A VIDA DOS LIVROS
De 10 a 16 de julho de 2023
"A História Contemplativa" de José Mattoso (Temas e Debates, 2020) é ponto de partida para a invocação da Carta Apostólica do Papa Francisco “Sublimitas et Miseria Hominis” sobre 4 séculos do nascimento de Blaise Pascal.
A HISTÓRIA HUMANA…
Começo por recordar a memória de José Mattoso (1933-2023), referência fundamental da moderna historiografia e da cultura portuguesa. Deixo uma breve citação, na qual recordo o seu espírito: “A minha visão da História humana, da História-vivida, é contemplativa. Sem dispensar nenhum dos recursos da investigação crítica, da heurística, da cronologia, da situação no espaço, da reconstituição dos factos, da perceção das ideias, da averiguação dos conjuntos humanos, do sentido dos mitos e dos rituais, procuro nela a trajetória temporal do Homem que creio ter sido feito à imagem e semelhança de Deus. Procuro a relação do Homem – de qualquer homem e de qualquer mulher – com o Filho do Homem (Mateus 8,20; Marcos 8,31). Do Filho do Homem que é igualmente Filho de Deus vivo (cf. João 6,51) Não esqueçamos que a atitude contemplativa é da ordem da visão. Requer um olhar atento, global, pacífico, não interventivo. Um olhar que capta as relações do pequeno com o grande, do singular com o plural, do diferente com o semelhante, do mesmo com o contrário. O olhar que coloca as coisas na sua ordem, que permite descobrir os géneros e as espécies, que classifica os conjuntos e que lhes atribui qualidades. Um olhar que reconhece o movimento e as mutações, sem que a diferença de tempo altere a identidade. Um olhar que compreende os percursos e os destinos da Humanidade, a atração e a repulsa, o amor e o ódio. (…) A visão contemplativa da História total faz da Arte, um dos caminhos que creio poderem conduzir ao Transcendente” (in “A História Contemplativa, Temas e Debates, 2020).
A RELIGIÃO E O MUNDO
O Papa Francisco, quando se assinalam quatro séculos do nascimento de Blaise Pascal (1623-1662), filósofo, matemático e homem de fé, põe-nos diante deste tema que tão bem foi tratado por José Mattoso, na linha dos ensinamentos e reflexões de Yves Congar, O.P., a quem devemos o diagnóstico sobre as razões da incredulidade dos dias de hoje – “a uma religião sem mundo, sucede um mundo sem religião”. Daí a preocupação de João XXIII sobre a compreensão dos sinais dos tempos e sobre a exigência de olharmos o mundo com olhos de ver. “Sublimitas et Miseria Hominis” é o título da Carta Apostólica e trata-se de um documento excecional, já que reflete sobre a experiência de um cientista cristão, que fez luz sobre a dignidade humana. É a vida vivida que está em causa “um olhar que compreende os percursos e os destinos da Humanidade”. «Desde criança e por toda a vida, (Pascal) procurou a verdade. Com a razão, esquadrinhou os sinais dela, especialmente nos campos da matemática, geometria, física e filosofia. Em idade ainda muito precoce, fez descobertas extraordinárias, alcançando fama considerável. Mas não ficou por aí. Num século de grandes progressos em muitos campos da ciência, acompanhados, porém, dum crescente espírito de ceticismo filosófico e religioso, (o cientista) mostrou-se um incansável investigador do verdadeiro: como tal, permaneceu sempre «inquieto», atraído por novos e mais amplos horizontes». A homenagem a alguém que se tornou célebre pelos sucessos científicos e técnicos e pelos trabalhos desenvolvidos na busca da verdade dos factos e das experiências, permite-nos pôr a tónica na modernidade e nas suas virtudes, dúvidas e perplexidades. «Se Blaise Pascal consegue tocar a todos, é sobretudo porque falou admiravelmente da condição humana. Mas seria errado ver nele apenas um especialista, embora genial, dos costumes humanos. O monumento formado pelos seus Pensamentos, de que alguns ditos isolados ficaram célebres, não se pode compreender realmente se se ignora que Jesus Cristo e a Sagrada Escritura constituem simultaneamente o centro e a chave do mesmo». A um tempo, Pascal adverte-nos contra a tentação de nos considerarmos como possuidores da verdade, mas também contra as falsas doutrinas e as superstições «que mantêm, a tantos de nós, longe da paz e alegria duradouras d’Aquele que deseja que escolhamos a vida e a felicidade, não a morte e a desventura». De facto, «sem a sapiência do discernimento, podemos facilmente transformar-nos em marionetas à mercê das tendências da ocasião».
UMA CANA PENSANTE
Tem razão o Papa Francisco, quando salienta que «para se compreender bem o discurso de Pascal sobre o cristianismo, é necessário estar atento à sua filosofia”. Daí a exigência do sentido crítico e do entendimento dos limites, já que o estoicismo leva ao orgulho e o ceticismo ao desespero. E a razão humana é uma maravilha da criação, que distingue o homem dentre todas as criaturas, porque «o homem não passa duma cana, a mais frágil da natureza, mas uma cana pensante». Blaise Pascal colocou o amor dos seus irmãos em primeiro lugar. Sentiu-se e reconheceu-se como membro do Povo de Deus, porque nada é mais perigoso do que um pensamento desencarnado: «Quem quer fazer o anjo, faz a besta». E há ideologias mortíferas, que mantêm os seus sequazes em redomas como se o ideal substituísse o real. Como leigo, saboreou a alegria do Evangelho, com que o Espírito quer fecundar e curar «todas as dimensões do homem» e reunir todos os homens à volta da mesa do Reino. Quando escreveu a Oração para pedir a Deus o bom uso das doenças (1659), Pascal era um homem pacificado, fora da controvérsia e da apologética. Estando à beira da morte, desejou morrer na companhia dos pobres, com a simplicidade duma criança. E depois de receber os Sacramentos, as últimas palavras foram: «Que Deus nunca me abandone».
Guilherme d'Oliveira Martins
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