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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA


PRÓLOGO


As interrogações que aqui se inserem servem de aperitivo e de recordação de Alexandre O’Neill. Neste mês de agosto de 2023, o folhetim diário do CNC terá uma letra diferente em cada dia. Assim designamo-lo como abecedário. Começo por esclarecer que se trata de uma narrativa fantástica. Ocorre nos dias de hoje, mas um pouco à semelhança dos Apólogos Dialogais de Francisco Manoel ou da Torre da Barbela de Ruben, envolvendo uma mistura de fantasmas de diversas épocas, que se procuram esclarecer, em substância, sobre o que é isto da cultura – desde a intervenção de uns Relógios Falantes até a um Hospital das Letras ou a um Escritório Avarento… Em cada episódio diário, haverá sempre um enredo explicativo e um suspense entre as duas letras que se sucedem e que seguirão a ordem tradicional. Daí o título de abecedário e a coexistência de um labirinto e de um caleidoscópio. E encontraremos aqui a lógica semelhante à dos espíritos que subitamente aparecem e desaparecem, ora com uma postura severa, ora com uma dimensão jocosa. Sempre, porém, haverá uma moral da história, capaz de nos vacinar contra um certo analfabetismo endémico que por aí pulula. Daí a necessidade de um Hospital das Letras, disciplinador e certeiro. Os cavaleiros serão cavaleiros, os bobos serão bobos, os saltimbancos e dançarinos não faltarão, como nos painéis de Almada Negreiros na Rocha do Conde de Óbidos, os conselheiros, conselheiros serão. E seremos fiéis ao romanceiro – Cada capítulo terá dois mil caracteres e com tal espírito de síntese iremos deixando enigmas por resolver. “Lá vem a Nau Catrineta que tem muito que contar. Ouvide agora senhores esta história de pasmar”. Eis o ponto de partida, algo barroco, algo misterioso. E verão que o Verão vale a pena!

Um forte abraço do Folhetinista.     

 

A VIDA DOS LIVROS

De 31 de julho a 6 de agosto de 2023


Ao falar de identidade nacional, José Mattoso lembrava a anedota que se contava do rei D. Luís quando, já bem adiantado no século XIX, perguntava do seu iate a uns pescadores com quem se cruzou se eram portugueses e a resposta foi bem clara: “Nós outros? Não, meu Senhor! Nós somos da Póvoa de Varzim”.

 


Com efeito, é sempre complexo o processo de definição do que designamos por identidade nacional. Ela é inseparável de uma perceção coletiva. Por isso a consciência histórica é fundamental, correspondendo à noção de apropriação do poder, tendo no caso de Portugal o Estado precedido a Nação, num processo lento e gradual. Esta anedota serve para se perceber que, longe de um entendimento fechado, estamos perante uma realidade complexa e aberta, que no caso português se traduz num curioso cadinho que, na diversidade, se uniformizou no território, na fronteira, na língua e numa construção convergente realizada de norte para sul e de sul para norte. “A História-escrita não será nunca reprodução da História-vivida” – disse-o José Mattoso (cf. A História Contemplativa – Ensaio, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2020). “A História-escrita não será nunca reprodução da História-vivida. Uma verifica os vestígios deixados pelo que aconteceu e relaciona-os entre si para representar o que já não existe. A outra é o conjunto dos próprios acontecimentos, que se sucedem no tempo e por isso podem ser recordados por quem os viveu, mas já não existem. Ao escrever a História construímos uma representação, ou seja, uma réplica do que aconteceu. Com efeito, os acontecimentos deram-se em momentos fortuitos, que não podemos representar porque a cada um deles segue-se outro momento”. A História-escrita não explica a reação dos poveiros. E para o historiador o encadeamento dos factos corresponde a operações mentais. Daí a necessidade de sínteses, de classificações, de agrupamentos racionais. Contudo, perante a complexidade temos dificuldade em distinguir o individual e o coletivo, o nacional e o internacional, os fatores sincrónicos e diacrónicos. Assim, a organização do tempo revela-se importante não apenas para distinguir a sucessão dos acontecimentos, mas também para permitir a comparação com o que ocorre noutros horizontes e que converge e diverge entre si. Como há um movimento permanente e simultâneo da sociedade humana, só podemos situar-nos na razão de ser das coisas a partir das referidas operações mentais.


ANÁLISE CERTEIRA E INOVADORA
José Mattoso fez uma análise certeira e inovadora, usando uma metáfora feliz: a História-escrita assemelha-se à maquette de um edifício que já não existe, mas que idealizamos e pode ser reconstruída. A História-vivida não tem lugar na realidade, desapareceu, mas pode ser representada pela História-escrita, como operação que procura ser verosímil. É algo que já não existe, uma vez que está a ser apenas objeto de uma projeção – e, sendo-o. Move-se, modifica-se sob o risco de permanente anacronismo, uma vez que a crítica é influenciada pelas mentalidades. Pode aproximar-se da objetividade, sem certezas, mas não está preservada da neutralidade. Lembremo-nos dos conceitos de identidade e de património cultural. José Mattoso teve o cuidado de encarar tais realidades como elementos complexos. “Quando o pensamento moderno se apropriou da História para reconstituir o passado, procurou rever as histórias nacionais para excluir as lendas e milagres, mitos, revelações e fantasias, descobrir causas e efeitos, e enfim impor a racionalidade e a lógica das narrativas anteriores”. Houve, assim, a tentação de reduzir tudo à racionalidade e à mentalidade ocidental. A diversidade, a recusa da superficialidade das análises, a exigência da compreensão do contexto – já que os factos dependem não só das decisões individuais ou coletivas, mas de fatores estruturais, antes desvalorizados. O tempo curto e o tempo longo têm de se articular – ensinou-o Braudel. E a memória recorda o que aconteceu, representando-o, ainda que de um modo fragmentado. No caso dos poveiros, temos a experiência da pesca e do conhecimento do mar no tempo longo e a vulnerabilidade das correntes e da meteorologia, bem como a maior ou menor presença do pescado no tempo curto, os economistas chamam-lhe estrutura e conjuntura. Mas como poderemos analisar a vida humana transcendendo o efémero? E Paul Ricoeur leva-nos para um caminho em que possamos usar uma mediação imperfeita ou incompleta entre o futuro, o passado e o presente. E se falamos de mediações e de instituições estamos no cerne da interrogação sobre como podemos colocar as pessoas como protagonistas da organização da sociedade e da realização do bem comum.


CHEGAR À CONTEMPLAÇÃO
Para José Mattoso, chegamos assim à contemplação, que é o único modo de entender a unicidade e a coerência do ser, compreendendo a diversidade e a complementaridade, a prevenção do conhecimento contra o erro e a ilusão, a consideração do método que valoriza o contexto e o conjunto, o reconhecimento do elo entre a unidade e a diversidade da condição humana, além  da aprendizagem de uma identidade planetária, da exigência da atenção ao inesperado e ao incerto como marcas do nosso tempo, da educação para a compreensão mútua entre as pessoas de pertenças e culturas diferentes e do desenvolvimento de uma ética do género humano de acordo com uma cidadania inclusiva – em que insiste Edgar Morin. “Ao captar a realidade pluridimensional do Homem no tempo, nasce nele o verbo silencioso forte de imagens, símbolos e alegorias que não o esgotam, mas indicam o sentido da vida humana sobre a terra, tudo o que se passa no tempo – os grandes impérios, o sofrimento dos excluídos, a renúncia aos bens terrenos, o amor e o desejo, o riso das crianças que brincam no campo, a exploração da terra, a composição de uma sinfonia musical – enfim tudo o que é real. Tudo tem sentido, tudo pode desencadear a exaltação de quem descobre esse mesmo sentido”. E eis-nos diante do paradoxo que é a existência humana, evidenciado no mistério revelado na fórmula de Pedro Calderón de la Barca de que “a vida é sonho”. A História-escrita e a História-vivida explicam uma exigência de compreensão da importância do tempo e da reflexão, da contemplação e do mistério…   José Mattoso, foi um profundo renovador da moderna historiografia em Portugal, sendo exemplar nos novos métodos e na revelação de muitos enigmas, renovando a investigação como um campo de complexidade e de compreensão, até para se entender a necessidade de uma melhor vivência democrática, bem como da defesa efetiva do património cultural e de uma relação europeia e global mais profícua.


Guilherme d'Oliveira Martins

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE ALBERTO PIMENTA 

  


Marthiya of Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta 35


35.
Não sei
Se tornarei a ver
As caravanas
Que de madrugada
Atravessam o deserto
Em frente
Às ruínas de Palmira

Ou
As azenhas milenares
De Hama
A chiar de esforço
Quando elevam
A água do Oronte
Até ao aqueduto
Que encima a cidade

Ou
A paisagem
Aos pés do monte Kasyun
Coberta de estrelas
Que caíram
E se fizeram
Pura luz esparsa:
A cidade de Damasco

Não sei
Se tornarei
A fazer a viagem nocturna
No comboio de Bagdad:
Alepo, N´nive,
Tikrit…

E se outra vez ainda
Poderei erguer os olhos
E ver a beleza de Nahila
Nos limites da sua açoteia.

Já ouvi dentro de mim
Um trovão
Fender-me a alma.

Para a unir de novo
Não sei o que terei de enfrentar.


in Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta, 2005


Marthiya of Abdel Hamid according to Alberto Pimenta 35


35.
I don’t know
Whether I will ever see again
The caravans
At dawn
Crossing the desert
Past
The ruins of Palmyra

Or
The millenarian water wheels
Of Hama
Screeching with effort
As they lift
The water of the Orontes
Up to the aqueduct
That crowns the city

Or
The landscape
At the foot of Mount Kasyun
Covered by fallen
Stars
That became
Pure scattered light:
The city of Damascus

I don’t know
Whether I will ever again
Travel the night journey
On the Bagdad train:
Aleppo, Nineveh,
Tikrit…

And whether I will once more
Be able to lift my eyes
And see the beauty of Nahila
Standing on her terrace.

I’ve heard inside myself
A thunder
That shattered my soul.

To mend it
I don’t know what I’ll have to face.


© Translated by Ana Hudson, 2010
in Poems from the Portuguese 

 

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
O FANTASMA APAIXONADO


1. Em 1979, organizei, na Gulbenkian, um ciclo sobre cinema americano dos anos 40. Desse, como doutros ciclos dos anos 70 e 80, a fada-madrinha foi uma das pessoas mais enigmáticas e fascinantes que jamais conheci. Não sei o nome dela e não sei de ninguém que o saiba. Dizia que se chamava e chamavam-na Mary, mas, não sendo ela inglesa, americana ou mesmo remotamente anglo-saxónica, é duvidoso que a tenham batizado com esse nome. Usava o apelido Meerson, pois teria sido casada com Lazare Meerson (1900-1938), famoso decorador francês de origem russa. Mas é bem possível que tivesse sido tão casada com Meerson como o foi com Henri Langlois (1914-1977), o lendário fundador da Cinemateca Francesa. Muitas vezes a ouvi autodesignar-se como Mme. Langlois, mas, se viveu com Langlois entre 1939 e 1977, não consta que se tenham casado. Sem razão aparente (mas porque é que querem sempre razões para tudo?) guardou toda a vida absoluto segredo sobre as suas origens. Diziam-na russa, diziam-na búlgara, diziam-na finlandesa, diziam-na de um dos países do Báltico. Ela nunca nada revelou e, quando alguns biógrafos de Langlois começaram a querer vasculhar-lhe o passado, enfureceu-se terrivelmente e Deus e algumas pessoas sabem como as fúrias dela eram terríveis. Morreu em 1993, diz-se (quem pode estar certo?) que nonagenária, mas bilhete de identidade, passaporte ou qualquer outro documento de registo civil nunca se lhe conheceu. A mim, essa mulher que me explicou que os russos só invadiram o Afeganistão para descobrir segredos sobre ciências ocultas, sempre me disse que não morreria. "Um jour, je m"envolerais..." Da morte de Langlois até ter voado de mim (estou, pois, a falar de uma pessoa com setenta e muitos anos, ou oitenta) desenvolvemos uma relação que me é impossível qualificar. Telefonava-me vezes sem conta, altas horas da noite, quase sempre para casa, pois que, para ela, telefones de trabalho (Gulbenkian ou Cinemateca) eram telefones sob escuta dos nossos muitos ignotos e invisíveis inimigos. Se, quando a conheci, era gordíssima e imponentíssima, disseram-me que em nova fora belíssima. "J"etais plus belle que toi", teria dito um dia a Marlene e tê-lo-ia sido ao tempo em que a lenda pretendia que se passeava por Paris nua, sob um fabuloso casaco de renard argenté. Nesses telefonemas noturnos, transparecia o "coquettismo" das mulheres que são ou foram muito bonitas e se habituaram a seduzir homens. Tinha uns olhos extraordinários, como só o têm os quase cegos que vêem o que mais ninguém vê (quase cega sempre a conheci). Tinha uma voz de baixo profundo, que facilmente se confundia com a de um homem e dominava, na perfeição, o inglês, o alemão, o francês, o italiano, o russo e muitas mais línguas que nem eu sei (num jantar, uma vez, espantou toda a gente recitando poemas em arménio e os arménios presentes juraram-me que ela o dominava fluentemente).


Por que razão ela me tomou sob sua proteção nunca saberei bem. O nome Gulbenkian (ela teria conhecido Calouste Gulbenkian quando foi marchande d"art) contribuiu fortemente, mas não explicou ou explica tudo. Lia através de mim ou em corpo ou em voz. E em várias alturas, mais complicadas, sem que alguma vez eu lhe tenha feito confidências, dizia-me o que eu precisava de ouvir como se fosse uma Xerazade ou um Tomás de Kempis telecomandados. Uma vez disse-lho. Limitou-se a responder-me: "Je sais. Mary sait tout." Soubesse-o ou não (e eu, hoje, acho que, se ela não sabia tudo, sabia muito), o que é certo é que, graças a ela, eu fiz o meu nome como programador. Filme que lhe pedisse (mesmo que a Cinemateca Francesa o não tivesse ou o poder efectivo dela na Cinemateca Francesa já fosse diminuto) era filme que ela me encontrava. No fim do mundo, ou ao virar da esquina. Há uma expressão que eu acho deliciosa e aprendi há pouco tempo com as minhas netas mais velhas, com a Sofia e com a Mariana: "amizades coloridas". Se não sabem perguntem, que eu não estou aqui para explicar. Mas acho que a minha relação com Mary Meerson foi uma "amizade colorida" avant-la lettre. Après la lettre, vejo-lhe o olhar renascendo em muitas vidas, ou de dantes ou de depois.


2. É estranho. Eu não vinha para falar de Mary Mersoon, sobre a qual escrevi uma crónica quando ela morreu e co-organizei um catálogo a que chamei O Cinema como Magia.


Se a invoquei, e ao tal ciclo de 79, foi para contar uma história bizarra das muitas entre nós sucedidas. Além de filmes, pedi-lhe cartazes para uma exposição paralela ou coisa que o valha. Ela enviou-me os originais de The Grapes of Wrath de John Ford e de The Ghost and Mrs Muir de Joseph L. Mankiewickz. São cartazes enormes e vinham montados em diversos rolos, para depois se colarem e se pendurarem nas fachadas do cinema, como nos anos 40 se usava. Mandei-os para o serviço de exposições da Gulbenkian que, pouco habituado àquele género de materiais, os montou, sim, mas os colou em enormes e pesadíssimos contraplacados de madeira. Quando assim os vi, caiu-me a alma aos pés. Como é que eu ia devolver aqueles "monstros"? Descolar os cartazes nem pensar, que ficavam em fanicos. Reenviá-los para Paris só em camião especial e por uma fortuna. Telefonei-lhe a contar do sucedido e ela respondeu-me com a maior naturalidade do mundo: "Guarde-os. Pode ser que lhe sejam úteis." Assim fiz. De 79 a 91, os cartazes estiveram nas paredes do meu gabinete da Gulbenkian. Em frente de mim (porquê?) já estava o do Ghost, filme que em Portugal se chamou O Fantasma Apaixonado.


Não é tão bonito como o das Vinhas da Ira, com desenho original desse mestre dos nossos neo-realistas que se chamou Benton. Mas nunca resisti ao sorriso de Gene Tierney, tão segura, tão insegura, precisamente por isso. Curiosamente, uma Gene Tierney tingida de louro, quando nunca houve mulher mais morena e mais branca em Hollywood. High-Cheek Bone Beauty. Há tanto de triste e algo de insuspeitado nesse leve sorriso e nesses imensos, insondáveis olhos. Mulher-patchuli. Em 91, trouxe os cartazes para a Cinemateca. Hoje, o das Vinhas da Ira anda por lá. No meu gabinete, em frente à minha mesa, só o do Fantasma. Vinte e seis anos (79-05) a viver com ele e com a Mrs. Muir dele é muito tempo. Mais do que umas bodas de prata. Mas a profecia de Mary Meerson cumpriu-se. Também foi para isso que ela mo mandou.


3. Esta vida é de facto estranha. Quando eu vi O Fantasma Apaixonado pela primeira vez tinha 12 anos. E foi no Tivoli dos veludos da Fox. Quem fosse o realizador - Joseph L. Mankiewickz, depois, também, meu cineasta de cabeceira - ignorava completamente. Só me interessava Gene Tierney e, depois de visto o filme, passou-me a interessar Rex Harrison, com quem vivi pela primeira vez. Gostei. Gostei muito. Mas quão longe estava de adivinhar o que esse filme iria significar para mim, passados os 40 anos, quando o revi no tal ciclo da Gulbenkian e, depois, quando o revi e revi e revi em dezasseis passagens na Cinemateca e mais não sei quantos visionamentos. Já contei mil vezes, mas, como estou morto por contar, conto outra vez. Mrs. Muir (Lucy Muir = Gene Tierney) enviuvara há pouco tempo de um Mr. Muir que nunca vemos, mas não era de molde a deixar grandes saudades. Sogra e cunhada em Londres, princípio do século XX, vigiavam a virtude da jovem viúva e da filha dela, de dois anos. O filme começava quando a situação se começava a tornar insuportável e Mrs. Muir, doce mas firmemente, anunciava que ia sair de vez daquela casa para ir para o pé do mar, para o pé do mar. Nem rogos nem ameaças a demoveram. Procurou casa junto ao Mar do Norte como Mar do Norte nunca vi, mas nenhuma casa a convenceu. Até que viu a que queria ver, mas ninguém lhe queria mostrar. A casa estava assombrada pelo fantasma do Capitão Gregg que nela se suicidara. Só que os fantasmas não assustam Mrs. Muir. Um fantasma é o medo que a gente tem dele.


Mrs. Muir instala-se na casa com a filha e com a criada. E logo o fantasma começa a visitá-la. "I know you are here", diz ela. As luzes todas se apagam, começam as trovoadas e os relâmpagos. Mas começa também, poucochíssimo depois, a história de amor entre o fantasma mais malcriado do mundo e a mulher mais mar do mundo. Debalde o fantasma lhe diz: "I"m here because you believe I"m here." Não vou contar o filme todo. Há sempre uma hora em que se acorda dos sonhos. Os fantasmas não são para toda a vida. Quando o percebe, Rex Harrison, pois é dele que se trata, sempre de negro vestido, vem despedir-se dela que dorme. "What you have missed by being born too late to travel the seven seas with me! And what I"ve been missed too? What we both have missed!" Antes recitara Keats, depois dá-lhe um quase beijo. Mrs. Muir descobrirá depois que o real é bem mais frágil. Fica na casa, pensando sempre que o que aconteceu nunca aconteceu, que nunca houve fantasma algum. Mas o que houve deu sentido a tudo, por ser feito de tão nada.


Depois o tempo passou. Passa sempre. Depois, um dia, o coração de Mrs. Muir deixou de bater. Quando a criada lhe vem trazer o chá cruza-se com o fantasma e com Mrs. Muir, que avançam devagarinho nas brumas. Como é que diz Keats que o fantasma recita: "I have been half in love with easeful Death... Was it a vision or a waking dream?" Porque é que as pessoas se apaixonam por fantasmas? Porque é que os fantasmas se apaixonam por pessoas? Perguntá-lo é perguntar "como pode usar amor de entendimento". Sempre que vejo, no meu cartaz, Rex Harrison mais azul do que negro sumir-se no fundo do colo de Gene Tierney, pergunto-me qual dos dois foi fantasma e como o Andrea Francorum de Stendhal "inter quos possit esse amor". Lembram-se do que ele respondia a quem se embaraçava com a obscuridade de discursos destes? É melhor não se lembrarem.


por João Bénard da Costa
12 de junho 2005 PÚBLICO

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


143. SÍSIFO E A ACEITAÇÃO DA ORDEM ESTABELECIDA


A mesma rotina diária: acordar, levantar, higiene pessoal, vestir, pequeno almoço, adquirir legumes, fruta, flores, plantas, abrir e montar a banca, pôr tudo à vista, para comerciar e vender, vender, vender. Almoçar, a meio do dia. No fim, arrumar o que sobra, desfazer a banca e fechar. Nos dias seguintes, a mesma coisa.   


Em casa, ao serão, após o jantar, ouvem-se as notícias, vê-se desporto, novelas, filmes ou séries, o sono chega, cai-se na cama, até outro dia, em que há que sair cedo, retomando-se a habitude de trabalhar, trabalhar, trabalhar.   


O essencial de uma vida, transversal a todas as vidas e profissões, a lembrar Sísifo, que recebeu de Zeus o castigo de todos os dias recomeçar de zero a sua tarefa, condenado para toda a eternidade por desafiar os deuses, como sucedera a Prometeu.


Este trabalho monótono, cansativo e repetitivo conduz-nos ao mito de Sísifo, punido e condenado a um trabalho enorme e sem fim, empurrando uma pedra até ao cimo de uma montanha onde, aí chegado, lhe fugia das mãos e rebolava daí abaixo. E recomeçava, impedindo Sísifo de ter tempo para pensar em novos interesses, evasões, afastando-o de malefícios e pensamentos suicidas.


Estas nossas vidas entediantes levaram Camus a defender que o absurdo está em interrogarmo-nos e tentar compreender se a vida faz sentido, pois é impossível ter uma resposta, pelo que quem aceita o absurdo vive bem com ele, aceitando que não faça sentido, aprendendo a viver com a sua ininteligibilidade neste oceano de perguntas sem respostas, o que não implica apatia e capitulação.


Mas há dias de não acatamento e submissão a uma vida de Sísifo, dando azo a tempos livres para escrutinar, meditar, pensar, passear, contemplar, saborear a natureza, um dia solar, bem diferente de nunca trabalhar ou não suportar o ócio e o tédio.


Sucede que o enfado, fastio e vazio se não superado pelo ritual do labor diário (mesmo que preenchido sob a forma de uma pluralidade de interesses), leva-nos a  concluir que uma vida sem trabalho não serve para nada, acabando por ser um favor o pretenso castigo que Sísifo recebeu e, por arrastamento, nós os mortais, somos obrigados a reconhecer eternamente a nossa condição como meros servidores de uma ordem previamente estabelecida, como humanos não imortais incapazes de superar aquilo a que não somos capazes de dar sentido.


28.06.23
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

A geografia fator-chave


Mares, rios, montanhas e betão condicionam as escolhas do poder e limitam o que a humanidade pode ou não fazer.

As características geográficas de uma região definem passado e presente e futuro, no exato momento em que o campo de batalha também se trava na atmosfera da terra.

Se nos lembrarmos que o Irão tem duas grandes características geográficas: as montanhas e os desertos de sal, eis uma fortaleza!

Se nos aproximarmos, o caminho por qualquer angulo é de terreno ascendente e em muitos locais, intransponível. As terras interiores são na sua maioria ermas.

O deserto de Cavir ou o Dasht-e-Kavir é o Grande Deserto de Sal que possui aproximadamente 800km de comprimento e 320km de largura o que se pode afirmar ser o tamanho dos Países Baixos e da Bélgica juntos e, em muitas áreas, o sal à superfície esconde lama tão funda que nela nos podemos afogar.

Deste modo as características geográficas deste país que raramente sai dos noticiários, criam cerco protetor ao regime repressivo e ligado ao terror.

Como se sabe todo o Irão era a Pérsia, sendo que a forma nan-e-barbari (forma do pão persa) tem constituído a sua figura geométrica de base.

Neste país, são também os montes e montanhas que ajudam a descrever curvas, o que significa que poderes que queiram invadir estes territórios, terão de lutar com pântanos, desertos e montanhas que constituem formidáveis obstáculos de preços inimagináveis a pagar.

Contudo, a geografia deste país também o confrange a ficar contido no seu território.

Os grupos étnicos agarram-se à sua identidade e resistem ao estado moderno, e a escassez de água é um dos muitos fatores de atraso económico do Irão, onde apenas um terço do cultivado é irrigado.

Enfim, um início do não esquecer o quanto o espaço geográfico possui carater histórico e engloba as ações humanas sobre o ambiente em que vive.


Teresa Bracinha Vieira

UM MUNDO FLUTUANTE

  


A relação dos portugueses com o Japão é singular e corresponde, apesar das vicissitudes, a um percurso que o tempo fortaleceu. Os primeiros portugueses chegaram ao país do Sol Nascente entre 1542 e 1543. Segundo a tradição, teria sido um junco chinês com três portugueses, apanhado por uma tempestade, que teria sido desviado para a ilha de Tanegashima. E a partir de então iniciou-se uma relação com repercussões culturais únicas. Não foi, no entanto, fácil o intercâmbio histórico e religioso, muitas vezes com repercussões trágicas. A evolução permitiu, porém, o aprofundamento dos fatores de entendimento.


A exposição «Mundo Flutuante: estampas japonesas “ukiyo-e”», que se encontra no Museu Gulbenkian, é uma agradável surpresa. Centra-se no conceito de ukiyo, que se refere aos prazeres efémeros da vida quotidiana. Sobre esse tema fascinante, Calouste Gulbenkian reuniu um notável conjunto de arte produzida entre os séculos XVII e XIX, maioritariamente estampas do período Edo (1603-1868) e um conjunto de objetos de laca., além de livros, incluindo as preciosas “surimono” que permitem usufruirmos das mais valiosas virtualidades da cultura nipónica. É uma faceta menos conhecida da personalidade de Gulbenkian que permite compreender o carácter multifacetado do extraordinário colecionador. Em paralelo, e num domínio diferente, o Centro de Arte Moderna celebra os seus quarenta anos de vida com uma evocação da contemporaneidade japonesa, permitindo-nos complementar a lembrança histórica e a vitalidade atual. Aproveitando a obra de renovação do CAM pelo arquiteto japonês Kengo Kuma esta aproximação cultural revela-se preciosa. Na tradição antiga e na modernidade, a natureza é, para os japoneses uma força vital. E sempre me tocou o grande interesse dos japoneses por Portugal, sabendo eles muito mais sobre nós do que nós sabemos sobre o Japão, apesar do contacto e da partilha de experiências.


Agora, temos o privilégio de dispor de diferentes visões da natureza e da paisagem, a projeção da perspetiva linear ocidental do Renascimento para o Oriente, a beleza e a sofisticação das cortesãs (“bijin”), a importância das narrativas literárias tradicionais, mas ainda os efeitos das inundações de 1967 sobre as estampas da coleção e a mestria dos restauros realizados. 


Perante as belas estampas japonesas da coleção de Calouste Gulbenkian, recordo a visita que fiz a Ryoan-ji, em Quioto, quintessência de um templo zen. João Bénard da Costa no seu “Quinze Dias no Japão” (2001) fala-nos da inesquecível experiência que teve nesse jardim de delícias. No filme “A Décima Quinta Pedra” de Rita Azevedo Gomes (2007), João desenvolve num diálogo extraordinário com Manoel de Oliveira a ideia de que “só se vê com o coração” … Naquele jardim, com quinze pedras, representando o universo, em nenhum ponto do mesmo podem ser vistas todas elas. Há sempre uma que desaparece encoberta por outras. E depressa percebemos que nunca poderemos ver todas as pedras em simultâneo. O monge de Ryoan-ji perguntou ao João, no fim da estada, se já compreendia o que vira. «Começo a compreender!» - disse o interlocutor de um modo cauteloso. Mas o monge surpreendeu-se: «Já aqui estou há vinte anos e cada vez entendo menos». E mercê do alerta do monge, percebe-se que só com o coração se pode ver, compreendendo o mundo, a memória e o tempo. “No Oeste varremos as folhas caídas com a nostalgia de quem sabe que o tempo findou; no Japão essas folhas juntam-se e dão lugar à alegria do surto de um novo tempo”. A cultura traz-nos mil surpresas. E dizia João que «esse jardim de Ryoan-ji ensina-nos, entre muitas outras coisas, que dizem os orientais, uma vida inteira não dá para aprender, que cada coisa é ela e simultaneamente o seu duplo, que nada existe fora do olhar que lhe dá existência e que – como no paradoxo de Zenão, de que talvez seja a ilustração suprema – o movimento é a mais radical de todas as ilusões».


GOM

FRANCISCO E OS JOVENS. 2

  


Continuo com os apelos e pedidos do Papa Francisco aos jovens. A partir de uma síntese de Gilles Donada publicada no jornal La Croix. Poderá ajudar na preparação para a Jornada Mundial da Juventude.


6. “Fazei escolhas audaciosas”.
Francisco quer que os jovens sonhem grande. E em que consiste o essencial desse sonho?  É um sonho que passa pela realização se si. “Levanta-te e torna-te o que és”. “Levanta-te” também significa “sonha”, “arrisca”, compromete-te com mudar o mundo”. “Obrigado, jovens, por cultivar o sonho da fraternidade, ter cuidado com as feridas da criação, lutar pela dignidade dos mais fracos e difundir o espírito de solidariedade e partilha.”


Em ordem à sua concretização, os sonhos passam por “decisões concretas  e grandes escolhas”. “Não tenhais medo de escutar o Espírito, que vos sugere escolhas audaciosas, não  titubieis, quando a consciência vos pedir para seguir o Mestre.”


7. “Falai sempre com Jesus”
.
“Ide ao encontro de Jesus, estai com Ele na oração, confiai toda a vossa existência ao seu amor misericordioso e à vossa fé, e a vossa fé será um testemunho luminoso de generosidade e de alegria por segui-lO.” “Falai sempre com Jesus, tanto no bem como no mal, quando fizerdes uma coisa boa ou uma coisa má. Não tenhais medo dEle.”


8. “... e evangelizai de joelhos”.
“A evangelização faz-se de joelhos”, por outras palavras, com a oração. “Sede sempre homens e mulheres de oração. Sem uma relação constante com Deus, a missão torna-se uma profissão”, insiste concretamente diante de seminaristas. É preciso fazer como Jesus, que, “na véspera de cada acontecimento importante se recolhia numa oração intensa e prolongada. Cultivemos a dimensão contemplativa, também no meio do turbilhão dos compromissos mais urgentes e pesados. E quanto mais a missão  vos chamar a ir às periferias existenciais mais o vosso coração deve estar unido ao de Jesus, cheio de misericórdia e de amor.”


Diz o Evangelho que Maria, para ir ajudar a prima Santa Isabel, “se levantou e partiu apressadamente” — este é o lema escolhido por Francisco para  a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa. O Papa vê nesta atitude uma boa fonte de inspiração para a juventude. “O mundo de hoje tem necessidade de jovens que vão com pressa, que não se cansam de ir apressadamente, de jovens que têm esta vocação de perceber que a vida lhes oferece uma missão.” “Temos necessidade de jovens em marcha. O mundo só pode mudar, se os jovens estiverem em marcha.”


Mas como dirigir-se a uma pessoa afastada da Igreja? “A última coisa a fazer é dizer-lhe alguma coisa, fazer comentários.” A atitude tem de ser outra. “Começa por fazer e essa pessoa verá o que tu fazes e far-te-á perguntas, e, quando fizer perguntas, então responderás.”  “Evangelizar é dar este testemunho: eu vivo assim, porque acredito em Jesus Cristo; desperto em ti a curiosidade da pergunta: “mas porque é que fazes estas coisas?” E a resposta do cristão deve ser esta: “Porque acredito em Jesus Cristo e anuncio Jesus Cristo não pela Palavra — claro também é necessário anunciar pela Palavra —, mas sobretudo através da minha vida.”


9. “Sede embaixadores da paz”
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Para Francisco, uma dos combates prioritários é o da paz. “Sabei-lo bem, vivemos momentos terrivelmente difíceis. A Humanidade está em grande perigo. Estamos em grave perigo. Sede, pois, embaixadores da paz, para que o nosso mundo redescubra a beleza do amor, do viver juntos, da fraternidade, da solidariedade.”


O combate pela paz implica “um compromisso concreto, a partir da fé, para a construção de uma sociedade nova: viver no meio do mundo e da sociedade, para fazer crescer a paz, a justiça, os direitos humanos, a misericórdia, e estender assim o reino de Deus no mundo.”


Colocar “Deus no centro” da vida, acolhê-lo com fé, opera uma “revolução copernicana”. “A fé incita ao amor de Deus, que nos dá segurança, força, esperança. Quando Deus está presente, no nosso coração permanecem a paz, a doçura, a ternura, a coragem, a serenidade e a alegria, que são os frutos do Espírito Santo”, transformando “o nosso modo de pensar e agir, que se tornam o modo de pensar e agir de Jesus, de Deus.” Exorta os jovens: “Caros amigos, a fé é revolucionária, e eu peço-vos a cada um de vós, a cada uma de vós, hoje: estás preparado, estás preparada, para entrar nesta onda revolucionária da fé? Só entrando nela é que a vida de jovem terá um sentido e assim será fecunda.”


10. “Reencontrai as vossas raízes: escutai a sabedoria dos idosos”.
É constante em Francisco o apelo  à ligação viva entre as diferentes gerações, atacada pela “cultura da rejeição” e a “cultura da produtividade”. “A juventude é muito bela, mas a eterna juventude é uma alucinação muito perigosa. Ser velho é tão importante — e belo — como ser jovem. Não esqueçamos isto. A aliança entre as gerações, que restitui ao humano todas as idades da vida, é o nosso dom perdido e que devemos retomar.”


Quer que os jovens se reaproximem dos seus idosos, para irem ao encontro da sabedoria. “Deixa-te iluminar pelos conselhos e o testemunho dos idosos. Dialogar com as raízes, com as pessoas de idade, com os que nos precederam, e vós a caminhar para diante... É crescendo sob o olhar benevolente e atento dos mais velhos que construímos uma personalidade sólida para as lutas quotidianas e mais: eles transmitem-nos a fé e as suas convicções religiosas.”


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 22 de julho de 2023

A VIDA DOS LIVROS

  

De 24 a 30 de julho de 2023


Perante o hediondo ataque das tropas de Putin ao centro histórico de Odessa, que destruiu seriamente a Catedral ortodoxa da Transfiguração, recordamos a obra clássica de Berdiaeff (1874-1948) “Cinco Meditações sobre a Existência”, na tradução de Ana Hatherly (Guimarães ed., 1961).

 


O texto de Ana Hatherly sobre Nicolau Berdiaeff, filósofo e místico ucraniano, é bem ilustrativo do que muitas vezes se esquece quando vemos a violência cega não cuidar dos meios para atingir fins bárbaros. O filósofo “coloca o homem no centro do mundo mas como imagem e semelhança de Deus, aquele que considera o homem existente como um ser total, como um todo em si, mas cheio de contradições e de paradoxos. Estas contradições e esses paradoxos contribuem para o sentimento do sentido trágico da existência porque implicam o conflito a pessoa consigo própria e consequentemente com a pessoa dos outros. Antiracionalista na medida em que proclama a totalidade do homem, a inseparabilidade do pensamento das emoções, da vontade da afetividade, já que considera o homem como um todo indissociável e particular, ergue-se naturalmente contra tudo o que for limitar a liberdade da ação individual, contra toda a espécie de coisificação, de ‘objetivação’, na sua terminologia, contra tudo o que for submergir o sujeito no objeto, desde a objetivação do pensamento e das emoções à objetivação da siociedade quer religiosa quer política” (…) “A pessoa é social, é feita para viver no mundo mas só pode nele conviver, comunicar, comungar com a pessoa que não seja objeto mas sim ser espiritual à imagem e semelhança de Deus, mas ainda de um Deus objetivado, não socializado, não tornado coisda, pois que tudo se torna demoníaco sem o amor, mesmo a fé; e outro tanto acontece sem liberdade”.


A destruição da Catedral de Odessa, há dias, representa o contrário deste entendimento. Não é apenas um monumento, integrado, aliás, num centro urbano classificado pela UNESCO, que está em causa. É a dignidade humana que é atingida. E cabe perguntar: que loucura pode justificar uma tal cegueira? A noção de cultura e de património exige que o respeito da humanidade nunca possa ser esquecido. “A ideia mestra da minha vida (disse o filósofo ucraniano) é a ideia do homem, do seu rosto, da sua liberdade criadora e da sua predestinação criadora” (…) A Verdade implica a atividade do espírito do homem, o conhecimento da Verdade depende dos graus de comunidade que podem existir entre os homens, da sua comunhão do Espírito”. De facto, a destruição de um símbolo do conhecimento da Verdade representa a incapacidade de compreender o dever da humanidade de fazer da liberdade criadora um fator de paz e de respeito mútuo. Que querem os senhores da guerra? Destruir a humanidade pela recusa de qualquer capacidade criadora.


A Catedral da Transfiguração na cidade de Odessa foi encomendada pela Imperatriz Isabel da Rússia (1709-1762), filha de Pedro o Grande, entre 1743 e 1754, tendo sido fundada em 1794 e consagrada em 1808. Foi originalmente um pequeno edifício que se manteve até ao século XIX, tendo sido destruído por um incêndio em 1825. Transformou-se, no século XX na maior Catedral do Império Russo. A estrutura original foi, no entanto, demolida em 1936, tendo a última reconstrução decorrido entre 1999 e 2005.


O ícone representando a Mãe de Deus (Kasperovska) , padroeira de Odessa foi salvo entre os escombros. A Diretora-Geral da UNESCO, Audrey Azoulay, já condenou este ataque criminoso: “Estas terríveis destruições marcam uma nova escalada de violência contra o património cultural da Ucrânia. “Exorto a Federação da Rússia a tomar medidas tangíveis para cumprir as suas obrigações que dizem respeito ao direito internacional para preservação do património cultural”. Josep Borrell, chefe da diplomacia europeia foi claro: trata-se de um crime de guerra que atingiu bens do património da humanidade.  


Guilherme d'Oliveira Martins

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE YVETTE K. CENTENO 

  


Através do Espelho


a António Ramos Rosa

Foste sempre a estrangeira:
a da trança de lado
a do olhar de frente
o verde da tua bata
um verde
inconveniente
tinhas muitas moradas
partias e partias
não ficavas
e a meio da viagem
quando os outros seguiam
tu voltavas


in Outonais (poemas 2005-2010), unpublished
© Yvette K. Centeno


Through the Looking-glass


to António Ramos Rosa

You were always the stranger:
hair plaited on the side
eyes that stared straight ahead
the green of your pinafore
was an unsuitable
green
you had many homes
you left and left
you never did stay
and when half way there
as the others followed
you turned back


© Translated by Ana Hudson, 2010
in Poems from the Portuguese 

 

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