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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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SOBRE O SILÊNCIO: HÁ MUITOS SILÊNCIOS. 3

  


Continuamos com a urgência da cultura da pausa e do silêncio.


Repetindo, chama-se, como diz o jesuíta Juan Masiá, professor em Tóquio, cultura da pausa à tradição oriental de dar importância aos silêncios numa conversa, às margens numa folha escrita ou num quadro, aos intervalos entre as palavras, aos vazios nas letras, aos espaços livres na arquitectura, ao não dito na mensagem, à receptividade na contemplação. Parar para ouvir o silêncio e contemplar: em vez de olhares para ti e eu olhar para mim, deixemo-nos olhar ambos pela “Realidade-Assim-Sempre-Presente cuja aura comum nos envolve”. Sai de ti, para te encontrares no Todo. Deixa o eu superficial, transcende, descendo até ao eu profundo e ao “Assim-Sempre-Presente”, que se manifesta. Sem pausas de silêncio, como poderíamos ouvir uma mensagem ou uma sinfonia? Sem intervalos, margens e vazios nas letras e entre frases, como poderíamos ler e entender? E verdadeiramente viver, indo ao essencial?


Aqui, quanto ao essencial, lembrei-me daquela estória, que poderia ser histórica, e volto a Juan Masiá, pois é ele que a conta — está no seu livro Vivir. O jovem rei, com desejo de aprender, convocou os sábios do reino, encarregando-os de lhe trazerem um resumo da sabedoria humana. Passados trinta anos, compareceram com doze camelos, carregando quinhentos volumes. O rei, já cinquentenário, lamentou já não ter tempo para lê-los: “Fazei uma edição abreviada”. Dez anos depois, bastaram três camelos, mas o rei, já sexagenário, sentia-se sem forças para tanta leitura e pediu uma versão mais curta. Outros dez anos de trabalho e um camelo apenas para transportar os volumes. O rei, porém, tinha a vista debilitada. Assim, mais cinco anos de trabalho, para reduzir a obra a um único volume. O rei, já no leito de morte, entristeceu-se profundamente: “Chegarei ao fim dos meus dias sem ter tido o gozo de aprender a história da caminhada humana?” Então, o mais velho dos sábios aproximou-se e sussurrou aos ouvidos do rei: “Majestade, pode-se reduzir tudo a três palavras: nascemos, sofremos e morremos.” O rei assentiu com um gesto e expirou. Recordo que Jesus também disse: “De que vale ao Homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua alma, a sua vida?”


Afinal, tanta vaidade oca! Ah!, tantos desastres pessoais, sociais, económicos..., se teriam evitado, se tivesse havido a graça do meditar em silêncio! E quem tem a responsabilidade de falar para ser ouvido não pode falar em ruído cacofónico a propósito e a despropósito de tudo e de nada. Também há o silêncio discreto, que  evita os mexericos, a tagarelice vazia. As palavras criadoras, com autoridade, nascem do e no silêncio. Como escreveu o filósofo A. Comte-Sponville, precisamos do “silêncio do sábio, mesmo quando fala.”


E aí está o fundamento de todos os silêncios:  o silêncio perante o Mistério Inefável, Deus, que transcende tudo quanto se possa pensar ou dizer dele: o Mistério do ser. O silêncio da surpresa avassaladora e inominável que nos visita. E vou ao encontro de Raul Solnado, que apenas encontrei uma vez. Num casamento. Surpreendeu-me a imagem que me ficou: a de um homem reflexivo. Deixou um pequeno escrito de uma profundidade surpreendente, com uma experiência, no silêncio, na Expo, em Lisboa, em 2007. “Numa das vezes que fui à Expo, em Lisboa, descobri, estranhamente, uma pequena sala completamente despojada, apenas com meia dúzia de bancos corridos. Nada mais tinha. Não existia ali qualquer sinal religioso e por essa razão pensei que aquele espaço se tratava de um templo grandioso. Quase como um espanto, senti uma sensação que nunca sentira antes e, de repente, uma vontade de rezar não sei a quem ou a quê. Sentei-me num daqueles bancos, fechei os olhos, apertei as mãos, entrelacei os dedos e comecei a sentir uma emoção rara, um silêncio absoluto. Tudo o que pensava só poderia ser trazido por um Deus que ali deveria viver  e que me envolvia no meu corpo amolecido. O meu pensamento aquietou-se naquele pasmo deslumbrante, naquela serenidade, naquela paz. Quando os meus olhos se abriram, aquele Deus tinha desaparecido em qualquer canto que só Ele conhece, um canto que nunca ninguém conheceu e quando saí daquela porta, corri para a beira do rio para dar um grito de gratidão à minha alma, e sorri para o Universo. Aquela vírgula de tempo foi o mais belo minuto de silêncio que iluminou a minha vida e fez com que eu me reencontrasse. Resta-me a esperança de que, num tempo que seja breve, me volte a acontecer. Que esse meu Deus assim queira.” 


É nele, na presença do “Deus desconhecido”, que vivemos sempre. Como São Paulo foi dizer no Areópago aos atenienses: “É nele, realmente, que vivemos, nos movemos, e existimos, ‘pois nós somos também da sua estirpe’.” Mas, distraídos, não damos por nada.


Quem não aprendeu a fazer silêncio e a ouvir o silêncio não aprendeu o essencial do viver nem experienciou o sentido último da vida. Mas não esquecer, mais uma vez, o que escreveu Juan Masiá: “São precisos anos para aprender a ouvir o silêncio.” E cito Teresa Bracinha Vieira: “O silêncio não tem corpo nem ocupa espaço. Não é pintado nos quadros, nem tocado na música. O silêncio não é o oposto do ruído, é muito mais... é um saber que se sente e se sabe e se não diz.”


Fica ainda, pedindo desculpa por isso, o silêncio de todos os silêncios ignorados ou esquecidos neste texto.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 8 de julho de 2023