A FORÇA DO ATO CRIADOR
Os filmes de Éric Rohmer abrem a possibilidade do milagre infundir a vida com sentido.
“There is a crack in everything.
That’s how the light gets in.”, Leonard Cohen ‘Anthem’
O cinema, segundo Éric Rohmer, não cria significados através de símbolos. O seu cinema simplesmente dá a mostrar. No texto ‘Truth, Beauty and Goodness: Freedom and the Platonic Triad in Eric Rohmer’s Film Theory’ de Hanne Schelstraete (Film-Philosophy, Volume 26 Issue 3, Page 331-351, Sep 2022) lê-se que em vez de afirmar uma camada por de trás da realidade que se experiencia e que se tem de interpretar, Rohmer antes declara que aparência já é essência. O cinema ao ser o meio que revela a essência na realidade visível, procede de uma visão cristã sobre o mundo. E Rohmer expressa esta crença na transcendência imanente do mundo palpável através do seu cinema que, naturalmente, revela a realização divina.
Schelstraete explica que desde início da era moderna, a sociedade ocidental progressivamente substituiu o absoluto pelo particular, a certeza pelo relativismo e os dogmas religiosos por um ceticismo generalizado. Desde o séc. XIX, a sociedade tornou-se industrial e a existência humana deixou de ser somente justificada pela existência de Deus. Não é Deus omnipresente, mas sim o indivíduo que detém o poder soberano sobre a sua própria liberdade e as suas próprias incertezas. O espaço reservado ao desconhecido e ao irresoluto diminuiu.
Porém, Schelstraete argumenta, que dentro deste panorama Eric Rohmer acredita que o cinema é ainda a arte que possui intrinsecamente a verdade e por isso deve fazer da beleza o seu fim supremo. Em alguns dos seus textos, Rohmer considera a lógica, a estética e também a ética como ideais absolutos que fundamentam e precedem todas as experiências e os pensamentos do ser humano. Para Schelstraete, Eric Rohmer aborda o cinema como meio mecânico, como forma de arte em movimento mas sobretudo como expressão que explora a metafísica e a essência do ser humano.
O cinema de Rohmer tenta, assim, recuperar esse espaço reservado ao transcendente em ocasiões aparentes quase impercetíveis. Para Keith Tester, em ‘Film as Theology’ (2008), os filmes de Rohmer abrem de facto essa possibilidade de um sentido mais sublime se concretizar. O cinema de Rohmer permite que haja espaço para os sinais divinos se manifestarem na realidade objetiva.
Para Tester, o sinal ou graça não se manifesta através de grandes momentos. Os milagres nos filmes de Rohmer aparecem subtilmente, não são óbvios e por isso a sua receção e entendimento é mais exigente. A graça manifesta-se em momentos frágeis, insignificantes e facilmente ignoráveis - um encontro inesperado, a forma de um joelho, o despir de uma camisola, um reflexo…
Um milagre, nos filmes de Rohmer, é uma irrupção de novas possibilidades mas também a invasão súbita de novas incertezas. Por isso, Tester esclarece, que muitos filmes terminam em momentos que não ficam resolvidos - parecem, muitas vezes, terminar em novos começos. A circunstância em que surge a transmissão do sinal é só reconhecida por aqueles que estão prontos para receber a graça. Para Tester, os filmes de Rohmer exploram sobretudo a capacidade das personagens (que são pessoas empiricamente reais) em conseguirem, através da perseverança, continuar a procurar ver ou pelo menos em possuírem a disponibilidade para continuar à procura dos sinais - mesmo se estes ficarem perdidos ou se não forem vistos com evidência.
Na opinião de Tester, os filmes de Rohmer abrem caminho para algo prometedor porque permitem a possibilidade do milagre infundir a vida com sentido. O indivíduo poderá assim abrir-se à possibilidade de um sentido vivencial mais sublime e não somente superficial e experiencial. E essa abertura implica estar mais atento e sensibilizado em relação ao mundo real e físico.
Ana Ruepp