Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
As interrogações que aqui se inserem servem de aperitivo e de recordação de Alexandre O’Neill. Neste mês de agosto de 2023, o folhetim diário do CNC terá uma letra diferente em cada dia. Assim designamo-lo como abecedário. Começo por esclarecer que se trata de uma narrativa fantástica. Ocorre nos dias de hoje, mas um pouco à semelhança dos Apólogos Dialogais de Francisco Manoel ou da Torre da Barbela de Ruben, envolvendo uma mistura de fantasmas de diversas épocas, que se procuram esclarecer, em substância, sobre o que é isto da cultura – desde a intervenção de uns Relógios Falantes até a um Hospital das Letras ou a um Escritório Avarento… Em cada episódio diário, haverá sempre um enredo explicativo e um suspense entre as duas letras que se sucedem e que seguirão a ordem tradicional. Daí o título de abecedário e a coexistência de um labirinto e de um caleidoscópio. E encontraremos aqui a lógica semelhante à dos espíritos que subitamente aparecem e desaparecem, ora com uma postura severa, ora com uma dimensão jocosa. Sempre, porém, haverá uma moral da história, capaz de nos vacinar contra um certo analfabetismo endémico que por aí pulula. Daí a necessidade de um Hospital das Letras, disciplinador e certeiro. Os cavaleiros serão cavaleiros, os bobos serão bobos, os saltimbancos e dançarinos não faltarão, como nos painéis de Almada Negreiros na Rocha do Conde de Óbidos, os conselheiros, conselheiros serão. E seremos fiéis ao romanceiro – Cada capítulo terá dois mil caracteres e com tal espírito de síntese iremos deixando enigmas por resolver. “Lá vem a Nau Catrineta que tem muito que contar. Ouvide agora senhores esta história de pasmar”. Eis o ponto de partida, algo barroco, algo misterioso. E verão que o Verão vale a pena!
Ao falar de identidade nacional, José Mattoso lembrava a anedota que se contava do rei D. Luís quando, já bem adiantado no século XIX, perguntava do seu iate a uns pescadores com quem se cruzou se eram portugueses e a resposta foi bem clara: “Nós outros? Não, meu Senhor! Nós somos da Póvoa de Varzim”.
Com efeito, é sempre complexo o processo de definição do que designamos por identidade nacional. Ela é inseparável de uma perceção coletiva. Por isso a consciência histórica é fundamental, correspondendo à noção de apropriação do poder, tendo no caso de Portugal o Estado precedido a Nação, num processo lento e gradual. Esta anedota serve para se perceber que, longe de um entendimento fechado, estamos perante uma realidade complexa e aberta, que no caso português se traduz num curioso cadinho que, na diversidade, se uniformizou no território, na fronteira, na língua e numa construção convergente realizada de norte para sul e de sul para norte. “A História-escrita não será nunca reprodução da História-vivida” – disse-o José Mattoso (cf. A História Contemplativa – Ensaio, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2020). “A História-escrita não será nunca reprodução da História-vivida. Uma verifica os vestígios deixados pelo que aconteceu e relaciona-os entre si para representar o que já não existe. A outra é o conjunto dos próprios acontecimentos, que se sucedem no tempo e por isso podem ser recordados por quem os viveu, mas já não existem. Ao escrever a História construímos uma representação, ou seja, uma réplica do que aconteceu. Com efeito, os acontecimentos deram-se em momentos fortuitos, que não podemos representar porque a cada um deles segue-se outro momento”. A História-escrita não explica a reação dos poveiros. E para o historiador o encadeamento dos factos corresponde a operações mentais. Daí a necessidade de sínteses, de classificações, de agrupamentos racionais. Contudo, perante a complexidade temos dificuldade em distinguir o individual e o coletivo, o nacional e o internacional, os fatores sincrónicos e diacrónicos. Assim, a organização do tempo revela-se importante não apenas para distinguir a sucessão dos acontecimentos, mas também para permitir a comparação com o que ocorre noutros horizontes e que converge e diverge entre si. Como há um movimento permanente e simultâneo da sociedade humana, só podemos situar-nos na razão de ser das coisas a partir das referidas operações mentais.
ANÁLISE CERTEIRA E INOVADORA José Mattoso fez uma análise certeira e inovadora, usando uma metáfora feliz: a História-escrita assemelha-se à maquette de um edifício que já não existe, mas que idealizamos e pode ser reconstruída. A História-vivida não tem lugar na realidade, desapareceu, mas pode ser representada pela História-escrita, como operação que procura ser verosímil. É algo que já não existe, uma vez que está a ser apenas objeto de uma projeção – e, sendo-o. Move-se, modifica-se sob o risco de permanente anacronismo, uma vez que a crítica é influenciada pelas mentalidades. Pode aproximar-se da objetividade, sem certezas, mas não está preservada da neutralidade. Lembremo-nos dos conceitos de identidade e de património cultural. José Mattoso teve o cuidado de encarar tais realidades como elementos complexos. “Quando o pensamento moderno se apropriou da História para reconstituir o passado, procurou rever as histórias nacionais para excluir as lendas e milagres, mitos, revelações e fantasias, descobrir causas e efeitos, e enfim impor a racionalidade e a lógica das narrativas anteriores”. Houve, assim, a tentação de reduzir tudo à racionalidade e à mentalidade ocidental. A diversidade, a recusa da superficialidade das análises, a exigência da compreensão do contexto – já que os factos dependem não só das decisões individuais ou coletivas, mas de fatores estruturais, antes desvalorizados. O tempo curto e o tempo longo têm de se articular – ensinou-o Braudel. E a memória recorda o que aconteceu, representando-o, ainda que de um modo fragmentado. No caso dos poveiros, temos a experiência da pesca e do conhecimento do mar no tempo longo e a vulnerabilidade das correntes e da meteorologia, bem como a maior ou menor presença do pescado no tempo curto, os economistas chamam-lhe estrutura e conjuntura. Mas como poderemos analisar a vida humana transcendendo o efémero? E Paul Ricoeur leva-nos para um caminho em que possamos usar uma mediação imperfeita ou incompleta entre o futuro, o passado e o presente. E se falamos de mediações e de instituições estamos no cerne da interrogação sobre como podemos colocar as pessoas como protagonistas da organização da sociedade e da realização do bem comum.
CHEGAR À CONTEMPLAÇÃO Para José Mattoso, chegamos assim à contemplação, que é o único modo de entender a unicidade e a coerência do ser, compreendendo a diversidade e a complementaridade, a prevenção do conhecimento contra o erro e a ilusão, a consideração do método que valoriza o contexto e o conjunto, o reconhecimento do elo entre a unidade e a diversidade da condição humana, além da aprendizagem de uma identidade planetária, da exigência da atenção ao inesperado e ao incerto como marcas do nosso tempo, da educação para a compreensão mútua entre as pessoas de pertenças e culturas diferentes e do desenvolvimento de uma ética do género humano de acordo com uma cidadania inclusiva – em que insiste Edgar Morin. “Ao captar a realidade pluridimensional do Homem no tempo, nasce nele o verbo silencioso forte de imagens, símbolos e alegorias que não o esgotam, mas indicam o sentido da vida humana sobre a terra, tudo o que se passa no tempo – os grandes impérios, o sofrimento dos excluídos, a renúncia aos bens terrenos, o amor e o desejo, o riso das crianças que brincam no campo, a exploração da terra, a composição de uma sinfonia musical – enfim tudo o que é real. Tudo tem sentido, tudo pode desencadear a exaltação de quem descobre esse mesmo sentido”. E eis-nos diante do paradoxo que é a existência humana, evidenciado no mistério revelado na fórmula de Pedro Calderón de la Barca de que “a vida é sonho”. A História-escrita e a História-vivida explicam uma exigência de compreensão da importância do tempo e da reflexão, da contemplação e do mistério… José Mattoso, foi um profundo renovador da moderna historiografia em Portugal, sendo exemplar nos novos métodos e na revelação de muitos enigmas, renovando a investigação como um campo de complexidade e de compreensão, até para se entender a necessidade de uma melhor vivência democrática, bem como da defesa efetiva do património cultural e de uma relação europeia e global mais profícua.