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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 17 a 23 de julho de 2023


Num tempo em que o tema da Inteligência Artificial está na ordem dia, entre muitas interrogações, celebra-se o quarto centenário do nascimento de Blaise Pascal (1623-1662), filósofo, matemático, investigador, estudioso de complexos instrumentos de cálculo e precursor dos computadores.


UM PENSAMENTO PRECURSOR
Como Raimundo Lúlio e Leibniz, Blaise Pascal foi dos que demonstraram que os raciocínios lógico-matemáticos poderiam ser automatizados. Nascido em 19 de junho, em Clermont-Ferrand, filho de um magistrado e matemático, ficou órfão de mãe aos três anos, manifestando desde muito cedo uma extraordinária capacidade para o estudo e compreensão das ciências e das matemáticas. Com o apoio de seu pai, Blaise Pascal frequentou, desde muito cedo, os meios letrados. Com onze anos compôs um “Tratado dos sons” e com dezassete anos um “Ensaio sobre os cónicos”, começando a interessar-se pela criação de uma máquina aritmética. As experiências sobre o vazio levaram-no a proceder a aprofundados estudos, que o conduzem a uma polémica com Descartes, apesar da sua admiração pelo autor do “Discurso do Método”. De facto, nota-se nessa relação o inconformismo de Pascal – reconhecendo a importância da dúvida metódica, mas cultivando um caminho próprio de pensar. “O homem é visivelmente feito para pensar. Está aí toda a sua dignidade e todo o seu mérito”. Por isso, parte de Descartes, usando o seu pensamento autónomo, mas também o sentido crítico. E aí encontramos a sua aproximação a Montaigne, mesmo que o considere um mestre incómodo, já que Pascal o critica por tantas vezes motivar a indiferença perante os seus leitores e seguidores.


Em 1645 inventa a sua máquina de calcular, a Pascaline, que é autorizada para o comércio em 1649, após o final da Guerra dos Trinta Anos. O aparelho de Pascal não tem, porém, o esperado sucesso no mercado. Entretanto, aproxima-se de Jansénio, seguido pela irmã Jacqueline, em Port-Royal. Reflete sobre essa conceção no seu próprio “Augustinus”, que ficará inédito, mas confronta-se com a condenação de tal conceção por Inocêncio X (1653). O Papa Francisco recordou, porém, há pouco na Carta Encíclica “Sublimitas et Miseria Hominis” a importância do pensador. E lembra que, no dia 23 de novembro de 1654, Pascal viveu uma experiência mística muito forte, referida como a «Noite de Fogo». Esta episódio, que o fez derramar lágrimas de alegria, foi tão intenso e decisivo que o descreveu num pedaço de papel datado com precisão, o «Memorial», que guardou no forro do casaco e que foi descoberto só depois da sua morte. É impossível saber a natureza exata do que se passou na alma de Pascal naquela noite, mas parece tratar-se de um encontro semelhante ao vivido por Moisés diante da sarça ardente.


A DIMENSÃO ESPIRITUAL
Nesse mesmo ano de 1654, terminou os tratados de física e sobre o triângulo aritmético, correspondendo-se com o célebre matemático Fermat (num “encontro admirável”). Escreve ainda “Sur la conversion du pecheur”. Em 1655, no mês de janeiro, realiza um retiro espiritual na comunidade de Jansénio em Port-Royal – sendo tal a data presumível do “Abrégé de la Vie de Jésus-Christ”. Segundo o entendimento defendido na comunidade, em que participa Jean Racine, haveria que partir-se da humildade perante Deus, valorizando a simplicidade e a clareza de expressão. “A grandeza dos príncipes exige o aparato, a dos sábios a admiração dos seus pares, a glória de Jesus manifesta-se na humildade da sua condição”. Assim, Pascal recusa a tirania religiosa e a idolatria. Impor a religião pelo terror é “contranatura”, ou seja, procurar a prevalência do terror sobre a razão, como o pensador demonstra na carta XII de “Provinciais”, texto essencial numa hora em que regressam os fanatismos religiosos e políticos. Saint-Beuve, ao falar de Port-Royal, propôs um retrato de Pascal com múltiplas facetas, sábio, moralista, filósofo e crente; não apenas como notável escritor, mas como alguém que procurou a coerência entre uma inteligência científica excecional e uma capacidade especial para compreender a transcendência. Lembrando ainda o Papa Francisco, este afirma: «A filosofia de Pascal, toda ela em paradoxos, deriva de um olhar simultaneamente humilde e lúcido, que procura alcançar a “realidade iluminada pelo raciocínio”». Parte da constatação de que o homem é como um estranho para si mesmo, grande e miserável; grande pela sua razão, a sua capacidade de dominar as paixões, grande até «na medida em que se reconhece miserável».


UM COMBATENTE
Pascal foi um homem comprometido, combateu, por isso, a intolerância, a injustiça e o abuso do poder. Foi um permanente inconformista. Razão e coração deveriam completar-se – o espírito geométrico exigiria o “esprit de finesse”. Para Pascal, contudo, o “homem é um ser paradoxal, dilacerado entre diferentes capacidades que o obrigam a reconhecer que a verdade se coloca para além das leis, das normas, das regras e dos dados objetivos”, como afirmou Maria Luísa Ribeiro Ferreira (“Sete Margens”, 24.6.2023). Para Pascal, o uso do conhecimento científico pressupõe distância, obrigando ao sentido crítico e à compreensão dos limites. Essa foi a chave da originalidade de quem entendeu como poucos que a aventura da sabedoria humana obriga a cuidar da razão e do coração. “O coração tem razões que a própria razão desconhece”. E assim pode dizer-se que o filósofo viveu apesar da grave doença que o atingiu, foi livre, apesar do peso da opressão que sentiu e foi capaz de inventar contra todo o tipo de conformismo, tão comum na sua época. E assim submeteu as questões da fé a um cálculo de probabilidades, enquanto espírito matemático sem quebras. Haveria tudo a ganhar no acreditar e nada a perder se a aposta não funcionasse. Afinal, somos incapazes de conhecer nem o que é, nem se se é. E quanto à capacidade de persuadir, essencial para um pensador – essa arte consistiria “tanto no que mobiliza como no que convence, até porque os homens se governam mais por capricho do que pela razão”. Conhecendo a obra de Blaise Pascal, não será difícil considerar que no debate atual sobre a Inteligência Artificial, ele teria uma atitude esperançosa, distinguindo claramente meios e fins, e entendendo os novos meios como auxiliares da humanidade e não como motivos de subordinação. Lidar com a incerteza é o que Blaise Pascal nos propõe e assim se podem desenhar as linhas de uma felicidade possível apesar das dificuldades…  


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença