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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA


(Ilustração de Sarah Afonso e Almada Negreiros)


A. ATLÂNTICO, AFONSO HENRIQUES E SANTO ANTÓNIO


A iniciar este folhetim pegamos na palavra antológica de João Bénard da Costa, há dois dias no nosso blogue. Falava ele do “Fantasma Apaixonado” e de Mrs. Muir no filme celebrado de J. Mankiewicz de 1947. De facto, vamos entrar num domínio de histórias de fantasmas. Este abecedário seguirá a ordem das suas letras, e procurará encontrar as referências da nossa cultura, começada neste ocidente peninsular e depois espalhada pelo mundo. Para nos compreendermos, que outro método poderíamos seguir senão o de ir ao encontro dos velhos espíritos? E Unamuno muito se admirou por haver tantas Alminhas nas encruzilhadas das nossas estradas e caminhos… Somos Finisterra, e é o Atlântico, o Mar Oceano, que primeiro referenciamos. Mar, que também foi batizado no feminino, La Mar, como “Flor de la Mar” de Albuquerque. O Atlântico não é pessoa, mas é personagem; tão importante, que o nosso primeiro rei a considerou essencial. Em lugar de alimentar sonhos continentais, Afonso Henriques preferiu partir em direção ao Sul. O conflito de S. Mamede, com sua Mãe, foi bem diferente do que por aí se diz e teve a ver com uma atitude de elementar realismo. Mais importante do que se meter nas ambições leonesas, asturianas e galegas, haveria que abrir caminhos em terras moçárabes, procurando pôr ordem nos reinos taifas de fronteiras incertas, fazendo de Coimbra eixo de gravidade e da linha do Tejo um objetivo seguro. E eis que os três AA se encontram: o próprio Mar Oceano que limita e abre horizontes até ao Promontório Sacro e depois às Ilhas Encantadas; o primeiro Rei, Afonso, que transformou a vontade em, Povo, como construção, aberta e livre, e Frei António, o mais popular de todos os santos. Ainda que Pádua seja tantas vezes referida para identificar o mais célebre dos santos portugueses, a verdade é que é Portugal que Frei António referencia. Natural de Lisboa foi exemplo na Escola de Coimbra de Santa Cruz. Motivado pelos mártires de Marrocos tornar-se-á o primeiro dos teólogos franciscanos, modelo único de taumaturgo com excecional carisma popular – desde as causas perdidas a ser casamenteiro, de cidadão a portador de paz. O humanismo universalista simboliza-o e projeta a cultura como projeto e expressão múltipla da dignidade humana. E, simbolizando ainda o Atlântico, como fronteira natural da terra portuguesa, reza a antiga lenda que ao romper da aurora de 14 de setembro de 1182, D. Fuas Roupinho, alcaide do Castelo de Porto de Mós e Almirante da Esquadra do Tejo, nomeado por D. Afonso, caçava junto ao mar, envolto por um denso nevoeiro perto de suas terras, quando avistou um veado que começou a perseguir. O veado, que era o demo, dirigiu-se ao cimo de uma falésia e D. Fuas, no meio do nevoeiro, isolou-se dos seus companheiros, e depressa chegou ao topo do penhasco, à beira do precipício. Estava mesmo ao lado da gruta onde se venerava Santa Maria e o Menino Deus. Rogou então, em alta voz: Senhora, Valei-me! E de imediato o cavalo estacou, fincando as patas no penedo suspenso sobre o vazio, hoje chamado Bico do Milagre, salvando-se o cavaleiro e a sua montada da certa morte…

>> Abecedário da Cultura da Língua portuguesa no Facebook

 

NOTAS SOBRE A IGREJA CATÓLICA EM PORTUGAL

    


A poucos dias do início da Jornada Mundial da Juventude, deixo aí, também a partir de perguntas de jornalistas, inclusivamente estrangeiros, algumas notas dispersas sobre a Igreja em Portugal.


Genericamente, diria que o seu estado geral é um pouco estagnado, falta dinamismo. Entre os pontos mais positivos, parece-me que é de justiça sublinhar, disso ninguém duvidará, o papel social que a Igreja presta aos mais vulneráveis, nomeadamente através das IPSS (instituições particulares de solidariedade social), um papel insubstituível, mas também através de outras instituições como o Banco Alimentar, as conferências vicentinas de São Vicente de Paulo… A Igreja desempenha também um papel importante, decisivo, na salvaguarda de valores essenciais, como a família, a dignidade humana, a solidariedade…


Aspectos negativos. Pouco dinamismo pastoral, um clero envelhecido… Sublinho que a Universidade Católica Portuguesa com a sua Faculdade de Teologia deveria desempenhar um papel mais activo e dinamizador na evangelização e quanto a questões de ética, nomeadamente de bioética…


Quero sublinhar que a Igreja Católica é ainda uma realidade pública reconhecida mesmo pelos media.


Neste contexto, é importante apresentar dados estatísticos. Segundo o Censos de 2021, os católicos constituem a grande maioria da população: 80,2% declara-se católica (em 2011, eram 88%); 14% diz não seguir nenhum credo religioso.  Um outro estudo, de 2022, sobre “Jovens, fé e futuro” revela que 56% dos jovens entre os 14 e 30 anos se afirmam católicos e 34% dizem rezar regularmente e participar em celebrações. Mariano Delgado, Director do Instituto para o estudo das religiões e o diálogo inter-religioso na Universidade de Friburgo/Suíça, faz notar que “quase nenhum outro país europeu conta com estatísticas tão favoráveis para a Igreja católica”. Note-se, por exemplo, que, segundo uma sondagem recente, mais de um terço da população italiana, 37%, se declara “não crente”.


Claro que a prática religiosa tende a cair devido à secularização e também ao modo das celebrações. Precisamos, também neste nível, de uma reforma profunda. As celebrações têm de ser mais vivas, pois correm o risco de serem um ritual seco. As homilias são, de modo geral, um desastre. Neste contexto, julgo que bispos e padres deveriam aceitar o desafio de passar para o outro lado, isto é, disfarçados, assistir entre os fiéis de modo a sentir o que levam dessas celebrações, tomando consciência de certo vazio.


Entre os maiores desafios está certamente uma secularização crescente, no sentido de a religião já não ser tão determinante como era para a autocompreeensão e realização das pessoas nas diferentes esferas da vida. Assim, cada vez mais há menos casamentos pela Igreja e aumenta o número de divórcios… O Estado legalizou o aborto, acaba de legalizar a eutanásia activa…


Mas tenho a convicção de que a Igreja ainda encontra um lugar no mundo moderno, um lugar central, pois é portadora da mensagem decisiva do Evangelho, a melhor notícia que a Humanidade ouviu ao longo da sua História. Como diz a própria palavra Evangelho, que vem do grego: notícia boa e felicitante. Jesus entregou à Humanidade o Evangelho, essa notícia boa e felicitante: Deus é bom, é Pai e Mãe, ama todos os seus filhos e filhas e o seu maior interesse é a alegria, a felicidade, a plena realização de todos. Portanto, a Igreja transporta consigo não só o mandamento da parte de Deus da justiça e da paz, mas também a mensagem do sentido último da existência: não caminhamos para o nada, mas para a plenitude da vida em Deus.


Assim, a transformação da Igreja só pode realizar-se verdadeiramente, se cada um, a começar pelos bispos, padres, cardeais, perguntar a si próprio: acredito verdadeiramente nesta mensagem?, ela é boa para mim?, para mim? De facto, só se a considerar existencialmente boa e felicitante para mim, poderei ir convictamente entregá-la aos outros também.


Como é natural, a confiança na Igreja viu-se abalada por causa dos abusos sexuais. Como diz um estudo acabado de ser publicado, 68% dos portugueses pensa que a imagem da Igreja  piorou no último ano precisamente ao ter de lidar com os resultados da investigação sobre os abusos sexuais.  Ao mesmo tempo, o estudo mostra que 72% achou bem ou mesmo muito bem que a Conferência Episcopal Portuguesa tenha criado a Comissão Independente para um estudo independente dos abusos da Igreja desde 1950, mas 42% pensa que a mesma Conferência Episcopal respondeu mal ou muito mal aos resultados que a Comissão apurou, enquanto 33% pensa que a sua actuação  foi “nem boa nem má”.


Numa outra sondagem sobre a confiança nas instituições, em relação à Igreja Católica 42% dizem tender a confiar e 53% tender a desconfiar.


É importante fazer notar que faz parte do programa da visita do Papa Francisco, para presidir à Jornada Mundial da Juventude, um encontro com um grupo de abusados.


Significativamente, desta mesma sondagem resulta que 79% crê que a Jornada Mundial da Juventude, com a presença do Papa Francisco, terá um impacto mais positivo do que negativo.   Pessoalmente, também penso isso e que, com a presença de mais de um milhão de jovens vindos de todos os Continentes e quase todos os países, de diferentes cores, línguas, culturas e credos, ela poderia constituir uma espécie de micro-ensaio de como um mundo em diálogo, em justiça e em paz é possível.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 29 de julho de 2023