the exposed passenger seat, while you drive the conversation towards a thoughtless sentence. we arrived late at the beach, just as for almost everything. the wind lifts the dust in the parking lot and we don’t leave the car. I don’t know the right answer and therefore I perform badly in my supporting role. I just stay in the silence, where I’ve always felt more comfortable. a sombre place, discreet, sheltered and still, as they say, the most dangerous.
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA A IMACULADA ASCENSÃO DA CAPELA OBALLE
1 - Graças a França - não ao país, mas a José-Augusto -, posso datar o acontecimento com alguma probabilidade de certeza. Foi em 1943 - era a guerra e eram Franco e Salazar - que - numa exposição de arte espanhola destinada a estimular uma amizade de fachada, com muitas suspeitas por baixo - um quadro de El Greco viajou até Lisboa. O Prado ainda andava com a coleção em bolandas, no rescaldo da guerra civil e, da Suíça, onde tinham exilado muitos dos tesouros dele, algumas obras regressaram a Madrid via Lisboa. Deve ter sido o caso do quadro em questão - uma "Adoração dos Pastores", já dos anos finais do pintor -, embora, para tal hipótese, já não me possa socorrer da segura erudição do citado José-Augusto França. Do que me lembro - muito bem - é que a minha Mãe, que foi à exposição, voltou de lá apaixonada por Greco, que, pela primeira vez, viu em carne e osso. Comprou mesmo uma reprodução de dimensão razoável (embora muito mais pequena do que o original) num preto e branco acastanhado, que se fixou nas paredes da casa durante algum tempo. Quem era eu, lourinho e de calções, para dizer do meu gosto? Se, nesse mesmo ano o começara a formar, não eram admissíveis catarros à formiga. Mas lá que o quadro não me dizia grande coisa, era bem verdade, embora a Mãe me explicasse que lhe faltavam as cores e que Greco sem elas só por memória e para memória existia. Só que argumentos de autoridade (das autoridades que eu reconheço) sempre me puseram em respeito e, desde esse dia e dessa adoração, inscrevi Greco entre os pintores maiores. Mais tarde, muito mais tarde, foi a minha vez de o ver ao vivo, no Prado ou no Louvre. E sempre tive sentimentos contraditórios. Aparentemente, o maneirismo heterodoxíssimo, a desproporção longitudinal das figuras alongadas (contavam-me que o pintor as pintava assim, por problemas na visão), o irrealismo colorista, a eventual marca de Bizâncio que lhe ficou da Creta natal, eram tudo coisas que o fariam facilmente meu. Mas a evidência de maneiras tão idiossincráticas que o tornam demasiado evidentemente singular sempre me impediu uma mítica comunhão de desvelos. A barreira só se desfez quando eu já usava barba e bigode e, em 1973, fui, pela primeira e única vez em vida minha, a Toledo. Perante "O Enterro do Conde de Orgaz", dobrei os joelhos tanto quanto os bispos que seguram o cadáver do conde. Mas foi só o quadro, ou foi tê-lo visto com Ruy Belo, numa viagem que tenho tantas razões para recordar? Mas foi só o quadro, ou foi a associação que Proust estabeleceu entre ele e os raides de "zeppelins" no princípio da guerra de 14? Os rosas e os verdes pálidos, "faire apocalypse", "et je dis à Saint-Loup que, s'il avait été à la maison la veille, il aurait pu, tout en contemplant l'apocalypse dans le ciel, voir sur la terre, comme dans l'Enterrement du Conte d'Orgaz de Greco, où ces différents plans sont parallèles, un vrai vaudeville joué par des personnages en chemise de nuit". A Duquesa de Guermantes e o Duque "imemoráveis em pijama cor-de-rosa e roupão de banho". Era o Temps Retrouvé ou era Greco Trouvé? Pensei muito nisso, quando visitei em 1999 a exposição "El Greco - Identidad y Transformacion" no Thyssen. Seguramente, muito da minha identidade passava pelo "Retrato de un Caballero Anciano" (suposto auto-retrato) do Metropolitan ou pela "Madalena Penitente" da coleção Arango, mas, por muito que me envergonhe dizê-lo, eu não me transformava olhando-os, como, olhando outros, tantas vezes me sucede.
2 - Mas nem por muito madrugar se amanhece mais cedo, como já tinha idade para saber. Agora fui ao Prado sobretudo para ver aquele quadro de Elsheimer ("A Noite de Ceres") que já me deu tema para uma crónica (PÚBLICO, 7 de Maio de 2004). O quadro não estava lá, emprestado a Antuérpia. Preparava-me para rever Caravaggios e Serodines quando, logo à entrada, naquela cúpula de tantos desencontros-encontros, deparei com a exposição (visível até 19 de setembro) em que, pela primeira vez em séculos (se é que alguma vez), se reuniu o conjunto que El Greco pintou entre 1608 e 1613 (cinco dos seis anos finais da vida dele) para a capela fundada por vontade de D. Isabel de Oballe, na Igreja de S. Vicente Mártir em Toledo. A história da senhora - que só agora aprendi - merece ser contada, ou, pelo menos, resumida. Filha de gente de pouco algo, emigrou para o Peru por volta de 1530, aí com vinte anos, ao que se diz para fugir à violência doméstica do pai e de um irmão ("de aborrida se fue a las Índias"). Por malas artes e bons feitos, tornou-se rica como Cresus. Casou duas vezes, do segundo com um fidalgote da Biscaia. Nem do primeiro nem do segundo matrimónio teve filhos. Voltou a Espanha, com o marido nº2, em 1557. Antes, fez testamento. O marido era herdeiro universal, desde que não se voltasse a casar, mas 50.000 ducados, quantia enorme, eram para a Igreja de S. Vicente de Toledo, onde queria ser enterrada. Com esse dinheiro "se aga en la dicha iglesia de San Bicente (...) un capilla con un altar (...) y en el dicho altar se ponga un retablo grande". Morreu em Sevilha, em data desconhecida, e transladaram-na para a igreja da sua devoção em 1590. Só que o marido voltou a casar e teve um filho. Este recusou-se a largar o rico dinheirinho, alegando que ela o tinha gasto com os perus. Mas ninguém ganha contra a Igreja. De pleito em pleito - e duraram até 1604 - S. Vicente venceu o enteado, que o marido morreu em 1585. Em 1605, começou a construção da capela, ou seja, cumpriu-se a vontade da testadora. Para pintar o retábulo chamaram um genovês, hoje sumido nas brumas da memória, de nome Alessandro Semini. Só que Semini também morreu, e, em 1607, o Ayuntamento de Toledo confiou a obra a Greco, então com 67 anos. Greco pintou para o altar-mor um óleo de 3 metros e 48 de altura, por 1,74 de largura, para as paredes laterais um S. Pedro e um Santo Ildefonso e para o teto uma Visitação. Se a tela central, concluída em 1613, está em S. Vicente de Toledo desde esse ano, as outras telas, se acaso lá estiveram algum dia, de lá saíram por razões confusas e mal esclarecidas. Os santos foram para o Escurial, o fresco da abóbada, depois de muitas voltas e reviravoltas, está hoje em Dunbarton Oaks, no estado de Washington. Aproveitando restauros, o Prado reuniu os santos e o retábulo, embora não conseguisse que os americanos emprestassem a Visitação. Sob a tal cúpula, foi-me possível ver o conjunto reunido, quase quatrocentos anos depois. Não sei o que D. Isabel teria pensado, mas conheço agora a imensidão do que ela nunca viu.
3 - Deixo os santos em paz, que se faz tarde e não foram eles que me transformaram. E puxo-vos a mão para o retábulo enorme. Nossa Senhora a subir ao céu. Tanto assim parece que todos os historiadores de arte, até 1962, chamaram à tela "A Assunção da Virgem". Não se vê um anjo, de amarelo malva e asa negra gigantesca a empurrá-la para o céu, onde parecem esperá-la o Espírito Santo e miríades de anjos? Parece evidente. Mas, em 1962, um historiador inglês desconfiou do óbvio. Se era uma Assunção, onde estavam os apóstolos, que sempre figuram nela e nesta não estão? Se era uma Assunção, porque tem Maria os braços cruzados no peito, como se fazia (e sobretudo nesses tempos da Contra-Reforma) para a "tota pulchra". Se era uma Assunção, porque figuram, na parte baixa do quadro, todos os atributos das Ladainhas? E não duvidou. A tela não figura a Assunção mas a Imaculada Conceição. Desde então, todos os historiadores têm seguido esta tese e como "Imaculada Conceição" o quadro é hoje nomeado. Seja. Mas, para mim, este quadro é a mais extraordinária representação que já vi de uma fusão entre os dois dogmas marianos. Se olharmos para a parte de baixo - a que mais me estarreceu e transformou -, está lá, efetivamente, a iconografia da Imaculada Conceição: o grande ramo de rosas e açucenas junto aos pés do enorme anjo, um templozinho que figura o seguro porto da Porta do Céu, uma marinha ao fundo, com uma nau e uma caravela, uma fonte com uma estátua, um espelho. E, sobretudo, a mais espectral das visões de Toledo que Greco alguma vez pintou, como se toda essa simbologia, só decifrável como imagem e por imagem, tivesse, como única finalidade, desdobrar, como os planos paralelos do "Enterro do Conde de Orgaz", a esfera celestial da esfera terrena. Estamos no reino da visão interior, da espiritualidade. Ao sublinhar, mais do que nunca, todos os artifícios inerentes ao seu estilo, Greco, como bem notou Brown, enfatizou a distinção que separa a arte da natureza, e fez prevalecer a imagem como emanação do sobrenatural. É um delírio de irrealidade e simultaneamente um dicionário de símbolos. "Coitada desta nossa vida cega / Que anda apalpando pela névoa baça", para citar o Sá de Miranda da "Canção a Nossa Senhora". Mas a névoa baça, a Virgem e o mistério a dissipam. A imensa composição serpentinada perde a névoa, a escuridão e o mar, à medida que subimos pelo anjo acima e nos acercamos da Virgem enorme, que preenche mais da metade superior da tela. Para trás - ou para baixo - ficam os tons escuros da noite, o malva das vestes do anjo, as casas fantomáticas. Para diante - ou para cima - é uma apoteose de encarnado, azul, branco e amarelo, que tornam a cor em centro de tudo e o centro em cor de tudo. Tudo parece subir, mas tudo está a descer. "Preservada e isenta de qualquer mancha do pecado original", a Virgem tanto é aquela que foi desde o primeiro momento da sua Conceção como aquela que subiu aos céus em corpo e alma, sem que nela - e só nela - essa distinção existisse. Há Virgens assim nos mosaicos bizantinos. Na pintura ocidental só conheço esta. Através da "realidade naturalista", o que foi criado foi "uma realidade abstrata", "verdade onírica desmaterializada", como me lembro de ter lido algures. Perante este quadro pasmoso - que "de toda parte venta" -, a "Virgem das Virgens" voa sem tempo nem espaço. "O sol vai-se e transmonta" para citar de novo Sá de Miranda. Ou, continuando a citá-lo, Greco "posto de giolhos" pôs na visão todo o olhar. "Tudo o mais são nadas." Agora me calo, "dissimulando a vergonha e o dano”.
por João Bénard da Costa 25 de junho 2004, Público
Entre os princípios fundadores da nossa cultura civilizacional, sobressai o princípio geral da não discriminação do homem pelo homem, em que se inclui o princípio da não discriminação linguística.
Como organização plurinacional de maior responsabilidade quanto ao futuro e estatuto de todas as línguas, a UNESCO definiu, como regra oficial, que todos os idiomas, por inerência, têm a mesma dignidade, o mesmo merecimento e valor, inclusive para efeitos de proteção legal. Cada língua é um mundo muito especial, uma janela singular do pensamento humano aberta sobre o nosso planeta e ao mundo.
Em síntese, a diversidade linguística é um tesouro cultural da humanidade, que há que preservar. Daí que a extinção de uma língua, qualquer que seja, é uma perda irremediável.
Em paralelo com todos os seres vivos, entre eles os humanos, as línguas fazem-se de experiência, relacionamentos e permanência, vivendo, convivendo e sobrevivendo, mas também nascem, crescem e morrem, casam-se, misturam-se, reproduzem-se e esterilecem.
Se uma língua funciona como um organismo vivo, tem o seu tempo vital, estando a história da humanidade repleta de exemplos de idiomas que chegam, substituem-se a outros, impedem o desenvolvimento de línguas locais, levam à sua extinção, enriquecimento, emagrecimento, dão-lhes valor acrescentado, inclusive em termos recíprocos.
Consentir, porém, na discriminação linguística, em termos objetivos e a qualquer título, é algo que deve ser censurado e evitado, é transigir com a glossofobia, atribuindo uma capacidade glotofágica a certa língua para, em simultâneo, se substituir a outra, provocando a sua morte prematura e extinção.
Permitir que o português seja preterido por um idioma estrangeiro ou por um clube de línguas tidas (supostamente) como mais agressivas e coloquiais, em termos de estatuto ou de praxe, é aceitar a glossofobia, contribuindo para a sua discriminação pela negativa, dizendo sim à endo-glossofobia quando são os próprios falantes nativos a fazer esse culto no seu dia a dia.
Precursores da UNESCO, pela excelência identitária da nossa língua foram, entre nós, muitos nomes da clássica e atual literatura portuguesa, a que se juntam os novos pioneiros lusófonos que a enriquecem criativamente com novos vocábulos ameríndios, americanos, africanos e asiáticos, num valor adicionado que a particulariza, antecipando outros voos onde diversidade linguística se concilia com o princípio da não discriminação linguística.
A crise humanitária que só em 2015 levou a que mais de um milhão de pessoas atravessassem o Mediterrâneo em parcas embarcações, permanece ativa por muitos meios, e com muitos milhares de seres a pagarem com a vida a tentativa de chegarem à Europa ou aos EUA.
São êxodos desesperadíssimos estes que também suportam os terríveis encargos que os traficantes de seres humanos cobram por mortes quase certas, ou por servidão torturada enquanto sobrevivida.
E são encargos que também correspondem a dinheiro, verbas dificílimas de obter nas terras de miséria absoluta que agora tentam abandonar, e quantas vezes, deixando por lá as suas amadas e para sempre condenadas famílias.
Os sobreviventes (quantos?) ajoelhados às fronteiras dos países da sua esperança, por ali ficam, em carne viva, de alma desolada, destruída, por não terem conseguido entrar lá onde a vida se faria antes que o sangue lhes secasse nas veias.
Todavia, raramente se os escuta no lamento da decisão tomada e inerente à tão temerária viagem para a Europa ou EUA.
Tudo é preferível ao que lhes era imposto nos países de origem. E o tudo, mesmo que a um preço cruel, é preferível do que ficarem onde estavam, ou tomarem a decisão de se dirigirem a outros países onde a liberdade e o respeito pelos direitos humanos não existem de todo.
Na verdade, diga-se, são hercúleas as desigualdades nos níveis de vida entre as várias regiões do mundo, implicando outras desigualdades fundamentais a nível dos direitos da educação, da alimentação, da saúde, das liberdades em geral, da esperança de vida com a mínima qualidade.
Contudo, registe-se que as persistências das guerras em todo o mundo, geram sempre disparidades tremendas, horrores inenarráveis, inverdades que tornam desconcertantes as explicações das razões das diferenças entre os países mais ricos e os mais pobres.
Na verdade, a decisão de arriscar a vida apenas por um espaço de tempo em que pelo menos a esperança seja vida, ganha algum avanço à desgraça: eis o espírito esperante.
Contudo, em países em vias de desenvolvimento, em que se tentou que o aumento do progresso tecnológico expandisse o crescimento económico, a desigualdade entre as nações persistiu de tal modo que, bem se pode considerar, uma ausência total da análise das causas intrínsecas da pobreza, sobretudo das que que criam barreiras que contribuem para um desenvolvimento profundamente desigual no nosso planeta.
De reter, nomeadamente os impactos assimétricos da globalização e da colonização nos últimos dois séculos.
De reter, nomeadamente o ritmo da própria industrialização em países desenvolvidos e em desenvolvimento que, aliás, agora também precipitou um aquecimento do planeta que ameaça a vida, questiona a ética e a sustentabilidade da jornada.
De reter, as dramáticas atrocidades de todos os totalitarismos que bloqueiam a evolução do espírito da espécie humana.
Mas, se todos sabemos que a riqueza se continua a distribuir de forma tremendamente desigual, e até por fatores históricos e geográficos, também todos sabemos que as lancinantes crises humanitárias estão repletas de pormenores terríficos não isentos da nossa responsabilidade, certo é que as mortes das gentes do esperante, nos mares-e-estradas-cemitérios, só se detém, se acaso se não ignorar as correntes poderosas e minadas que correm dissimuladas por baixo dos pés que nos transportam enquanto gente a esta humanidade.
Os objetos de Nathalie Du Pasquier, na Villa Savoye, não hierarquizam, não ordenam - acomodam-se.
“Ce qui me plaît dans cette maison, c’est toute une série de détails, des petites choses. J’aime par exemple les chants des étagères qui sont peints d’une autre couleur.”, Nathalie Du Pasquier (Entretien avec Yvon Lambert et Virginie Gadenne)
A Villa Savoye (1928-31) de Le Corbusier é interpenetração espacial acentuada pela afirmação da ‘promenade architectural’. Os objetos da pintora Nathalie Du Pasquier (1957) são unidades geométricas que surgem a partir de um processo de assemblagem intuitiva. As suas pinturas, falsamente tridimensionais, erguem-se sobre caixas, prismas e painéis.
Foi a escala modesta da casa que aproximou Pasquier de Le Corbusier, na exposição ‘Chez eux’ em 2022.
O prisma abstrato, plano, uniforme, puro e branco da Villa Savoye, que flutua sobre finos pilotis, cria no seu interior oculto uma possibilidade de desmaterialização e de improvisação plástica. É a fachada livre que permite que, um sistema independente de qualquer organização espacial, se crie no seu interior. Os objetos de Nathalie Du Pasquier, espalhados pela casa, acentuam essa organização interior livre, assimétrica e mais subjetiva.
O prisma quadrangular branco da casa apresenta uma certa austeridade e uma rigidez. Mas do exterior consegue-se talvez adivinhar um interior liberto e colorido, que contem diversos sentidos, perceções, proporções e medidas. Os objetos de Nathalie du Pasquier ajudam a determinar essa oposição entre o exterior contentor e o interior formado por perceções não vinculadas - e permitem sustentar essa múltipla penetração da forma-espaço-objeto-cor.
A Villa Savoye foi concebida intencionalmente com quatro frentes abertas o horizonte, onde todos os planos e espaços têm a mesma importância. Os objetos de Nathalie Du Pasquier também não hierarquizam, não ordenam - acomodam-se. Todas as partes desejam afirmar-se unitárias dentro de uma continuidade espacial.
A presença oblíqua da rampa da casa ajuda a determinar um espaço interior sem restrições, e a pôr a descoberto as diferentes perspetivas e os múltiplos movimentos contínuos, comunicantes, integrantes e circundantes. Os objetos de Pasquier antecipam construções geométricas coloridas sem constrangimentos, pois cada composição permite diferentes leituras e combinações. A capacidade destes objetos fazerem parte deste espaço, completa a casa. Está-se perante um objeto total.
A escala humana de cada objeto e de cada pintura de Pasquier acentua a presença dos corpos que se movem incessantemente no espaço. Cada objeto é um mundo uno, que resulta da interseção, da junção, da disposição e da disponibilidade das formas geométricas primárias, que se leem claramente.
Os objetos são pinturas. As pinturas são objetos. A sua escala delicada poderia ser uma maquete de uma nova Villa Savoye.
Nathalie Du Pasquier ao participar da Villa Savoye, revela um interesse pela arquitetura como experiência física e sensorial, que tem de ser transposta. O dentro tem de ser apropriado para ser compreendido. Os objetos de Pasquier parecem assim, nesta casa, reunir e combinar diversas perceções - o essencial e o excedente, o plano e a perspetiva, o dentro e o fora, o superficial e o penetrante, o singular e o composto. Estes objetos mobilam, mas acima de tudo completam, acrescentam, referenciam, acentuam e dão escala à Villa Savoye.
Afinal, não há padrões absolutos de beleza: ser bonito é relativo. Hoje, procura-se a elegância até aos limites da anorexia. Mas nalgumas aldeias do interior ainda hoje os mais antigos dirão a uma pessoa jovem mais corpulenta vinda da cidade: “Como está bonita!”... Segundo o dito: gordura é formosura. É que, tradicionalmente, não era necessário cultivar a elegância, pois a carestia, o trabalho braçal duro e a miséria encarregavam-se de impor a magreza por vezes esquelética. Cá está: os gordos, em princípio, eram ricos. Nesses tempos também, a maioria das pessoas trabalhava nos campos, de sol a sol: a pele era fatalmente tisnada. Por isso mesmo, a beleza andava associada à pele branca. Ficaram famosos os banhos com leite de burra na antiga Roma. A alvura da pele significava ser senhor, estar em casa, não precisar de trabalhar no campo...
Depois, com a revolução industrial, a maioria começou a trabalhar em grandes fábricas e escritórios, longe do sol. Por isso, dominava a pele branca. A pele bronzeada tinha então agora a ver com férias e a possibilidade de viajar...
Na base destes comportamentos e critérios está o impulso de marcar a diferença e impor-se aos outros. É daí que surge também a importância dada à marca do carro, ao tipo de cartão de crédito, ao modelo do telemóvel... Mesmo as crianças exigem vestir segundo a marca a, b ou c, a ponto de um miúdo se ter virado para os pais que não podiam comprar roupa de marca: era preferível ter tido outros pais mais ricos...
Também já não se escolhe o local de férias tanto em função do descanso, da tranquilidade, do repouso, da cultura, como da publicidade, da moda, do poder contar aos amigos, aos vizinhos, aos colegas de trabalho, deslumbrando-os..., a ponto de a oração mais frequente antes de se partir para férias ser: Senhor, que, quando regressarmos, encontremos alguém disponível para contemplar as fotografias e os vídeos que fizermos!...
É preciso parecer e aparecer. Corremos até o risco de nos afundarmos numa civilização do aparecer e do parecer, que já não procura o sentido da autenticidade da existência...
A filosofia nasceu da necessidade constitutiva do ser humano de distinguir entre a opinião e a verdade, entre o parecer e o ser, entre a aparência e a realidade. O que é a realidade verdadeira? Também a religião só se compreende na medida em que se confronta não com aparências, mas com a realidade e a verdade. Por exemplo, os místicos sempre perceberam que a realidade mais profunda, eterna, não se confunde de modo nenhum com o banal, a superfície das coisas: o visível é a visibilidade do invisível e é lá no invisível que se encontra o verdadeiro, o bem, o belo, a eternidade e o que salva. Por isso, Jesus preveniu: “De que vale ao Homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua vida?”. Como disse também recentemente numa entrevista à “Visão” o best-seller Yuval Noah Harari, somos indomáveis, porque “por um lado somos mais poderosos do que qualquer outro animal do mundo, por outro, isso também tem que ver com o facto de sermos insaciáveis. Não interessa o que tenhamos conseguido alcançar, queremos sempre mais. Se temos um milhão, queremos dois milhões, se temos dois milhões, queremos dez milhões. O mesmo em relação ao poder: nunca estamos satisfeitos com o que temos porque, na verdade, não sabemos como traduzir esse poder em felicidade. Somos milhares de vezes mais poderosos do que éramos na Idade da Pedra, mas não somos significativamente mais felizes. Se não aprendermos a parar, a desacelerar, o mais provável é que nos destruamos a nós, e a todo o ecossistema.”
Hoje desconfia-se da razão e da possibilidade de alcançar a verdade: estamos, mais uma vez, sob o comando da banalidade e a ameaça do relativismo céptico e da retórica sofística, em que o decisivo já não é a verdade e o bem, mas o êxito a qualquer preço, a conquista a todo o custo do dinheiro, do prazer, da fama, a procura desenfreada do poder, da notoriedade, do triunfo social e mediático: quem não aparece não existe. E não se teoriza até sobre a pós-verdade? Ah! E as redes sociais!... e o constante dedar... E, assim, como encontrar a verdade? Na vertigem do dedar, um diz uma coisa, outro diz o seu contrário, o terceiro nem uma coisa nem outra... Mais: hoje estão aí, cada vez mais gigantescos, o poder e a ameaça da Inteligência Artificial. De facto, numa conversa online, já começa a não se poder ter a certeza de que do outro lado se encontra outro ser humano ou um bot. Os perigos são tantos e de tal grandeza que investigadores, incluindo criadores eles próprios da Inteligência Artificial, estão a chamar a atenção para o perigo do fim da civilização humana, pedindo, por isso, uma moratória nos avanços desta tecnologia. O linguista Noam Chomsky advertiu: “É o ataque mais radical” ao pensamento, à inteligência. De novo Harari: a IA “é uma bomba atómica para a política”, que pode acabar com a democracia. O Papa Francisco, representantes do G7 e a União Europeia esperam encontrar, antes que seja tarde, acordos para travar perigos e ameaças incontroláveis.
Pelo caminho da vulgaridade, da falta da busca da verdade, com a ameaça nuclear e ecológica, pondo fim ao humanismo, o que vai restar? Afinal, o que queremos? Não precisaremos de parar, reflectir, para podermos ir ao encontro do essencial? E onde se encontrará o essencial?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 10 de junho de 2023
“A Arte de Viver em Deus” de Timothy Radcliffe (Paulinas, 2021) aborda um tema de grande atualidade – o da relação com Deus numa sociedade secularizada, mas profundamente afetada pelo vazio de valores éticos.
NUM TEMPO DE PÓS-VERDADE
Já se fala em pós-verdade, como se fosse legítimo adaptar a realidade às nossas conveniências. As redes sociais reconstroem a realidade, misturando verdade e ilusão. Há episódios miríficos e assustadores contados e repetidos nas redes sociais sem a mínima prova. E, em circuito fechado, constroem-se mistificações, transformando a racionalidade em irracionalidade. Mesmo o debate sobre Inteligência Artificial tornou-se um misto de ficção e realidade – havendo dificuldade em distinguir o conhecimento da imaginação. Mas, como encontrar a verdade? Como garantir que possamos compreender a importância de podermos ter robôs como instrumentos capazes de nos tornarmos mais humanos? De facto, há perigos para os quais temos de nos prevenir. Não podemos permitir que se comprometa o pensamento e a inteligência. Ao vazio de valores éticos temos de contrapor maior atenção à dignidade das pessoas e do trabalho humano, à distinção entre fins e meios, ao reforço dos instrumentos mediadores da democracia e de respeito dos direitos humanos. Não podemos tornar-nos uma sociedade sonâmbula incapaz de travar perigos e ameaças incontroláveis.
GLOBALIZAÇÃO DA SUPERFICIALIDADE
Timothy Radcliffe em “A Arte de Viver em Deus” (Paulinas, 2021) diz-nos que o que arruína a fé em Deus não é o ateísmo ou o secularismo enquanto tal, mas a “globalização da superficialidade”. A redução do papel da criatividade e da imaginação à expressão mais simples e indiferente, perante a repetição de lugares-comuns e a tentação do imediatismo e do trivial, conduz-nos, em lugar da valorização da atenção e da aprendizagem, à mentalidade unívoca e àquilo que Flannery O’Connor referiu como a tentação de nos contentarmos em idealizar galinhas sem asas. “É preciso desfazer preconceitos acerca daquilo em que os cristãos acreditam, se quisermos envolver-nos com os nossos contemporâneos. Não, perdoar não é esquecer; não, os ensinamentos da Igreja não são ideologia ou endoutrinamento. Libertem a mente e o coração. Não, o cristianismo não rejeita o corpo, mas aprecia a sua santidade. (…) Como nos furtaremos à sedução da violência ou ao fascínio do dinheiro… e às garras da imaginação tecnocrática?” E, no entanto, receamos o outro, o estranho e o diferente. Preferimos fechar-nos no egoísmo e no comodismo. Sofremos a destruição da natureza e o aquecimento global, a pobreza continua, mas recusamos ouvir o Papa Francisco quando nos pede que preparemos uma sociedade mais humana, atenta ao cuidar do futuro e ao recusar a cegueira do consumismo sem limites e o desperdício desenfreado. Lembramo-nos do encontro de Jesus com Mateus, o publicano. Os fariseus admiraram-se desse encontro, como outros reprovaram a conversa com a samaritana. Ainda Radcliffe diz-nos: “O caminho para uma verdadeira abertura passa, amiúde, pelo que está ordenado e sujeito a disciplina. Assim como a poesia é um exercício altamente rigoroso que abre um buraco através das constrições de uma imaginação banal, assim também a liberdade e a saída do fechamento se obtêm mediante a amizade exigente e incondicional de Jesus”. Mais do que uma marca redutora, a abertura propõe um caminho para lá das polarizações fragmentadoras. Dedicamos tempo demais à vozearia. Se a informação e a procura da verdade dos acontecimentos são importantes, muitas vezes vemos a comunicação social menos preocupada com o rigor do que com a conquista de audiências. Contudo, a qualidade virá sempre à tona. Precisamos de compreender que a manipulação retratada por George Orwell e que as mais diversas formas de censura estão mais próximas de nós do que supomos. É impressionante como a metáfora da “novilíngua” e seus complementos é realizada nos dias que correm como se não houvesse memória e se tivessem esquecido, de súbito, os alertas orwellianos. Não nos cabe refazer o mundo à luz do nosso bem-estar e da nossa boa consciência ou de uma regra fechada. O “acontecimento nosso mestre interior”, a necessidade de assumirmos o compromisso da humanidade e da importância do dom, como realização da dignidade, eis o que temos de assumir com todas as consequências.
A EXPERIÊNCIA ESPIRITUAL
A imaginação cristã de cada um baseia-se na sua própria experiência, na aceitação da imperfeição, e no dever de sermos melhores amanhã do que hoje. “Tudo o que qualquer um de nós consegue fazer é acender o seu pequeno farol e esperar que leve outros a acender o deles”. Como afirmou o Cardeal Newman, não devemos recear que a vida tenha um fim, mas temer que nunca tenha um começo. E esse começo pressupõe a capacidade de compreender, de estar atento, de conhecer e de cuidar. Não esquecemos o “Ver, Julgar e Agir”. Como recordou D. Helder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife, homenageando o Cardeal J. Cardijn, fundador da Juventude Operária Católica: importa, no fundo, para ter presente a Boa Nova de Jesus Cristo: ver da maneira mais objetiva possível, julgar os acontecimentos à luz do Evangelho, e agir em consequência, isto é, de harmonia com tal visão das coisas. Ora, num tempo de guerra como aquele em que vivemos, bem como de destruição do meio ambiente e da biodiversidade, e em que as desigualdades se agravam, importa pôr a tónica na partilha de responsabilidades e na subsidiariedade. O desenvolvimento humano e uma cultura de paz têm de entrar na ordem do dia!
tinha sido o guardião de dois gatos de uma orquídea mudada em cinza o guardião de uma arcada posta a norte por sentinelas e muralhas cordas de roupa e alguns vasos abertos sobre o sol expostos à chuva de abril ao tamborilar da música quotidiana e incómoda tinha sido o guardião desse espaço aberto sobre as arcadas as linhas avançando fora do hábito atinge-te mostra-se na névoa vista e dissipada o anjo que se precipita sobre a manhã entre nós as suas asas esfarrapadas fato e gravata o trompete apoiado num dos ombros podia antecipar-se a si próprio que seria outro modo de trair-se dizer i fallinlove too easily i fallinlove too fast mas não podia lançar-se fora da música nem podia ser o ângulo do corpo curvado sobre o trompete a harmonia que serve a invenção outro modo de estilhaçar as grades esta impressão terrível desajeitada não podia dizer-se completamente sem cortar esse nó sem chegar ao princípio
in teatro de rua, 2013
keeper
he had been the keeper of two cats an orchid turned to ash the keeper of an arch set northwards by sentries and walls clothes lines and some flowerpots open to the sun exposed to april showers to the drumming of everyday annoying music he had been the keeper of that space open over the arches the lines advancing out of the blue hitting you the angel appears through vivid thinning mist rushing over the morning coming between us his frazzled wings suit and tie trumpet over one shoulder he might get ahead of himself which would be another way of self-betraying saying i fallinlove too easily i fallinlove too fast but he couldn’t leap out of the music or be that angle of the body bent over the trumpet the harmony that serves invention another way of bursting the bars this terribly clumsy feeling he couldn’t completely express without cutting that knot without getting to the beginning