It’s after the flesh
That the bones hurt
And the face
Recovers from fatigue
And from memories
After the flesh
When our fingers meet
We know the most real faces
That inhabit us
Are those of others.
© Translated by Ana Hudson, 2011
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EPÍLOGO
E chegamos ao termo deste folhetim de Verão de 2023, para o qual escolhemos como tema a fantasmagoria. O que significou essa escolha? A compreensão de que ao falar de literatura estamos sempre a falar de quem, apesar de já não nos acompanhar fisicamente, persiste em estar connosco. Que é a memória? Foi Mia Couto quem um dia disse, relativamente a seu Pai (que aqui lembrámos), que a presença e a memória daqueles que nos acompanharam não pode cair no esquecimento. A lembrança, acompanha-nos sempre. E tivemos a agradável surpresa assistir a um fenómeno inesperado e feliz. Carolina Michaelis de Vasconcelos tornou-se no folhetim deste ano uma heroína viva. De súbito (e sem que pudéssemos suspeitar ou adivinhar) criou-se um movimento espontâneo de milhares de opiniões, de elogios, de saudades a dizer que há mais de cem anos houve uma mulher que acreditou na audácia de dizer que a liberdade e a igualdade vivem de braço dado e que, indo às raízes da nossa cultura, a ideia de saudade não era uma melancolia triste, mas um apelo de esperança. E se Carolina o disse ao estudar desde os trovadores até à lírica moderna, a verdade é que fomos até ao caminho audacioso de Aurélia de Souza, que com um dedo determinado nos indicou a via de uma cultura viva, moderna, apaixonada…
E foi essa paixão que uniu os fantasmas que fomos encontrando – desde Bernardim Ribeiro a Diadorim, de Gil Vicente à Joaninha dos Olhos Verdes (e até poderia ter sido a Morgadinha dos Canaviais), desde as almas descobertas por Ruben A. ao cair da noite até ao crioulo de Germano Almeida ou de Nhô Baltas, desde a língua mirandesa até às gaitas de foles e aos pauliteiros… E nos confins da Ásia, descobrimos mercadores e missionários a papiar a nossa língua franca, e para maior surpresa Fernão Mendes Pinto tornou-se o verdadeiro intérprete de João de Barros, o Velho, e de Diogo do Couto. E se Garcia de Orta descobriu tudo no Colóquio dos Simples, D. João de Castro revelou os mistérios do magnetismo e importou para a Europa as mais belas plantas da Ásia, enquanto Pedro Nunes abriu os caminhos da navegação pelos números e pelos astros. E de súbito ouvimos:
“O Portugal futuro é um país
Aonde o puro pássaro é possível
E sobre o leito negro do asfalto da estrada
As profundas crianças desenharão a giz
Esse peixe da infância que vem na enxurrada
E me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
É essa a forma do meu país
E chamem elas o que lhe chamarem
Portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
Ter a oeste o mar e a espanha a leste
Tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
E na avenida que houver à beira-mar
Pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
Mas isso era o passado e podia ser duro
Edificar sobre ele o Portugal futuro.”
Sim. Aqui está o enigma todo, que Carolina Michaelis procurou encontrar, sem melancolia, mas com o entendimento de que Amadis e Binmarder eram a matéria-prima que fazia deste cadinho um conjunto que permitia fazer sonhar com Pasárgada, sem esquecer os diálogos entre Todo o Mundo e Ninguém com as risadas em fundo de Maria Parda e com as revelações de Frei Dinis. “Mudam-se os tempos, muda-se a vontade; muda-se o ser, muda-se a confiança” … Mil tentativas há para definir a cultura, mas ninguém o fez melhor do que o nosso maior: “E afora este mudar-se cada dia, / Outra mudança faz de mor espanto, /Que não se muda já como soía”. Eis por que não poderíamos ter pensado este folhetim senão com fantasmas, sérios, presentes e poéticos, capazes de dizer: “Sonho que sou um cavaleiro andante, / Por desertos, por sóis, por noite escura, / Paladino do amor, busco anelante / O palácio encantado da Ventura”. Mas, em volta da Torre que imaginámos, mesmo escura, mesmo vazia, reuniam-se os antigos familiares “primos vestidos em séculos diferentes e com bigodes conforme a época”. E eis-nos perante o inefável Dom Raymundo, poeta e primo de Dom Afonso Henriques. Não foi por acaso que começamos por ele, ao lado de quem combateu contra os leoneses. Por isso aprendemos o mirandês. E o cavaleiro das aventuras percorreu os montes com Vilancete (que outro nome poderia ter o ginete?). O grande garrano da Ribeira de Lima acompanha-nos, seguido do falcão Abelardo, fiel auxiliar da nossa caça. E para compor o magnífico cenário, eis D. Mafalda, vestida a rigor, com os modelos aconselhados por Garrett, o janota, com desenhos de Watteau e Fragonard e a aprovação de Beckford, mas igualmente a princesa Brites, e sobretudo Madeleine, “prima que veio de Paris cheia de cores”, além de Frey Ciro, com cheiro de santidade e da Bruxa de São Semedo. Era lá possível viver-se sem um bruxedo a sério? Há fantasmas? Não há uma dúvida. Eles encontram-se onde menos se espera. Manuel Bandeira demonstrou-o. «E quando estiver cansado / Deito na beira do rio / Mando chamar a mãe-d’água / Pra me contar as histórias / Que no tempo de eu menino / Rosa vinha me contar / Vou-me embora pra Pasárgada». Moral da história? Há sempre mais alguma coisa a contar. Percorra-se, por isso, de novo, cada um dos capítulos do folhetim e veja-se que todos contêm enigmas por resolver…
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E AGOSTO SOSSEGAVA
As festas nas aldeias de então eram festas noivas, e deixavam no ar o acolher das uniões futuras, que seriam marcadas depois das vindimas.
A certeza das uvas compreendia as consequências dos seus encantos, mais relevantes do que nunca, a cada apanha.
O Douro, uma ideia de visual vivo, tinha a sua teoria: o caminho não se explica.
A magnífica obra da odisseia de cada um, imaginava um futuro que podia emigrar para qualquer mundo, movendo-se ou não.
Neste extraordinário cenário, também havia o cesto com o pão e o chouriço, e às vezes, o queijo, que chegavam para dar força aos músculos das costas que carregavam o grande peso dos cestos das uvas, encosta acima, e tinha de chegar, este conduto, até à memória dos dias e noites de frio de inverno e de doridas fomes que teriam lugar.
Também os beijos de agosto e de um setembro a iniciar-se, descobriam detalhes-maravilha que se não contavam, mas que acordavam o coração.
Chamem-lhes o que quiserem que nada muda: são beijos, quando ali, naqueles momentos, nunca nada mais morrerá.
Entre agosto e setembro que espreita, os sonhadores saem da vigília e cumprem-se. É tudo.
Era sempre assim: instantes que se preparavam; instantes que se seguiam, mundos nunca parados, horas, passos, abraços, vozes, inexaustas energias, cada um no seu instante de começo
ou de abandono ao fogo.
Teresa Bracinha Vieira
APÊNDICE D
DEDO DE AURÉLIA (O)
Como poderíamos aproximar-nos do términus deste folhetim, depois da presença tão forte de Carolina Michaëlis, sem chamarmos à ribalta Aurélia de Souza (1866-1922)? É uma das personalidades mais marcantes da arte portuguesa, na transição do século XIX para o século XX. A sua obra assume os grandes temas da pintura europeia da época, sendo de destacar a utilização continuada do autorretrato ou da autorrepresentação que se alarga, à semelhança com o que ocorre com os maiores pintores, à construção teatral e onírica de narrativas que envolvem a casa de família e as pessoas das suas relações. Acrescente-se que outro aspeto original da obra de Aurélia é a prática da fotografia como componente, com percursor grau de autonomia, do extraordinário trabalho da pintura.
Não obstante a sua ligação umbilical ao Porto, Aurélia de Souza nasceu em 1866, no Chile, filha de emigrantes portugueses. A artista mudou-se com a família ainda criança para o Porto, sendo sempre considerada à frente do seu tempo, todavia nunca casou, nem teve filhos.
Aurélia foi aluna brilhante da Academia de Belas Artes do Porto e completou a sua formação com uma estada em Paris onde frequentou a Académie Julian (acompanhada pela sua irmã, também pintora, Sofia de Souza). Bem relacionada com o meio artístico e cultural do Porto, participou em exposições em Lisboa, na atitude determinada de se afirmar como uma pintora profissional num meio predominantemente masculino em que as mulheres artistas em princípio não deviam ambicionar mais do que o estatuto subalterno de amadoras.
Aurélia de Souza é um caso especial no panorama da arte portuguesa de finais do século XIX e inícios de XX. Ao contrário de outras mulheres artistas, com quem compartilhou talento, esforço e coragem, a sua vida discreta apenas foi contrabalançada por uma obra que nos surpreende sempre. Uma recente mostra no Museu Soares dos Reis, com curadoria de Maria João Lello Ortigão de Oliveira, apresentou cinco núcleos. O primeiro, “Vidas”, tratou essencialmente do retrato na obra da pintora, correspondendo ao vetor fundamental da sua produção. No segundo, “Espaços”, integraram-se os locais de intimidade que refletiram o cenário a partir do qual teve lugar grande parte da vida de Aurélia de Souza e dos seus talentos na Quinta da China com vista para o Douro. No terceiro núcleo, propunham-se “Temas”, numa obra muito rica que registou uma grande variedade temática de acordo com a grande amplitude dos seus interesses. Finalmente, o último núcleo da exposição, “Cores”, dedicado à exploração do eu, do autorretrato e da autorrepresentação, permite entender a paleta plural usada pela pintora, perante a variedade das paisagens. E a produção de Aurélia de Souza atinge o auge no célebre “retrato do Casaco Vermelho”, finalizando o percurso de homenagem e tornando visível a vida e obra desta fantástica criadora.
Ao seguirmos a obra multifacetada de Aurélia de Souza, compreendemos simultaneamente a identidade cultural da cidade do Porto, de onde houve nome Portugal, o espírito independente da urbe, que foi a única cidade-estado existente em Portugal, o facto de ter sido, ao longo do tempo, capital política e cultural do País – desde a independência, passando pela crise de 1383, pela expansão, pela inserção europeia do comércio do vinho fino, até à vitória do constitucionalismo liberal, ao desembarque do Mindelo (que permitiu a vitória do Cerco do Porto, mas também deu nome à capital da ilha de S. Vicente em Cabo Verde) ao sucesso da causa de D. Pedro IV, à afirmação da liberdade política, económica e cultural, à Regeneração, à Liga Patriótica do Norte, ao 31 de janeiro, à Águia e à Renascença Portuguesa. A riqueza da obra da artista não foi produto do acaso, como não o foi a de Carolina Michaëlis, de Guilhermina Suggia, de Helena Sá e Costa ou de Agustina Bessa-Luís. Em todos os casos, o papel desempenhado por mulheres pioneiras significou a compreensão de que a sua emancipação tinha toda a coerência com o espírito da cidade invicta. E neste folhetim fantasmático, depois de virmos de Entre-Douro-e-Minho, e tendo palmilhado meio mundo, compreendemos que o dedo indicador de Aurélia aponta no sentido da liberdade e da independência. Eis como a arte pode tornar-se libertadora…
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Ilustração de Ana Ruepp
“Über aller dieser deiner Trauer: kein zweiter Himmel.”
“Por cima de todo este teu pesar: nenhum segundo Céu”
Paul Celan, Die Schleuse (A Eclusa)
Paul Celan, Paul Antschel, nasceu a 23 de novembro de 1920, em Bukovina, no Norte da Roménia, no Império Austro-húngaro. Filho de judeus de expressão alemã, ficou a dever a sua paixão pela poesia à mãe, que lhe recitava Novalis e Rainer Maria Rilke. Em 1926 iniciou a frequência da escola primária alemã, tendo sido depois enviado para uma escola hebraica, a Safah Ivriah. Em 1933, após o bar mitzvah, ritual judaico de entrada na adolescência, aderiu a um grupo comunista, responsável pela publicação de uma revista destinada aos estudantes. Em 1938 deu início a estudos de Medicina, em Paris, transitando depois para a Universidade de Czernowitz, onde ingressou como estudante de Filologia Românica. Em 1940, e no decurso da Segunda Grande Guerra, Bukovina foi invadida pelas tropas russas, enquanto os alemães começavam a enviar judeus para campos de concentração, onde os pais de Célan teriam sido mortos, e para onde ele próprio foi também enviado, permanecendo no cativeiro até 1943. Em 1944 as tropas soviéticas invadiram parte da Roménia, o que levou Célan a refugiar-se em Bucareste, onde trabalhou como tradutor e editor. Mudou sucessivamente de nome, primeiro para Paul Aurel, logo para Paul Ancel, e finalmente para Paul Célan. Em 1947 viajou até Viena, emigrando no ano seguinte para Paris, tornando-se professor de Alemão na École Normale Supérieure, Rue d’Ulm. Em 1951, conheceu Gisèle Lestrange, artista gráfica com quem casou no ano seguinte. Nos dezanove anos que estiveram juntos, trocaram cerca de sete centenas de cartas, apesar de Célan ter mantido uma relação extraconjugal com Ingeborg Bachmann. No final da década de 40, Célan começou a publicar os seus poemas em publicações periódicas da então República Federal Alemã. Publicou o seu primeiro livro em 1948, Der Sand aus den Urnen, a que se seguiu Mohn und Gedachtnis (1952), bem acolhido pela crítica, que considerou o poeta como figura proeminente da literatura do Holocausto. Em 1963 publicou Die Niemandrose, obra característica do seu estilo de sintaxe sincopada e minimalismo radical. Entre as décadas de 50 e 60, foi acusado de plágio relativamente à tradução de poemas de Cocteau, Rimbaud e Pessoa, entre outros e foi vítima de um colapso nervoso. A 1 de maio de 1970 morreu por afogamento no rio Sena. Na sua agenda de bolso havia uma nota nesse dia, na qual estava escrito "Partida Paul".
APÊNDICE C.
COUTO (MIA)
Mia Couto tem entusiasmo por coisas novas, praticando o bom método de "rasgar horizontes". Recordemos o seu poema sobre o curso do tempo. O jogo das palavras permite-nos compreender melhor a substância do tema. «Velho, não. / Entardecido, talvez. / Antigo, sim. / Me tornei antigo / porque a vida, / tantas vezes, se demorou. / E eu a esperei como um rio aguarda a cheia». De facto, que é o andar do tempo senão a compreensão de que só entendemos as raízes, se percebermos o que a elas nos liga? E é esta relação com as raízes que Mia Couto nos transmite. Ao ver as palavras do avesso podemos perceber melhor o que elas representam.
“Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a terra se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia do sonho”. Ah! como é difícil a relação com o sonho. Terra Sonâmbula (1992) tem como pano de fundo os tempos da guerra em Moçambique, da qual se traça um quadro de um realismo forte e brutal. Dentro deste cenário de pesadelo movimentam-se personagens de uma profunda humanidade, por vezes com uma dimensão mágica e mítica, todos vagueando pela terra destroçada, entre o desespero mais pungente e uma esperança que se recusa a morrer. Mia Couto tratou do tema de Terra Sonâmbula de um modo admirável. A crítica literária considera esta, sem dúvida, como uma das melhores obras literárias escritas nos últimos anos em língua portuguesa, sendo considerado como um dos melhores livros africanos do século XX.
Em "O Mapeador de Ausências" (2020), há um poeta “que vem à procura da sua infância" e que "vai começar a perceber que aquilo que é presente para ele no sentido temporal, nasce da ausência de alguém". Vivemos e depois deixamos o nosso espaço e o tempo. Essa ausência mais não representa do que uma continuidade de vida. E Mia Couto recorda o pai - o jornalista e poeta Fernando Leite Couto - entre outras figuras que, apesar de ausentes, permanecem vivas nas suas memórias. A obra é lançada numa altura em que Moçambique é palco de novos confrontos armados, no centro e norte, apelando a que as histórias das vítimas não fiquem por contar. "Acho importante que a informação transmita não só relatórios sobre as agressões, os ataques feitos por terroristas, mas construa a história das pessoas que estão a ser sacrificadas e não podem ser esquecidas".
Mia Couto disse: «Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai quem me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez. Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.”
Mia Couto é um "escritor da terra", escreve e descreve as próprias raízes do mundo, explorando a natureza humana na sua relação íntima e umbilical com a terra. A sua linguagem extremamente rica e muito fértil em neologismos, confere-lhe um atributo de singular perceção e interpretação da beleza interna das coisas. Cada palavra inventada (como o queixa-andar) como que adivinha a secreta natureza daquilo a que se refere, entende-se como se nenhuma outra pudesse ter sido utilizada em seu lugar. As imagens de Mia Couto evocam a intuição de mundos fantásticos e em certa medida surrealistas, subjacentes ao mundo em que se vive, que envolve de uma ambiência terna e pacífica de sonhos - o mundo vivo das histórias. Mia Couto é um excelente contador de histórias. É o único escritor africano membro correspondente da Academia Brasileira de Letras (ABL), eleito em 1998, sendo o sexto ocupante da cadeira nº 5, que tem por patrono Dom Francisco de Sousa. Atualmente Mia Couto é o autor moçambicano mais traduzido e divulgado no exterior e um dos autores estrangeiros mais vendidos em Portugal. As suas obras são traduzidas e publicadas em 24 países.
O encontro com João Guimarães Rosa foi para ele um abalo sísmico. Em “A Terceira Margem”, Mia Couto observou que o escritor mineiro de “Grande Sertão” tornava a oralidade do sertão no modo de se exprimir literariamente, e Mia Couto viu aí uma aproximação natural e necessária. E pode dizer-se que essa familiaridade é marcante na cultura da língua portuguesa da contemporaneidade. «Os livros de João Guimarães Rosa atiravam-me para fora da escrita como se, de repente, eu me tivesse convertido num analfabeto seletivo. Vimos isso já. Para entrar naqueles textos devia fazer uso de um outro ato que não é “ler”, mas que pede um verbo que ainda não tem nome. Mais que a invenção de palavras, o que me tocou foi a emergência de uma poesia que me fazia sair do mundo. Aquela era uma linguagem em estado de transe, como no caso dos médiuns nas cerimónias mágicas e religiosas. Havia como que uma embriaguez profunda que autorizava a que outras linguagens tomassem posse daquela linguagem. Exatamente como o dançarino da minha terra que não se limita a dançar. Ele prepara a possessão pelos espíritos. Ele cria o momento religioso em que emigra o seu próprio corpo». E neste folhetim de fantasmas temos de voltar atrás para entender Diadorim, mas também Binmarder do velho Bernardim e as centenas de personagens que já nos ocuparam neste tempo inesgotável.
«Velho, não. / Entardecido, talvez. / Antigo, sim. / Me tornei antigo / porque a vida, / tantas vezes, se demorou. / E eu a esperei como um rio aguarda a cheia».
De facto, ao ver as palavras às avessas percebemos melhor o que representam.
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Continuamos com os pedidos em nome de Deus feitos pelo Papa Francisco.
4. Em nome de Deus peço uma política que trabalhe para o bem comum.
Penso que a Política, com maiúscula, como diz Francisco, constitui um dos serviços mais prestimosos e também mais exigentes, que quase requer a santidade. Por isso, quando vejo tantos, tantos, tantos... na corrida para um lugar na política, prestando-se até a comportamentos por vezes ridículos, se me perguntam se eu acredito que a maior parte o faz para prestar esse serviço ao bem comum, respondo sinceramente: não. Há outros motivos; disse-o quem sabe, Henri Kissinger: “o poder é o maior afrodisíaco”.
Francisco escreve que acredita numa política que “nunca perde de vista o bem comum, o seu verdadeiro e primordial objectivo”, mas que também sabe que para alguns “a política se escreve com minúscula e se transformou numa má palavra”: “pensa-se nas vantagens, no “quanto me dá”, e aí está “um dos males que mais a danificam: a corrupção”. “Não é ilegal que um ser humano se sinta atraído pelo dinheiro, as viagens em primeira classe, as mansões, mas convoco a que na Política se envolvam só os que podem viver com sobriedade e austeridade no seu dia a dia.”
5. Em nome de Deus peço que se acabe com a loucura da guerra.
Cita Virgílio que há mais de dois mil anos escreveu que “na guerra não há salvação”, para acrescentar: “a guerra é o sinal mais claro da inumanidade”, “um flagelo, que nunca pode resolver os problemas entre as nações, uma matança inútil com a qual tudo se pode perder e que, em última análise, é sempre uma derrota da humanidade.” Pensa que “a sua persistência entre nós é o verdadeiro fracasso da política.” A guerra na Ucrânia mostra-nos “a crueldade do horror bélico.” A guerra “nunca será uma solução; é também uma resposta ineficaz, nunca resolve os problemas que pretende superar. Vemos que o Iémen, a Líbia ou a Síria, só para citar alguns exemplos contemporâneos, estão melhor do que antes dos conflitos?”
E o escândalo dos gastos mundiais com o armamento, “um dos maiores escândalos morais da actualidade”? “Com a guerra há milhões que perdem tudo, mas há muitos que ganham milhões.” Não podemos continuar “condenados ao medo da destruição atómica; ter armas nucleares e atómicas é imoral.” É “necessário repensar a ONU e especialmente o Conselho de Segurança para que estas instituições dêem resposta à nova realidade existente e sejam fruto de um consenso o mais amplo possível.”
6. Em nome de Deus peço que se abram as portas aos migrantes e refugiados.
Francisco lembra que a sua primeira saída de Roma como Papa foi a Lampedusa e diz aos migrantes e refugiados: “nunca vos esqueci”. O pedido que faz está nestes quatro verbos: “acolher, proteger, promover e integrar”: abrir a porta “dentro das possibilidades de cada país”. É realista e previne contra “as redes de traficantes” e a quem é acolhido pede-se “a aceitação indispensável das normas do país que recebe bem como o respeito pelos princípios de identidade deste”.
7. Em nome de Deus peço que se promova e anime a participação das mulheres na sociedade.
Essencial: “As mulheres têm a mesma dignidade que os homens. Em cada um dos cinco continentes. Em cada um dos países. A comunidade internacional não pode continuar a olhar com passividade para as consequências dramáticas de modelos de relação baseados na discriminação e na submissão, que estão na base de que milhares de mulheres e meninas sejam todos os anos submetidas a casamentos forçados, escravidão doméstica e outros ataques à sua dignidade. Outro drama extenso é a mutilação genital feminina. São cerca de três milhões as jovens que a cada ano sofrem esta intervenção”, acrescentando que “é importante que nos impliquemos todos na abertura de espaços às mulheres, se quisermos um futuro fecundo e criativo.”
Aqui, Francisco que me desculpe, mas é preciso perguntar para quando o fim da discriminação das mulheres católicas na Igreja.
8. Em nome de Deus peço que se permita e fomente o crescimento dos países pobres.
Clama contra o escândalo: “As dez pessoas mais ricas do mundo duplicaram as suas fortunas durante a pandemia. O 1% mais rico da população mundial concentra 32% da riqueza do planeta... enquanto a metade mais pobre do mundo, no seu conjunto, não chega aos 2% da riqueza, segundo os dados da Oxfam e do World Inequality Report 2022. Os ricos são cada vez mais ricos; os pobres cada vez mais pobres. Este sistema mata, exclui e concentra.” Este é um sistema doente, “calcula-se que um terço dos alimentos produzidos é desperdiçado”, “quase seis milhões de crianças morrem anualmente devido à extrema pobreza.”
9. Em nome de Deus peço que se universalize o acesso à saúde.
Cita G. K. Chesterton: “A coisa mais poética, mais poética que as flores, mais poética que as estrelas, a coisa mais poética do mundo é não estar doente.” Infelizmente, conclui com Romano Guardini: “o homem moderno não está preparado para usar o poder com acerto”, pois “o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano em responsabilidade, valores, consciência”.
10. Em nome de Deus peço que o seu Nome não seja utilizado para fomentar guerras.
Eu, em relação a um Deus que leve à guerra digo: em relação a esse Deus é obrigatório ser ateu.
N.B. Com os melhores desejos para todos, esta crónica despede-se até 7 de Outubro.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 26 de agosto de 2023
APÊNDICE B.
BARBELA (A TORRE DA)
Quando iniciámos este folhetim, invocámos Ruben A., como eterno fazedor de fantasmas. “A Torre da Barbela” é o melhor romance português sobre fantasmas. Falemos, pois, do seu Autor. "Sedutor fascinante de inteligência e sensibilidade", chamou-lhe Mário Soares. Em bom rigor, a biografia de Ruben Andresen Leitão é digna de Galsworthy. E a sua lógica, um exercício de G. K. Chesterton. Sophia de Mello Breyner Andresen, sua prima direita, recorda o Porto, o Campo Alegre, esse lugar olímpico, com uma inefável ternura: "para uma criança, aquela casa e aquele enorme jardim com os altíssimos plátanos, as tílias, o carvalho, ao lado do ténis, as camélias, o roseiral, o pomar, as adegas, o pinhal, os morangos selvagens, eram um mundo, um reino que em nós permanece como uma inesgotável memória inspiradora". E essa saga da Quinta do Campo Alegre, porque nitidamente romanesca, teve também o dramático de um tiro de pistolão, do fio de armas de fogo mandado instalar por Dona Joana Andresen contra os ladrões, que atingiu o irrequieto Rubinho, deixando-o no território incerto dos mártires. Até que, em março de 1937, faleceu a coluna dorsal daquele mundo, a avó Joana, a "Velha Máquina", que deixou a Ruben, como testamento, a "ânsia desmedida de partir, de romper horizontes".
Ruben é o "sportsman", a promessa do golfe e do "lawn-tennis", que recorda as lições de Adolfo Casais Monteiro. Nas vésperas da Guerra, o jovem incrédulo, em viagem pelo território do drama, pergunta-se: "Guerra?! Pensava eu: que coisa estranha! Guerra? Este mundo quer a Guerra? Para que é que servem os homens inteligentes?". A verdade é que tudo se precipitaria. Agostinho da Silva, o sábio visionário, torna-se grande referência para Ruben… "Trazia livros, deixava-os ficar, como quem deixa ficar maço de cigarros para tentar o vício"… E o vício entrou. Um dia, da boca de Manuel Torre do Valle, "o mais notável tipo da minha geração", ouve dois poemas de Fernando Pessoa, publicados na "Presença", e rende-se a quem passa a considerar como o maior poeta português. E descobre Proust. Novo deslumbramento. Ruben faz admissão a Direito e a Letras. Ao saber da entrada no Convento de Jesus, não tem dúvidas, fica em Histórico-Filosóficas. Mas aí sofrerá o julgamento absurdo de um tal Matos Romão, lente de Psicologia, que o obriga a rumar a Coimbra. "Lisboa fica de luto sem o Rubirosa" e os amigos oferecem-lhe um jantar de despedida nos "Anarquistas"… Torre do Valle está na sombra, mas não aparece. É esse o tempo das grandes leituras ("Eça de fio a pavio, através do António Seabra"), mas sobretudo o do grande arrebatamento pelos modernistas - Rimbaud, Éluard, Sá-Carneiro, Almada… Em Coimbra, funda a primeira República supra-realista em homenagem a Dali, "Babaou - une maison surréaliste".
Tem uma curiosidade intelectual insaciável. Termina o curso. Em Pascal procura "desvendar a luz no campo das trevas" - porque "quando encontramos as 'razões do coração' podemos ter a certeza que dentro de nós qualquer coisa existe que nos transcende". Começa como professor de francês. Ensina, entusiasma os alunos, lê e sonha. Mas vem-lhe a vontade de emigrar. "Emigrava com a saudade de um país geograficamente encantador, inveja dos estrangeiros, mas que à escala humana só com uma lente é possível desvendar a inteligência das coisas, do milagre". A Inglaterra, com que se relaciona, está destruída pela guerra. No King's College conhece Charles Boxer, de quem se torna amigo. O entusiasmo e a sua cultura causam deslumbramento. De Fernão Lopes a Fernando Pessoa, passando pela Geração de 70, Ruben reflete sobre o destino de Portugal… Entretanto, morrera Manuel Torre do Valle, vítima de difteria, na flor da idade e no auge da esperança. É uma perda irreparável. Nas margens do Tamisa, cultiva o inglês, adapta-se ao frio, mata saudades da Pátria, indo buscar ao Aeroporto o seu primo Ruy Leitão e Menez num esplendoroso Rolls-Royce alugado. D. Pedro V serve-lhe de pretexto para frequentar o Castelo de Windsor. Em cada dia que passava mais admirava o reformador-tipo, o nosso primeiro moderno. Ouviam-se as suas "Peregrinações Inglesas" na BBC. Visita Ruy e Menez em Washington, lê Dickens, Dostoievski e Eça, nas margens do Potomac e cada vez mais se convence de que Shakespeare é o primeiríssimo surrealista. Por coincidência, encontra-se com T.S. Eliot… Em 1949, nasce o nome Ruben A., com o primeiro volume das "Páginas" da Coimbra Editora. Mas o segundo volume (1950), caído nas mãos do ditador, vai determinar a ordem para regressar… Para Salazar, "o livro, ou é de um louco ou de um sujeito que, tendo dinheiro para pagar um livro de dislates, se propôs rir-se de todos nós". Os amigos, os colegas ingleses, a gente de bem mexe-se. O ditador retrocede: "o maluco do homem tem habilidade e competência para o cargo". E fica. Mas o mal estava feito. Ruben parte em 1952: "restava-me arrumar as malas, despedir-me. (…) Paga-se muito caro por ter ideias".
Ruben vê-se desempregado. Refugia-se na Embaixada do Brasil, na publicação "Artes e Letras", que coincide com a renovação de Juscelino Kubitschek e com o período rico de abertura e de pujança democrática. O Brasil contemporâneo de Guimarães Rosa é o grande repositório da cultura da língua. Em 1954 sai o "Caranguejo", de que Eduardo Lourenço dirá: "não foi nada senão bicho insólito, entrando às arrecuas e aos pinos na policiada praia lusitana". Tem uma paixão forte pelo património cultural português. António Quadros chamar-lhe-á por brincadeira Dr. Jeckyl e Mr. Hyde, o médico e o monstro - "mas a verdade é que me acuso por ter descurado completamente o Dr. Jeckyl, em exclusivo favor dos imaginosos textos impressionistas, memorialistas ou romanescos do Mr. Hyde, o Monstro, cuja leitura, além de tudo o mais, era divertidíssima".
Escreve das melhores memórias autobiográficas da nossa literatura - "O Mundo à Minha Procura". E nasce "A Torre da Barbela" – romance do absurdo genial nascido em Esteiró."A família Barbela identifica-se com a história de Portugal, com os oito séculos da história de Portugal. Os homens mais notáveis do meu romance (confessa o autor) têm, como os da história de Portugal, as suas estátuas. O que dou eu aos Barbelas? Vida. De noite estão vivos, como qualquer de nós, têm os mesmos problemas e mais um, este irremediável: sabem que vão morrer ao nascer do Sol". Ruben tinha horror à mediocridade. No dizer de Pina Martins, severo julgador, tinha "entusiasmo por coisas novas", insistindo em "rasgar horizontes".
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De 28 de agosto a 3 de setembro de 2023
O falecimento com 94 anos de Hélène Carrère d’Encausse, Secretária Perpétua da Academia Francesa, autora de “L’Empire Eclaté”, (Flammarion, 1978) constitui oportunidade para homenagear uma referência maior da cultura contemporânea.
O falecimento com 94 anos da Secretária Perpétua da Academia Francesa constitui oportunidade de homenagear uma referência maior da cultura contemporânea, pela qualidade da personalidade e da obra da historiadora, mas também por ocorrer num momento em que os acontecimentos ligados à guerra da Ucrânia têm gerado uma perniciosa e injusta desconfiança relativamente à cultura russa, que é riquíssima e não pode confundir-se com as tentações do neoimperialismo de qualquer governação. Hélène Carrère d’Encausse deixou-nos uma obra muito importante, da qual resulta uma ideia fundamental – o reconhecimento da relevância da componente russa na História europeia. Ao contrário de um certo discurso radical russófilo, não é possível compreender a História da Europa e a cultura do velho continente sem o reconhecimento dos grandes autores de origem russa, na literatura, na música, nas artes ou no pensamento. A historiadora agora desaparecida deixou-nos uma obra muito rica, que demonstra a necessidade de construir a Europa do futuro, através de um entendimento da complementaridade das raízes euroasiáticas da nossa cultura da sua base indo-europeia. Haverá alguma dúvida sobre a importância de Tolstoi, Dostoievski, Chestov, Berdiaev, Tchaikovsky, Kandinsky ou Chagall na alma europeia? A guerra fria e a sua evolução perturbaram esse entendimento natural, mas não o podem destruir. Quando H. Carrère d’Encausse foi recebida na Academia Francesa em novembro de 1991, parecia abrir-se um novo horizonte, que o tempo esbateu. Então a empossada afirmou: “Faço parte de uma geração que, chegada à adolescência no final da última grande guerra, viu-se confrontada com uma infelicidade europeia. A Europa estava amputada de uma parte de si mesma, estava-se perante o Ocidente raptado, como afirmou Milan Kundera. Essa era a nossa perspetiva. Sabíamos que o passado estava abolido, e que o pensamento e os génios antigos não podiam ter o direito de cidade, a não ser para legitimar uma utopia assassina. (…) Dezenas de milhares dos nossos semelhantes foram lançados no inferno gelado dos campos, com a horrível e degradante obrigação de proclamar que essa infelicidade era uma verdadeira felicidade”. Então, no modesto lugar de estudiosa da História, a investigadora disse ter-se esforçado para contribuir a fim de que fosse preservada a memória desses homens e povos que ficaram privados dela. Ora, com o fim do império soviético, um sonho de liberdade poderia estar a realizar-se. Mas a académica não tinha demasiadas ilusões. Nada seria simples nesta nova “Primavera dos Povos”, que apenas acabava de nascer. Haveria, por certo, o hábito do ódio que alimentaria muitos conflitos, e por isso, apesar dos escombros, acreditava nos homens de boa vontade, que tentariam, apesar do caos e da miséria, reconstruir um universo onde a dignidade humana recuperasse o seu lugar.
PALAVRAS PROFÉTICAS
Estas palavras soaram a proféticas, já que o tempo recente confirmou a incerteza e o medo…. Nascida em Paris, na família Zourabichvili, a 6 de julho de 1929, Hélène teve uma infância dividida entre a memória grandiosa do tempo dos Romanov e as provações da condição de emigrados pobres da revolução bolchevique. A família instala-se em França, vinda da Geórgia, com passagem por Istambul, depois da invasão da República Democrática da Geórgia pelo exército russo no fim do inverno de 1921. A jovem aprende a ler em francês, mas também em russo. Seu pai, Georges, filósofo diplomado em economia política começa por ser condutor de táxi em Paris, antes de criar uma empresa de importação-exportação em Bordéus, mas o domínio de cinco línguas levam-no a ser intérprete durante a ocupação pelas autoridades alemãs, facto que levará ao seu desaparecimento no fim da guerra. Hélène vem para Paris com sua mãe, vivendo de início na comunidade ortodoxa russa. Nesse tempo, Maurice Bardèche, cunhado de Robert Brasillach, dirá dela: “Tinha uma alma de jovem heroína, mas também era realista, decidida e lúcida”. Estudante bem classificada no Liceu Moliére, obtém uma formação sólida que prossegue no Instituto de Estudos Políticos. Sendo apátrida, obtém a nacionalidade francesa quando chega à maioridade, recordando essa circunstância em 1987 quando participa na Comissão da Reforma do Código da Nacionalidade. Casa-se em 1952 com Louis Carrère d’Encausse e interessa-se pelo estudo dos povos da Ásia Central e dos emiratos uzbeques, desde Alexandre II a Lenine, o que constituirá tema da sua tese de doutoramento, sob a orientação de Maxime Rodinson (1963). A editora Armand Colin publica o estudo sob o título “Reforma e Revolução entre os muçulmanos do Império Russo: Bukhara 1867-1924” (1966). A historiadora aproveita esse tempo para viajar pelas repúblicas periféricas da União Soviética, do Cazaquistão ao Afeganistão, passando por Tachkent, atual capital do Uzbequistão. Os seus estudos revelam-se fundamentais, pelo conhecimento das populações e pelo entendimento aprofundado de meio século do sistema soviético, bem evidenciado na obra “A União Soviética de Lenine a Estaline 1917-1953” (ed. Richelieu, 1972), reeditada em dois volumes pela Flammarion em 1979, centrada no tema “a ordem pelo terror”. Contudo, depois de publicar o estudo sobre a política soviética no Médio Oriente (1955-1975), em 1976, é com a saída do célebre “L’Empire Eclaté” (Flammarion, 1978) que Hélène Carrère d’Encausse se torna uma figura mediática de primeiro plano. Apesar de não se concretizar a sua tese fundamental – o enfraquecimento da União Soviética pela pressão demográfica das repúblicas asiáticas muçulmanas – a verdade é que a contestação política na Polónia com o Sindicato Solidariedade e a ação de Lech Walesa, bem como a eleição de João Paulo II, um polaco, como Papa anunciam mudanças profundas no mundo soviético, que trazem os temas da historiadora para a ribalta. Um significativo conjunto de estudos ilustram a urgência dos temas que a ocupam: “O Poder Confiscado, governantes e governados na URSS” (1980); “O Grande Irmão: a União Soviética e a Europa sovietizada” (1983); “Nem Guerra nem Paz: o Novo Império Soviético ou do bom uso da distensão” (1986), “O Grande Desafio: os bolcheviques e as nações 1917-1930” (1987), além de um estudo menos conhecido, mas essencial, sobre a desestalinização de Krutchev, que mais tarde constituirá novo sucesso – “A Segunda Morte de Estaline” (2006). Mas a fulgurante síntese intitulada “Le Malheur russe: Essai sur le meurtre politique” (Fayard, 1988), se lida atentamente nos dias de hoje, faz luz sobre a crise russa. É verdade que a análise do poder sanguinário russo apresenta lacunas, mas a transposição da experiência soviética para história ancestral do czarismo em “Os Romanov – Uma dinastia sob o reino do sangue” (2013) obriga a tentar entender o nevoeiro espesso que rodeia a ação de Vladimir Putin. Trata-se de uma situação muito complexa, a exigir a recusa de qualquer simplificação. Foi Henri Troyat o grande defensor da eleição de Hélène Carrère d’Encausse para a Academia, sendo eleita em 1990 e recebida poucos dias depois da morte da União Soviética (1991). Para o punho da sua espada, da autoria do artista da Geórgia Goudji, escolhe o versículo bíblico “Bem-aventurados os pacíficos”. Mulher de saber e autoridade deixa na sua obra vasta muitas pistas relevantes para a compreensão da gravíssima crise europeia e para as suas saídas, obrigando à recusa do reino do sangue e à salvaguarda da dignidade, tão esquecida… Grande mulher das artes e da cultura, como afirmou Jack Lang, manteve uma coerência extrema no seu pensamento sobre a necessidade de pensar no futuro da Europa devendo ser um fator essencial de paz, devendo estreitar-se os laços culturais em todo o continente, com recusa do regresso da lógica do “homo sovieticus” e da lembrança em Praga de 1968…
Guilherme d'Oliveira Martins
APÊNDICE A.
ALMEIDA (GERMANO)
O Folhetim de Verão de 2023 está a chegar ao fim. A grande heroína do ano está a ser Carolina Michaelis de Vasconcelos com milhares de gostos e sobretudo o fantástico reconhecimento da sua importância. É uma justíssima homenagem às mulheres. E Joaninha dos olhos verdes está na memória de todos. Mas há fantasmas que ainda estão na fila para entrar. E a verdade é que até ao dia 31 de agosto ainda muito vai acontecer. Já falámos de Cabo Verde e da “Claridade”, mas da Macaronésia ainda fica algo para acrescentar. Vitorino Nemésio foi acarinhado por todos, mas o Atlântico, que esteve logo na letra A não pode ser esquecido.
Hoje, voltamos às ilhas. Germano Almeida é o biógrafo de Cabo Verde. Não podemos compreender a vitalidade cultural do arquipélago e do país sem ler hoje o autor de Do Monte Cara vê-se o Mundo. É verdade que Baltazar Lopes é uma espécie de patriarca da “caboverdianidade” ou que Corsino Fortes é um poeta que sente como ninguém a identidade dessa extraordinária cultura da Macaronésia do Sul, mas Germano busca a naturalidade, a alegria de viver, a ironia, a arte de contar, a diversidade de tipos populares e a sensualidade dos corpos e das relações humanas. Não esqueço o dia que nos encontrámos na Praia, numa iniciativa do Centro Nacional de Cultura, e falámos dum tempo que estava para vir, em que de um modo natural a literatura cabo-verdiana seria reconhecida como exemplo maior na diversidade da língua portuguesa. Esse tempo chegou primeiro com o reconhecimento de Arménio Vieira no Prémio Camões e depois com o próprio Germano Almeida. A vitalidade cultural de Cabo Verde augurava essa evolução como natural. Desde O Testamento do Sr. Napomuceno da Silva Araújo não há qualquer dúvida sobre a qualidade excecional da obra e do autor. E em imaginação, percorremos o caminho iniciático do protagonista. “Atravessou a Rua de Lisboa, o Largo do Palácio e subiu ao Forte de Cónego trotando atrás de Jovita e extasiando-se com a maravilha que era o Mindelo, nunca vira tanta gente junta e sentia-se envergonhado de estar descalço atrás daquela carregadeira que calçava sandálias de plástico. Naquele dia não saiu de casa, temeroso de se perder na cidade enorme ou ser atacado por bandidos que sabia existirem e perseguirem as pessoas de dia ou de noite…”.
Ah, o Mindelo, cidade de história conturbada que Germano Almeida aprendeu a conhecer de trás para a frente. S. Vicente foi povoada tardiamente. Tempo houve em que os piratas usavam a baía do Porto Grande como local de descanso, antes de avançarem para temíveis investidas. O povoamento foi lento, vindo de Santo Antão e S. Nicolau. E foi a memória da gloriosa revolução liberal, em que Garrett e Herculano estavam entre os bravos de Pampelido, que deu o nome à extraordinária cidade que o escritor ama. Aqui acabou a escravatura. E essa invocação do Mindelo mítico é o melhor elogio da liberdade, como recusa a subalternização ou menoridade. E assim se tornou centro de irradiação de uma especial riqueza cultural que aproveitou as potencialidades do entreposto mercantil. Em Do Monte Cara vê-se o Mundo a personagem viva é a própria cidade do Mindelo e a sua gente. O velho Pepe é o cicerone, funcionando como um verdadeiro revelador e encenador de tudo o que vai acontecer. Júlia, Guida, D. Aurora, a Professora Ângela, o Trampinha – todos ilustram uma realidade humana muito rica, com uma ironia inesquecível, sob o olhar divertido e sábio do Monte Cara, em frente à cidade. E eis-nos embrenhados no dédalo que conduz ao Fortim d’El-Rei, à Alfândega Velha ou a Praça Nova, vibrante ao som do funaná. Aqui Nhô Baltas, Manuel Lopes e Jorge Barbosa criaram a “Claridade” – onde Chiquinho começou a ser publicado, com a originalidade cabo-verdiana, “excluindo os portugueses de toda e qualquer discussão referente ao destino das ilhas e dos homens”, como disse Alfredo Margarido.
O percurso de Germano Almeida começou na ilha da Boa Vista, onde aprendeu a viver entre a ruralidade e a cultura urbana. Em Regresso ao Paraíso disse que “da Boa Vista da minha infância pouco mais já resta que o prazer de usar o tempo. É uma noção do tempo em que o hoje e o amanhã, o agora e o mais daqui a bocado, continuam significando a mesmíssima coisa. E quando para lá ia de férias ia sobretudo em busca desse tempo sem relógio, que é nosso está por nossa conta”. O futuro escritor fez a tropa em Angola, numa zona de confronto. Com vinte cinco anos, graças às qualidades da sua escrita consegue uma providencial bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian que lhe permitiu estudar Direito em Lisboa. Em 1977 regressa à pátria e em 1983 funda com Leão Lopes e Rui Figueiredo a revista “Ponto e Vírgula” – onde publicou contos com o pseudónimo de Romualdo Cruz… Seguiu-se uma entrada natural no mundo literário, com obras reveladoras duma originalíssima maneira de usar a língua portuguesa de Cabo Verde, na tradição dos seus melhores compatriotas. A Ilha Fantástica é constituída por um conjunto de textos, saídos na revista “Ponto e Vírgula”, essenciais para a compreensão de uma cultura, onde o picaresco se associa à apetência de compreender e revelar sentimentos. O Fiel Defunto – confirmou a capacidade para privilegiar a ideia do “divertimento” com as pequenas coisas… E alguém pergunta ao “fiel defunto”: “mas deves estar a fazer alguma coisa para assim te divertires durante tanto tempo”. “Sim, respondia galhofeiro, ouço música, navego na internet, espreito o facebook, onde aprendo muito sobre as pessoas em geral e as pequenas vaidades que lhes enchem a alma, leio livros, falo com amigos, faço má-língua, digo mal das criaturas de quem não gosto, cuido das plantas do meu jardim que nunca estiveram tão bonitas de tão bem tratadas” … E assim se confessa imune aos vícios, incapaz de escrever o que não tem para dizer e apenas disponível para deixar passar o tempo, com uma cana de pesca na mão, “sem sequer desejar apanhar um peixe para não ter a maçada de o transportar para casa” … quanto à língua portuguesa, Germano diz ser indispensável um ensino rigoroso do crioulo e o português deve ser muito bem aprendido como língua segunda. A alfabetização em crioulo obriga a cuidados especiais, para evitar barreiras entre ilhas ou comunidades. E é fundamental que o português não seja sentido como língua estranha. Daí Germano Almeida insistir “na necessidade de nós em Cabo Verde dominarmos o português até mais que os portugueses. Com o crioulo não vamos longe, não saímos das ilhas. Com o português vamos a toda a parte".
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POEMA DE ANTÓNIO CARLOS CORTEZ
Depois da carne
Depois da carne
É que os ossos se magoam
E o rosto
Recupera da fadiga
E das memórias
Depois da carne
Quando os dedos se encontram
Sabemos que são outros
Os rostos mais reais
Que nos povoam.
in À Flor da Pele, 2008
After the flesh
It’s after the flesh
That the bones hurt
And the face
Recovers from fatigue
And from memories
After the flesh
When our fingers meet
We know the most real faces
That inhabit us
Are those of others.
© Translated by Ana Hudson, 2011