Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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DAQUI POR TRINTA ANOS, TELEFONA-ME… por Camilo Martins de Oliveira
Querido Camilo Português:
"Episódio, no seu grego de origem, quer dizer o que se acrescenta, vem a mais ou a seguir. O acessório. Pela sua evolução semântica, nas nossas línguas europeias de raiz greco-latina, um episódio é parte de algo que passa (como num folhetim da rádio ou numa telenovela), ou ainda um acontecimento fugaz que, divertido ou trágico, não nos merece especial consideração, nem mais memória do que aquela que possamos guardar para divertir uns salões... Os episódios, "ontologicamente", têm o valor do que se lê em crónicas mundanas das revistas da coscuvilhice universal. Genialmente, o nosso Georges Rémy (Hergé) apresenta os jornalistas que, em "Bijoux de la Castafiore", insistem em proclamar ao mundo as núpcias próximas da diva italiana de papagaio nariz com o honrado Capitaine Haddock, como enviados especiais da revista "Paris Flash". Aí está tudo: flash, flash, flash! (Curiosamente, o nosso capitão leva-me sempre àquele disco de vinil, em que me delicio a ouvir o Fernandel contar Alphonse Daudet, com o sotaque do "midi" que tanto nos aproxima e torna amigos da língua francesa: "L’abbé Martin était curé de Cucugnan. Bon comme le pain, franc comme le vin, il aimait passionément ses cucugnanais"... No amor do padre Martin pelos seus paroquianos, como nas fúrias do "capitaine de long cours" contra o supérfluo, estamos a transpor um passo: o que deixa o vaporoso e busca a densidade, o que separa a moda do "clássico". Clássico é o que tem classe, o que se qualificou para ser classificado, como referência, numa cultura. Não é sinónimo de erudito, nem necessariamente erudito será. Na nossa cultura clássica abundam as referências que a sustentam e são de origem comunitária e foram sendo transmitidas por tradição oral: Homero, a Bíblia, os provérbios e canções populares, incluindo, no seu microcosmos, o fadinho castiço dos meus primos lusitanos... Claro que tudo se renova e deve ser renovado, que não haverá futuro conveniente sem "aggiornamento". Mas convirá também não cairmos em tentações apressadas e ilusórias. Que nos levem a aceitar o que um americano já chamou "the triumph of vulgarity". A questão que se nos põe é a de saber até que ponto seremos capazes de nos servir dos novos meios de produção e comunicação, sem nos tornarmos, afinal, nós, os servos deles. Na cultura clássica - e não me refiro sobretudo à antiguidade nem aos mosteiros e estudos gerais da nossa Idade Média, mas penso nos seis séculos de divulgação do pensamento escrito pela imprensa, nisso a que Mc Luhan Marshall chamou a galáxia Gutenberg - o tempo para refletir e comunicar era mais lento e por isso as ideias e os discursos duravam mais. Também o cérebro humano era educado para compreender e criticar. Aprendia-se a ler e escrever, indo ao dicionário enriquecer o vocabulário e dividindo orações para melhor entender sentidos e concordâncias; aprendia-se a contar e a calcular de cabeça e com lápis e papel. A cultura começava aí, nesse revolver, adubar, semear a terra cerebral. Ou, como na cultura física, em ginasticar a cabeça. Ganhava-se capacidade para discernir e pensar, despertava-se o espírito crítico. A nossa cabecinha preparava-se assim para poder ir distinguindo o certo do errado e perceber o papel do tempo (e, com ele, do esforço) no acerto das coisas. E o critério ia orientando o recurso a utensílios e instrumentos que sabíamos controlar. O estudo da história ensinava-nos a nossa vida antes de nós, e sobretudo tornava-nos membros de uma família muito maior, à dimensão da humanidade. E dava-nos o sentido de uma pertença, que é onde se alicerça a fidelidade. Fidelidade não é antónimo de desacordo, nem sequer de divergência, e muito menos de interrogação... Lutero entrou em desacordo com a hierarquia e o próprio papa - e, divergiu, em várias afirmações doutrinais e práticas religiosas, da Igreja Católica Romana - mas eu não posso dizer que Lutero e todos os luteranos e os outros cristãos que confessam a fé nas igrejas reformadas sejam infiéis. Recordo muitas vezes que a bula "Exsurge Domino" pela qual o papa excomungava Martim Lutero, publicada em 1520, leva o reformador alemão a refugiar-se no castelo de Wartburg até 1522, ano em que inicia a sua tradução da Bíblia em vernáculo. A primeira edição da Bíblia alemã de Lutero será feita só em 1534, no mesmo ano da fundação da Companhia de Jesus. Serve a coincidência para nos lembrar de que as divergências da Reforma e da Contra-Reforma pertencem à mesma linhagem e se inspiram e vivem na cultura da cristandade europeia. E por maiores que pareçam essas divergências entre as confissões cristãs, há sempre um ar de família... A memória comum do fundamento da mesma fé e das raízes da cultura envolvente, reúne-nos, a todos, para além das características próprias a cada grupo, e a cada tempo histórico, numa identidade que, pela mesmíssima dinâmica da sua constituição, tem uma vocação universal. Não no sentido de integradora indiscriminada, nem do de "colonizadora"... Mas enquanto proposta de encontro e convivência, de diálogo. A afirmação excessiva de particularismos religiosos e nacionais levou os europeus a afrontarem-se - em guerras religiosas, políticas, militares, económicas e comerciais - dentro e fora da Europa, por esse mundo e por tempo demais. É aliás curioso notar que as barbáries conhecidas por "Grandes Guerras Mundiais" sejam ambas, na origem, guerras europeias. E, no caso da 2ª, no lado de lá do mundo, o Japão não resistiu à tentação de "imitar" o que considerava o exemplo da expansão imperial e colonial das potências europeias. A tua geração, meu querido Camilo, tem pela frente uma tarefa difícil, já que o progressivo esvaziamento da cultura dos povos europeus da sua tradição clássica (memória, sabedoria, valores, fé) será, em vários sentidos, uma "capitis diminutio": a perda de identidade cultural levará ao enfraquecimento do juízo e do discernimento, ao relaxamento dos critérios de moralidade e de comportamento, à incapacidade de organização social, política e diplomática. A preocupação excessiva com o crescimento económico e a afirmação do dinheiro como critério de todas as coisas vão conduzindo o poder político para fora do exercício de funções ao serviço do bem comum (que não pode resumir-se ao conceito vadio de "criação de riqueza") e para o apagamento, quando não é subserviência, face à liderança crescente dos detentores de poder financeiro e manipuladores dos interesses e iniciativas inerentes. Sinais preocupantes são, desde já, a propagação de otimismos - que me parecem bastante infantis e desligados de qualquer esforço de ponderação pela perspetiva da antropologia e da psicologia social - autointitulados "doutrina neoliberal" e preconizadores da total desregulação dos mercados como abertura da porta de entrada no paraíso terrestre da riqueza e consumo para todos... Nos EUA, até apareceram, nestes anos 70, uns livros de fundamentação teológica da bondade do lucro. Está na moda. Entretanto, vão-se assinando acordos internacionais visando a livre circulação de bens, serviços e capitais... sem que haja o esforço jurídico, legislativo e diplomático correspondente, nas áreas do direito fiscal ou laboral, nem na regulação rigorosa das praças e dos movimentos financeiros, bem como dos produtos por esse sector lançados no mercado. Já no dealbar do capitalismo de economia financeira - que a revolução industrial produziu na viragem do século XIX para o XX - o Padre Lacordaire lembrava que entre o rico e o pobre é a liberdade que subjuga e o direito que liberta. Da concorrência entre os poderosos grupos de interesses de então, ainda marcadamente nacionais, surgiu a 1ª Grande Guerra, com os seus milhões de sacrificados. A humilhação imposta à Alemanha vencida e o respetivo tributo económico conduziu ao que sabemos... Pensou-se depois que, com certa internacionalização de interesses e a globalização dos mercados que se oferecia com o processo de descolonização, iríamos entrar num período de crescimento generalizado: impunha-se apenas liberalizar, e deixar os "mercados" regularem o resto e fazer-nos ricos. Nestes anos finais da década de 70, há já quem se interrogue, por um lado, sobre a afirmação do Japão como potência económica, industrial e tecnológica - mas parece-me que este exemplo despertará novos intervenientes no mercado mundial, alguns dos quais beneficiando, além do nível de educação e da disciplina social que o Japão tem, de mão de obra barata e de um poder político centralizado e ativo (que poderá conduzir, no mercado internacional, à concorrência de empresas estatais "capitalistas"). Por outro lado, menos gente já percebe que a liberdade crescente dos movimentos financeiros - num mundo com evidentes desigualdades de tratamento de questões na ordem das relações industriais e laborais, das obrigações fiscais, da justiça social e dos direitos humanos - levará inevitavelmente a movimentos de deslocalização, sem esquecer a quase impossibilidade de controlo dos capitais... Daqui por trinta anos, telefona-me para o céu, a contar como está tudo por cá. Espero que a infinita misericórdia de Deus me leve para o céu e me livre do inferno. Quanto mais não seja, por ser mais difícil comunicar com o inferno: as linhas devem estar todas saturadas, com pornografia e transações financeiras... Sabes o carinho paternal com que te abraço."
Esta carta do Marquês de Sarolea foi a primeira em que lhe senti algum cansaço.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 14.06.13 neste blogue
Surpreendeu ser Bob Dylan o vencedor do Nobel da literatura de 2016, dado o prémio ter sido, até então, primordialmente associado à erudição das letras e seus autores, a grandes escritores de todo o mundo, não a um nome tido como um músico e cantor mundialmente conhecido, tendo-se justificado a escolha por “ter criado novas expressões poéticas na grande tradição da canção americana”.
Embora autor de alguns livros, não foi essencialmente por eles que lhe foi atribuída a distinção, mas sim pelo conjunto da sua obra, onde sobressai a poesia e um legado poético que o imortalizou como cantor, compositor e músico.
Embora Dylan seja poeta e haver poetas ganhadores do Nobel da literatura, o seu nome está preferencialmente relacionado com a música, tendo-se transitado de uma interpretação restrita para uma mais ampla quanto à atribuição do prémio literário.
Com as inerentes adaptações moldadas ao seu contexto, o mesmo sucedeu a Chico Buarque ao ganhar o prémio Camões de 2019, uma vez que pelo historial da distinção os premiados são escritores, poetas, ensaístas, com destaque para o romance, conto, novela, teatro, memórias, crónica, história, crítica literária e estudos literários, estando o nome do carioca comumente ligado à música, sendo mais tido como músico e cantor.
Sucede que o laureado além de cantor e músico, também é compositor, dramaturgo, escritor, poeta, ator, autor de obras de teatro de inúmeras canções, que justificam o galardão que lhe foi atribuído, porque contribuiu, num patamar acima da média, para o prestígio da língua portuguesa e do respetivo património cultural e literário.
Nem é apenas através da escrita que se prestigia e universaliza o idioma comum, como o prova CB, universalizando-o essencialmente por via oral, como intérprete de canções, com o mérito de ainda o ter prestigiado por escrito, incluindo via literatura (com vários prémios), corroborando um maior merecimento para ganhar o prémio Camões. Recebeu-o em 2023, quatro anos após a sua atribuição (2019), por recusa do então presidente brasileiro, o que se lamenta, pois há que saber distinguir e separar o valor intrínseco da obra da ideologia ou pensar do seu autor, o que deve ser algo transversal a toda a arte e grupos sociais, sendo indesmentível que CB dignificou, impulsionou e universalizou o Brasil, a lusofonia e a língua portuguesa.
A etnografia bem nos ensinou o quanto os reis se não contentam com uma permanência esporádica na ideia dos seus súbditos.
Em rigor, a evocação do seu nome, ao constituir uma autorização ao súbdito para atuar, em muitas situações determinantes da vida social, mais tarde, iria levar a que se não descurassem para realidades similares, o imprimir dos rostos dos chefes de Estado em dinheiro, dinheiro este que por sua vez, estabelece, como se sabe, relações das pessoas entre si.
Também podemos identificar um equivalente entre a grandiosidade dos rituais reais e o desejo de impulso totalitário subjacente aos atuais grandes desfiles e paradas militares, nos Estados totalitários, ainda que, cremos, o poder do soberano não teria uma evidente relação com o poder expresso no fausto que referimos, não obstante em ambas as posições, se visasse, e ainda se visa, a ideia de projetar um poder eterno.
Palácios e mausoléus anunciam conquistas que perduram e fazem parte do nosso património, inclusive enquanto museus, com um poder que não nos obriga, mas pode feitiçar.
Entender a realidade do poder, é compreender o que está entre o que se declara poder fazer, e o que efetivamente se consegue fazer.
O sociólogo inglês Philip Abrams tem como ponto de partida que a individualidade e a sociedade, constituem construções históricas sucessivas, e que, necessário se torna analisar as suas interconexões, sob pena de se não descobrir onde é que o Estado não existe, e onde foi substituído pelas grandes burocracias a nível planetário (FMI, OMC, etc.) impedindo talvez, de muitos modos que a democracia possa, enfim, ser a inevitabilidade competitiva mais desejada.
A etnografia, método consagrado no campo da pesquisa antropológica, não descura hoje a etologia, e o quanto ela tem contribuído para a compreensão do comportamento humano, peça central na civilização.
Cremos poder dizer que até nós não nos chegaram reinos de poder na sua forma acabada e que herdámos amálgamas de elementos conectados entre si, que cabe repensar, refletir em prol dos caminhos mais direcionados aos nossos ideais.
As pinturas geométricas de Richard Gorman são certezas manifestas.
A série de pinturas, que Richard Gorman (1946) concebeu para a exposição “Kin”, (MAC, Belfast, 2014) tem como começo 3 a 5 círculos que se intersectam.
Gorman revela que estas pinturas não são conceptuais, onde um conceito ou pensamento é ilustrado e explorado visualmente. As suas pinturas são antes puras evidências. São certezas manifestas de um processo que se dá ali no seu atelier.
Na solidão do atelier, Gorman resolve problemas que nunca existiram antes de se começar a pintar. Para si, uma pintura é um conflito com a desordem, com o inesperado, com o indesejado, com a lentidão e com as limitações materiais e físicas. Uma pintura, Gorman acredita, não tem de ter uma mensagem implícita, porque assim que se começa a pintar, o que quer que seja, o significado emerge por si só. E é completamente aceitável uma pintura não contar uma história, nem representar uma ideia.
A sua pintura não implica o escavar da superfície na expectativa de se encontrar um determinado significado. Para Gorman, a superfície é já o significado. A superfície em si contém toda a lógica e todas as perguntas que a pintura coloca. A sua pintura significa que é apenas aquilo que o pintor passou o tempo a fazer. A pintura só precisa disso para existir.
O ato de pintar carrega já em si todo o sentido. A pintura é sempre o resultado de todos os gestos, materiais e pensamentos que acontecem ao pintar. E obedece às mesmas regras, e tenta responder às mesmas questões que já vêm desde o inicio dos tempos. O processo, os movimentos são tão frágeis e débeis como antes.
Apesar da variedade de soluções, a coerência de cada pintura faz sempre sentido. As possibilidades geométricas, em cada pintura de Gorman, parecem sempre inacabadas. Os círculos permitem a sugestão de formas sempre novas que se definem através das cores. Gorman explica que a primeira cor é a mais fácil e intuitiva de decidir, a segunda cor torna-se mais difícil e a terceira cor é o verdadeiro problema. E é desse equilíbrio, que se estabelece entre as cores, as formas preenchidas e os limites da tela, que vive a sua pintura (e na verdade todas as pinturas, desde sempre.)
Assim que Gorman submerge no tempo, através do ato atemporal de pintar, os problemas que surgem são simplesmente relacionados com a cor e com a forma. Os problemas são resolvidos e ultrapassados somente pelo pintor, porque é ele que determina e constrói o método e o sistema do seu mundo. E tudo é perfeitamente aceitável, dentro desses princípios cujo pintor é criador e manipulador.
Gorman explica que muitas vezes a pintura que começa com três ou mais cores aleatórias será repintada vezes sem conta. E o seu objetivo é tentar pintar sempre na tentativa de encontrar um equilíbrio precário. Um equilíbrio ligeiramente desequilibrado de cor e de forma. De maneira a tentar manter tudo como se tivesse acabado de ser pintado com a primeira camada de cor, para que não se torne demasiado acabado, refinado e polido.
A consistência da pintura de Gorman, deseja ser aconcetual, onde os signos significam simplesmente aquilo que são e não mais além. Deste modo, o equilíbrio entre as forças opostas afirma-se com mais importância e a pintura pode surgir mais enfaticamente e despreocupada tal como uma outra ordem natural, particular e única. A pintura de Gorman é assim determinada e concebida objetivamente e é o que deve ser.
Continuo o texto da semana passada, partindo de uma conversa com Fátima Lopes na televisão.
A partir do que explicou, como é que devemos interpretar o facto de a Igreja Católica ter credenciado uns quantos padres como estando habilitados para fazer exorcismos? Isso não faz sentido.
Sim, o diabo não existe, os exorcismos não fazem sentido. O que, na minha opinião, deve haver é uma espécie de pacto médico-pastoral, como na Alemanha. Às vezes, aparecem-me doentes que eu não posso curar porque não sou médico, mando-os para o psiquiatra, como também há psiquiatras que me mandam doentes que eles ajudam mas que têm também problemas do foro religioso, e ajudamo-nos mutuamente. É isso que é preciso fazer. Mas não atribuir ao diabo aquilo que, efectivamente, é de outra ordem.
Repare: logo no começo do Evangelho segundo S. João, lê-se: "No princípio era o Logos e o Logos era Deus". Que é que isso significa? Que Deus é razão, Deus é inteligência e tudo foi criado pelo Logos, por isso é que o mundo é legível do ponto de vista científico. Porque, se foi criado pela razão, deve ser razoável e, portanto, vamos investigá-lo, mas o Novo Testamento diz também que Deus é amor e amor incondicional. Então, Deus é inteligência, é razão e é amor. São estes dois princípios que nós devemos unir para avançarmos, ajudarmo-nos a nós e ajudarmos os outros. Frequentemente, na Igreja, a razão não está, infelizmente, muito presente.
Então acha que é por isso que ainda se continua a habilitar alguns para fazer uma coisa com que não concorda, que acha que não faz sentido?
Sinceramente, julgo que os padres devem estudar um pouco mais para perceber um pouco melhor o Evangelho. Por vezes, lê-se o Evangelho à letra, sem entender o que lá está. Como lhe disse, Jesus não pregou o diabo, mas o Reino de Deus e ajudou as pessoas. Dou-lhe um exemplo. Nos Evangelhos, aparece aquele passo no qual se fala de duas pessoas que eram consideradas "possuídas" pelo diabo, até andavam pelos túmulos. Eram ferozes e as pessoas, claro, tinham medo. Ao constatarem que Jesus ia ajudar estes desgraçados em tanta dificuldade, os demónios, porque andava por ali uma vara de porcos pediram-lhe que os mandasse para os porcos. Jesus disse-lhes que fossem e eles, saindo, entraram nos porcos, que se despenharam por um precipício no mar e morreram nas águas. O que é que está aqui? Jesus ajudou de modo eficaz aqueles "possessos"; os demónios entraram nos porcos (não se pode esquecer que os porcos eram considerados animais impuros) e precipitaram-se no mar (não se pode esquecer que o mar é também símbolo do mal. Pense-se, por exemplo: Jesus andou sobre as águas, para dizer que Jesus está acima do mal e liberta; chamou os discípulos e fê-los pescadores de homens, para dizer que devem libertar as pessoas do mal; no final, diz o livro do Apocalipse que haverá um céu novo e uma terra nova e já não haverá mar, isto é, já não haverá mal)... Quando lemos o Evangelho, é preciso ler o que lá está, interpretando a linguagem utilizada no contexto da época.
Sabe? O diabo também faz muito jeito a muita gente que não está para se converter. Diabos é o que mais há por aí, incluindo nós próprios: muitas vezes nós somos o diabo para nós. Não é preciso haver um tentador de fora, há tentação suficiente connosco. Vou dar exemplos. Olhe: a corrupção é uma tentação do diabo! E este país com a corrupção não avança! Não avança, isto é uma tragédia. Está a ver?, mas depois há os corruptos activos e passivos. Os políticos estão lá para quê? Deviam estar lá para servir o povo, não para se servir, nem servir os seus interesses em conluio muitas vezes entre política e negócios. Isto é o diabo! Veja o estado da educação, da saúde, da Justiça.. É o diabo! Olhe: a pedofilia; é uma tragédia na Igreja, há padres pedófilos, é uma tragédia, isto é o diabo!
O diabo está nas más acções das pessoas!
E nós atribuímos coisas ao diabo, porque é mais fácil, em vez de nos convertermos. Portanto, a pergunta que faço é: que responsabilidade é esta? Muitas vezes, atribuímos ao diabo as tentações, etc., para não nos convertermos. Olhe, afastemos o diabo de nós, façamos um "exorcismo" sobre nós, mudemos de vida, sejamos dignos, honestos, tentemos ajudar os outros, aqueles que estão em dificuldade e vamos ter um mundo melhor como Jesus queria.
É curioso porque, no fundo, o que está a dizer é que as pessoas têm que chamar mais a elas a responsabilidade sobre as pessoas que são e a vida que levam.
Nem mais! A dignidade! Não atribuamos ao mafarrico, ao demónio, ao diabo... o que nos pertence a nós. Deixe que lhe diga, eu conheço dois diabos muito interessantes: um, está na Catedral de Friburgo, na Alemanha, está lá no alto, uma coisa bonita, a defecar, é uma coisa soberba!... E há um outro que está no frontispício da Catedral de Basileia, que é lindíssimo, ele a tentar uma mulher, ele sorridente e ela enlevada na sedução, está a ver?
As tentações estão aí, mas bastamos nós para nos tentarmos e cairmos na tentação. Se não andarmos direitos, erguidos e inteiros, as tentações chegam e sucumbimos. Se não tivermos um pouco de tempo para parar e pensar na nossa vida, ter momentos de silêncio para rezar, fazer silêncio para ouvir o melhor, a voz da consciência, caminhar no sentido da verdade, do bem, da beleza..., não nos admiremos. É o diabo!
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 3 de junho de 2023
“Madalena Perdigão (1923-1989): Vamos Correr Riscos” permite conhecermos a obra de quem defendeu com determinação e entusiamo o ensino artístico em Portugal.
O VALOR DO ENSINO DAS ARTES Nunca é demais valorizar o Ensino Artístico como peça fundamental de uma Educação para todos e como fator de democracia cultural. Quando celebramos o centenário do nascimento de Madalena de Azeredo Perdigão, com notável ação na Fundação Gulbenkian, no serviço de música e no ACARTE, devemos recordar as propostas que fez no âmbito das reformas do ensino artístico, quer no período de Veiga Simão (1971-1974) quer em 1979, no plano entregue ao então Ministro Luís Veiga da Cunha, no governo de Maria de Lourdes Pintasilgo. Devo salientar o trabalho desenvolvido por Rui Vieira Nery e Inês Thomas Almeida na exposição “Madalena de Azeredo Perdigão (1923-1989): Vamos correr riscos”, agora patente na Fundação Gulbenkian, e na antologia a publicar, a partir do amplo levantamento de fontes nos arquivos da própria Fundação e em coleções privadas, que permitiu identificar um conjunto de documentos que nos ajuda a compreender o pensamento e a ação de uma figura excecional que deixou uma marca profunda em toda a evolução das Artes Performativas. O primeiro encontro de Madalena, jovem viúva de um bolseiro, com José de Azeredo Perdigão no seu gabinete da Fundação foi providencial. Até aí não havia por parte da instituição uma prioridade dada às questões da Música, apesar do apoio ao I Festival Gulbenkian de Música, em 1957, sem um envolvimento direto na organização, já que esta não pretendia substituir-se às responsabilidades do Estado e de outros privados neste setor. O entusiasmo e as qualidades de organização da futura responsável pelo setor da música abririam um novo horizonte no pensamento do Presidente da Fundação. É multifacetada a ação de Madalena Perdigão, responsável pelos Festivais Gulbenkian de Música até 1970, além da criação da Orquestra (1962), do Coro (1964) e do Grupo de Bailado – depois Ballet Gulbenkian (1965); da organização de Cursos de Educação e Didática, de Direção Coral e de Iniciação Musical Infantil, sob a direção de pedagogos como Edgar Willems, Carl Orff, Pierre Koelin, Michel Corboz; ou da catalogação dos fundos musicais das Bibliotecas e Arquivos Portugueses e publicação da coleção de obras de música portuguesa antiga. Tudo isto, com a apresentação de propostas de valorização do ensino artístico na política educativa.
COMEÇAR PELAS ARTES Perante a existência no país de poucas escolas de ensino artístico, de poucos professores e de uma procura cultural crescente, sendo necessária mais e melhor formação de docentes e mais oferta educativa, para que os estudantes pudessem ser beneficiários de educação artística de qualidade, a ausência de um ensino artístico integrado obrigava a medidas concretas relativas à criação de uma rede que pudesse corresponder ao desenvolvimento educativo exigido até pela integração no espaço europeu. O relatório de 1979, apresentado pela comissão a que Madalena Perdigão presidiu, pôs a tónica nos temas essenciais. “O conceito de ensino artístico integrado pode levar-se mais longe, considerando-se que as disciplinas artísticas constituem o fulcro da aprendizagem, o polo no qual convergem e donde irradiam os vetores dos diferentes ramos do conhecimento”. Assim, o ensino artístico integrado implicaria alterações de programa e obrigaria a um esforço por parte dos professores, permitindo uma maior concentração e aproveitamento pelos alunos nas disciplinas artísticas, facultando-lhes uma exigente motivação para o estudo das restantes disciplinas, fornecendo melhor preparação e uma visão global dos problemas artístico-culturais. Aos professores do primeiro ciclo, deveriam ser fornecidos conhecimentos indispensáveis para poderem motivar estudantes e assinalar as crianças com predisposição e gosto pela música, dança e artes, com atenção ao problema da orientação precoce para a profissão, nestes domínios. Haveria que garantir aos jovens dotados a possibilidade de uma realização profissional futura, com benefício individual e da sociedade. Dever-se-iam formar bons artistas e contribuir para uma reserva de talentos. De facto, os estabelecimentos do ensino artístico particular e cooperativo supriam carências e lacunas do ensino oficial, mas tal era insuficiente. E, sendo o ensino artístico de qualidade necessariamente caro, haveria que criar um sistema de bolsas de estudo para contrariar as disparidades sociais. E punha-se o tema da descentralização, já defendido nos alvores da República (1911), quando se afirmava “o fito de nacionalizar a nossa arte, regionalizar o ensino, tanto quanto o permite a atual educação artística”. E assim a descentralização e a regionalização serviriam os projetos de valorização do património cultural, nos aspetos popular ou erudito, no sentido de uma democracia cultural. O ensino superior artístico deveria abranger a longa e a curta duração, sendo esta de carácter profissionalizante, permitindo a formação de artistas profissionais, de técnicos de apoio ao exercício das artes e de docentes do secundário, de elevada competência, de que o país urgentemente carecia. O relatório lembrava que a Música fazia parte do “quadrivium”, que se ensinava nas Universidades medievais, recordando os lentes de Música de Coimbra e o alvará de D. João II que declarou obrigatória, em 1546, a representação anual de comédias por mestres e alunos da Universidade, tendo a pintura sido reconhecida oficialmente como arte, e não só como ofício, em 1577.
UMA APOSTA CORAJOSA A subalternização do ensino artístico devia-se ao desconhecimento da situação nos “países altamente civilizados”; à ignorância da importância do artista na sociedade de hoje; e à falta de dados sobre as características da formação de um artista em termos de exigência, de duração e de conhecimento. E dava-se o exemplo da Slade School de Londres, escola eminentemente prática de Pintura, Escultura, Gravura e Cinema, integrada na Universidade. A história dos últimos cento e cinquenta anos mostrava que em Portugal, e apesar de alguns esforços importantes, a educação artística não mereceu dos poderes públicos atenção devida, ou sequer idêntica à que tem sido dispensada a outros ramos do conhecimento. A inserção da educação pela arte no sistema educativo português representaria o reconhecimento do valor deste conceito e seguiria o movimento internacional tendente à livre expressão estética. A experiência do ACARTE na Gulbenkian seria uma afirmação notável desta prioridade, projetando-se dentro e fora da escola: com animação cultural, realização de exposições, concertos, espetáculos de Teatro, de Bailado e de Cinema, leituras poético-dramáticas, utilização de meios audiovisuais, vivências artístico-culturais de toda a ordem. O plano de Educação Artística pretendia evitar que nos convertêssemos em cidadãos insensíveis, numa sociedade que “nos deforma ‘fisicamente’ durante o processo de educação, de modo que os nossos corpos não se possam exprimir por meio do movimento e sons naturais, ou ‘psiquicamente’ porque nos vemos obrigados a aceitar um conceito social que exclui a livre expressão dos impulsos estéticos”. Eis o essencial!
Para que serve a poesia, minha amiga? serve de morada é lá que recebemos os avisos e as convocatórias e descemos as escadas de chave farejada na mão. Chova e não chova para abrir uma caixa são precisos cinco passos sem história.
Haja o extracto de conta publicidade e mesmo uma conta, a sério. Mas por surpresa ou (honra lhe seja feita) distracção da expectativa aí há-de jazer o envelope mistério.
Aquele que por mais vezes que o abramos não desvenda nunca quase tudo do amor. Com outra chave farejada o abrimos chova ou não chova as mãos enchem-se de gotas (esperando, sim, não saber, por hoje, o que de lá se declara dos ocultos, para que serve a poesia).
in O sangue por um fio, 2009
What is it for
What is poetry for, my friend? It’s for us to inhabit and where we are handed warnings and summonses and go down the stairs a sniffed key in our hand. Rain or no rain to open a box we need five steps without history.
Let there be a bank statement junk mail even a proper bill, But as a surprise or (let it be praised) as a distracted expectation we’ll surely find there the mystery envelope.
No matter how often it’s opened, it will never unveil nearly all about love. It will be opened by another sniffed key rain or no rain drops will cover our hands (expecting, of course, not to know for today what will covertly be declared about what poetry is for).
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA RECORDAÇÕES IMAGINÁRIAS: O TEMPO DA CABALA
1 - O termo cabala surgiu no léxico político português recente com Ferro Rodrigues, quando este, na sequência da prisão de Paulo Pedroso e de rumores que também o incriminavam (o famoso "e o Ferrinho também não escapa", atribuído a um desembargador folgazão), veio a terreiro avisar que estava em curso uma cabala contra o Partido Socialista, de que era então secretário-geral. Houve quem o acreditasse, houve quem o ridicularizasse. O que é certo é que, com cabala ou sem cabala, gerou-se, com o tempo, um vasto consenso sobre o "erro monumental" de uma tal acusação, que estaria na base da sua futura desgraça política. Erro dele? Pelo menos, má fortuna não convém dizer, pois que a invocação das casualidades da sorte (ou da deusa da cornucópia e do leme) já demasiado se aproxima de sentidos cabalísticos. Recentemente, a palavra voltou a dar que falar, quando o ministro Gomes da Silva citou uma cabala urdida pelo PÚBLICO, "Expresso" e Marcello Rebelo de Sousa contra o Governo a que ele pertence. Não vou glosar o tema da "cabala involuntária" que já lhe valeu os mofos de gregos e troianos. Pode-se é agourar (outro vocábulo assaz suspeito) que a expressão lhe vai ficar colada à pele e lhe será recordada de cada vez que abrir a boca que o ofício o impede de cerrar. Tão depressa, mais ninguém se atreverá a falar de cabalas, ou só o fará com superioridade irónica. Em artigo publicado neste jornal (PÚBLICO, 30 de outubro de 2004) Helena Matos, muito racionalista, diz-nos: "Venham elas donde vierem (...) as histórias das cabalas produzem em mim sempre o mesmo efeito: nos primeiros minutos começo a olhar para a parede mais próxima na esperança de que a mesma caia e, quem sabe, engula o meu interlocutor. Depois, consoante as horas a que tais relatos ocorrem, ora tenho de reprimir uns óbvios bocejos, ora começo a ser atacada por uma espécie de nervoso miudinho." Convenhamos que a esperança e a reação mais nervosa têm o seu quê de "cabalístico", pelo menos na ampla aceção que a autora depois dá ao termo, quando passa do significado mais comum ("negociação secreta e artificiosa", "intriga de grupo, partido ou fração secretamente conluiados para determinado fim") para sentidos de outro calibre, apontando "sociedades secretas, símbolos enigmáticos e forças obscuras" em luta pelo poder. Paredes a cair, lembram-me irresistivelmente o Livro de Daniel, que não é propriamente o melhor exemplo que se pode dar do uso do livro arbítrio, ou, em termos de Helena Matos, dos resultados das responsabilidades dos nossos atos.
Não me move, contudo, qualquer desejo de embirrar com a minha colega colunista. O que me surpreendeu foi ver, metidos no mesmo saco, dislates ministeriais e um suposto ou real "espelho do tempo", traduzido pela atração provocada por códigos Da Vinci e quejandos, que confirmariam, nos adultos, a "tendência que os livros juvenis de Harry Potter vinham anunciando".
2 - Como se sabe (não há nada melhor do que ensinar o padre-nosso ao vigário) cabala provém do termo hebraico "kabbalah", que literalmente, segundo me ensinaram, quer dizer "ensino oculto". Historicamente, está conotado com uma interpretação mística, alegórica e esotérica do Antigo Testamento, que floresceu sobretudo a partir do século XII. Mas também há quem diga que o termo pode ser traduzido por "tradição", pois que as revelações cabalísticas mais não fariam do que permitir a transmissão da mensagem não escrita, comunicada pelo Senhor Iavé a Adão e a Moisés.
Inspiração maior para esta doutrina (que remontaria ao século I da nossa era) é o Livro de Daniel, o mais visionário dos textos da Tora e, talvez por isso, o que mais influenciou (indiretamente) o Apocalipse de S. João. As visões de Ezequiel apontam um dos mundos mais fantásticos da literatura da Antiguidade, sobretudo na descrição dos quatro animais do carro de Iavé; na "sarabanda cultual" do Templo, com seus monstros e ídolos; na célebre descrição das ossadas renascidas; ou na profecia do Tempo futuro, donde brotaria o rio de ouro.
"Foi no trigésimo ano, no quarto mês, no dia quinto, quando me achava entre os deportados, nas margens do rio Kebar, que o céu se abriu e eu presenciei as visões divinas. No dia quinto do mês - era o quinto ano do exílio do rei Jojaquim - a palavra de Iavé foi ouvida pelo sacerdote Ezequiel, filho de Buzi, no país dos caldeus, nas margens do rio Kebar." "Antes de ouvir a voz de Iavé ('Filho do homem, de pé, que Eu te vou falar') Ezequiel teve a visão do Carro do Senhor, conduzido por quatro animais de forma humana. Tinham quatro faces e quatro asas, cada um (...)." "Tinham uma face de homem e todos os quatro tinham à direita uma face de leão e todos os quatro tinham à esquerda uma face de touro e todos os quatro tinham uma face de águia (...)."
As rodas do carro pareciam ter o brilho do crisólito (...) Quando os animais avançavam, as rodas avançavam junto a eles e, quando os animais se erguiam da terra, as rodas erguiam-se com eles. Para onde o Espírito os guiava, as rodas dirigiam-se também e também, como eles, se elevavam, pois que o espírito do animal estava em as rodas (...). E o que estava sobre as cabeças do animal assemelhava-se a uma abóbada resplandecente como o cristal (...)." "E, por cima da abóbada que estava sobre as cabeças deles, havia qualquer coisa que se assemelhava a uma pedra de safira, em forma de trono e sobre esta forma de trono, ainda mais por cima, havia um ser com aparência humana. E vi que Ele brilhava como brilha o mínio e junto a ele havia algo como se fosse fogo, envolvendo-o completamente desde o que pareciam ser os seus rins, até abaixo deles. E esse fogo assemelhava-se ao arco que se vê no céu nos dias de chuva (...). Qualquer coisa que tinha o aspeto da glória de Iavé." Não é muito de espantar que uma tal visão tenha servido de tudo e para tudo. O leão, o touro, a águia e a figura humana foram, no cristianismo, os símbolos dos quatro evangelistas. O carro de fogo, a "merkava" da Kabala, bem como o divino trono, foram a visão prometida aos iluminados, os únicos a poder aceder aos dez números divinos de Deus Criador, através das vinte e duas letras do alfabeto hebraico. Na sua globalidade, esses eram os "trinta e dois caminhos para a sabedoria divina".
3 - Se me demorei no primeiro capítulo do livro de Ezequiel, foi mais por prazer estético do que por intenção programática. O carro atravessou-se-me no caminho da Kabala e não resisti. Se o não travasse (releve-se-me a impenitência), conhecendo-me como me conheço, não sei até onde iria, até porque a visão continua alguns capítulos adiante. Mas uma tal torrente de misticismo, de que se podiam dar múltiplos e mais esotéricos desenlaces (quisesse eu continuar a resumir a história da Kabala), não exclui, antes inclui (ao contrário do que parece pensar Helena Reis, na sua diatribe contra os ocultismos) duas advertências solenes à responsabilidade pessoal (capítulos XIV e XVIII do mesmo Livro). Ezequiel foi também o primeiro a sustentar, nesses capítulos, que a salvação do homem, ou a sua perdição, não dependem nem dos antepassados, nem dos contemporâneos, nem mesmo dos erros passados. Se o indivíduo (passe o modernismo) agir retamente, Iavé o salvará e salvará os homens que o seguirem. No pecado e na redenção, só o homem é responsável pelos seus atos, o que já levou tantos comentadores a considerarem-no o primeiro grande individualista da tradição bíblica. "Se os pais comerem das uvas verdes, os dentes dos filhos rangerão", era provérbio antigo de Israel. Iavé diz a Ezequiel: "Pela tua vida, oráculo do Senhor Iavé, nunca mais repitas este provérbio." "Todas as vidas contam para Mim, tanto a vida do pai como a vida do filho. Só aquele que pecou morrerá." "Aquele que for justo, que respeitar o direito e a justiça, que não comer no alto das montanhas, que não levantar os olhos para os ídolos da casa de Israel, que não conspurcar a mulher do próximo, que não se aproximar de uma mulher durante a sua impureza, que não oprimir ninguém, que restituir o que tirou, que não cometer rapinas, que der de comer a quem tem fome e de vestir a quem está nu, que não emprestar usurariamente, que não cobrar juros, que desviar a mão do mal, que der testemunho verídico perante os homens, que se conduzir segundo a minha lei e observar os meus costumes agindo segundo a verdade, esse homem é verdadeiramente justo, oráculo de Iavé." Ignoro se a Kabala desenvolveu esta linha, numa das passagens do Antigo Testamento que mais anuncia o Novo. Não me admiraria nada se o tivesse feito. É que na história da humanidade, ao contrário do que tantos pensam, só a razão desacompanhada (não estou a falar da razão pura) gerou monstros e gerou a irracionalidade que tanto quis combater. Os dois mestres supremos dos séculos passados - Freud e Marx - dão-nos exemplos abundantes e aqui - ao que julgo - estou de acordo com Helena Matos. Mas, ao contrário do que ela parece acreditar, são as boas histórias que fazem a História. O mal dos Códigos em moda é serem más histórias. De outras, igualmente "cabalísticas", que vão dos poemas homéricos aos Cavaleiros da Távola Redonda, da "Divina Comédia" aos "Lusíadas", de Proust a Beckett, nunca veio mal ao mundo e pelo contrário veio muito bem. Eu diria, veio o melhor, mas isso já é outra conversa. Ou, como um dia escreveu George Steiner: "Não há, não pode haver, nesta terra, uma comunidade, por mais rudimentares que sejam os seus meios materiais (...), sem essas narrativas da recordação imaginada a que chamamos 'mito' e 'poesia'. Há, de facto, verdade na equação e no axioma; mas é uma verdade menor." A Cabala - a única que me interessa - é, também, mito e poesia. "Narrativa da recordação imaginária." Verdade maior.
por João Bénard da Costa 5 de novembro 2004, Público
- Porque quer estudar medicina? - interpelou o professor.
- Da primeira vez que fui ao hospital, pensei que ia sair de lá a correr. O cheiro, o sangue, os gritos… Mas fiquei. Senti que aquele era o meu lugar, porque queria ajudar.
- E o senhor? - perguntou a aluna.
- Eu?
- Eu digo-lhe.
- O juramento de Hipócrates salvou-me nos meus momentos mais negros. Concederam-nos duas formas de nos igualarmos a Deus: tirando vidas e salvando-as. Eu acho que está na altura de as grandes mentes do nosso país voltarem à segunda opção.
- E você, menina Wolf… está no lugar certo.
- Obrigado - agradeceu Ulla.
Vi este diálogo na série televisiva alemã “Os anos dos milagres”, retratando os amores e a vida da família Wolf, na Alemanha pós-nazi, em que uma das protagonistas sai de casa para ser médica, sendo questionada sobre a sua vocação por um professor e examinador, na faculdade, com um final feliz.
Segurei-o e retive-o, consciencializei que agarra tão de perto e de modo incisivo o que é ser médico, que houve um clique mais elucidativo em mim, sumariando e robustecendo, num ínfimo minuto, o que me ditava a experiência.
Pelo que experienciamos no dia a dia, não há para o ser humano bem mais precioso que a saúde, o que justifica o lugar da medicina em todas as civilizações, a relação tão pessoal e especial que se estabelece entre o doente e o médico.
Quem exerce a medicina é uma espécie de representante de Deus na terra, um deus terreno, que tem o poder de tirar e salvar vidas, alguém a quem se atribui um saber, um poder e uma influência incomum na vida e saúde de todos, cuja palavra e uma relação especial estabelecida, quando de confiança, se pode sacralizar, chegando o paciente a sentir-se desamparado ou perdido, na ausência do seu médico, com igual sentimento deste, se também ausente, como que num relacionamento de salvação recíproca.
Entre a opção de tirar e salvar vidas, deve prevalecer a segunda, ajudando a dar vida e saúde, e não, como em pleno nazismo, sinalizar pessoas como descartáveis e dispensáveis consoante a raça.
No pensamento médico, em quem exerce medicina, deve estar presente, em permanência, a regra de que todo o ser humano tem mais valor que as ideologias e ideias abstratas. Exige-o o juramento de Hipócrates, em que se jura solenemente consagrar a vida ao serviço da humanidade, exercer a arte com consciência e dignidade, não permitir que considerações de natureza política, religiosa, racial, de nacionalidade ou posição social, se interponham entre o dever do médico e o seu doente, guardando respeito absoluto pela vida humana, mesmo sob ameaça, não fazendo uso, à revelia, dos conhecimentos médicos, a lembrar uma declaração universal de direitos e deveres humanos fundamentais, em que a unidade do género humano se sobrepõe à diversidade das culturas por nós habitadas.
A proposta de que já nos tornámos pós-humanos, enquadra-se no pensar e no atuar, de quem solta a gaiola em cada um de nós e assim nos caça.
De facto, até se tornou conveniente para quem só visa subordinar o humano, esmagar os direitos universais por inaplicáveis ao não humano.
Para as correntes políticas e académicas que afirmam que já só se vive o pós-humano, nem sequer é necessário falar no humano, já que o pós-humano é e já está, aqui e agora, esgotadas que estão as diferenças, para eles, entre humanos e máquinas.
É conveniente à força da gaiola que, um estalar de dedos, baste à sujeição da não-queixa do engaiolado humano, e é igualmente conveniente que este sinta que a sua liberdade anterior, era um erro tremendo, incompatível à realidade à qual se deve submeter.
Porém, no transformar dos sistemas tecnológicos avançados, em algo contra os seres humanos, assumem relevo as direitas e as esquerdas políticas totalitárias, nenhuma delas permitindo que o humano se sente à mesa da natureza e da sua própria humanidade, e as tente entender através da luz da liberdade.
Contudo, a pressa com que se aposta que o homem será apagado, é a mesma que denuncia que sob o peso da gaiola, se encontra ainda a atomização em rede, essa mesma que até a delegação na I.A. impedirá que escrava seja.