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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA


(Ilustração – “Paisagem com Caminho” de Lima de Freitas. Fund. Gulbenkian)


B.
BERNARDIM RIBEIRO


«Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava». Bernardim Ribeiro é um dos grandes mistérios da nossa literatura. Pouco se sabe e muito se especula. Foi amigo de Francisco Sá de Miranda, mas “Menina e Moça ou a novela Saudades” (Ferrara, 1554) é um verdadeiro símbolo da nossa tradição lírica, bucólica e romanesca… Eduardo Lourenço considerou o grande enigma razão suficiente para não se aventurar no seu comentário. Para Pina Martins, a história de “Menina e Moça” é uma novela sentimental. «Há que lê-la e não subentende-la. Há que interpretá-la à luz das categorias do seu tempo e não do nosso…». O primeiro romance principia pelo monólogo de uma jovem que não conhecemos nem de nome nem de condição. A jovem queixa-se, como numa cantiga de amigo, de uma dolorosa separação e de mudanças que a atiraram para o desterro de um monte solitário, onde vive há dois anos. E conta o que ocorreu dias antes, estando numa solidão sem medida. Viu a manhã formosa por entre os prados do vale, sentou-se debaixo de um freixo, à beira-rio, e não faltou muito que numa ramada viesse poisar um rouxinol. Cantou um triste trinado e caiu morto na corrente larga da água, que o arrastou para longe. Aproximou-se então uma mulher idosa, com quem a jovem encetou um diálogo sobre as desventuras de cada uma. E esta contou-lhe a perdição daquele lugar, em que dois amigos acabaram mortos à traição, deixando as suas amadas sós, à sua espera. Há um amor cavalheiresco, que lembra a saga de Amadis de Gaula, com duas narrativas, de Lamentor e de Avalor. O cavaleiro Lamentor, chega de longes terras, acompanhado de Belisa, dele grávida, e de Aónia, duas irmãs. Belisa dá à luz Arima, mas morre na sequência do parto. Entretanto, em momento inesperado e trágico, Lamentor mata o Cavaleiro da Ponte e chega um desconhecido, Binmarder (anagrama do autor), que se apaixona por Aónia e pela sua extraordinária beleza. Há, assim, três núcleos deste misterioso enredo: Lamentor e Belisa, que constituem o início do relato, Binmarder e Aónia; e Avalor e Arima… Binmarder e Avalor marcam a narrativa com uma geração de permeio, de Aónia à sobrinha Arima, órfã de Belisa. Aónia e Arima encontram destinos semelhantes; amam e são amadas por homens comprometidos, com Aquelísia e a Senhora Deserdada. Binmarder e Avalor estão condenados a viver o sofrimento da separação. E temos um caleidoscópio de amores: Aquelísia ama Binmarder que ama Aónia, obrigada a casar com um vizinho e a Senhora Deserdada ama Avalor que ama Arima. Encontramos, assim, um mundo de amores e desencontros – num romance que termina com uma dama ultrajada nos seus desejos amorosos, que pede ajuda a Avalor… O amor e o sofrimento estão, assim, sempre presentes. E é a saudade ou soydade que faz Lamentor ficar para sempre ligado à memória de Belisa, como Avalor à esperança de encontrar Arima. A saudade, como lembrança e desejo, é sofrimento e esperança, feitos de separação e ânsia de regresso, numa dimensão religiosa e lírica que Pina Martins considera cristã, e que Helder Macedo vê à luz da tradição judaica. Bernardim é, pois, um símbolo da tradição antiga do amor saudoso dos trovadores provençais…

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

Nas próximas semanas Ana Ruepp publicará diversas ilustrações subordinadas a um tema ou uma citação.
Hoje, temos Hermann Broch.


“...por cima de todo o sonho que o homem sonha, flutua uma claridade do cósmico…”, Hermann Broch.

 


Essa necessidade de transcendência e de liberdade foi a grande marca de Hermann Broch, um dos grandes intelectuais europeus do século XX. Escritor austríaco de etnia judaica, nasceu a 1 de novembro de 1886, em Viena. Filho de um industrial têxtil, recebeu os fundamentos de uma educação técnica, tendo servido durante a Primeira Grande Guerra na Cruz Vermelha austríaca. Pelos cafés de Viena tomou contacto com figuras da intelectualidade austríaca, como Robert Musil, Franz Blei e a jornalista Ea von Allesch. Broch romperia com Milena Jesenská, que começou uma relação com o escritor Franz Kafka, para se juntar a Ea, mais velha onze anos. Em 1909 tornou-se crítico do Moderne Welt, sobretudo graças aos contactos de Ea, que o encorajou nos seus esforços literários. Ao cabo de muitos anos de trabalho na empresa da família, decidiu, aos quarenta anos de idade, dedicar-se por completo à escrita. Divorciou-se e ingressou na Universidade de Viena como estudante de Matemática, Filosofia e Psicologia, de 1926 a 1930. Em 1927 havia resolvido vender a fábrica. Aos quarenta e cinco anos de idade publicou o seu primeiro romance em formato de trilogia, “Os Sonâmbulos” (1931-32), que tratava da desintegração dos valores culturais na Alemanha de 1880 a 1920. No mesmo dia da anexação da Áustria à Alemanha pelas tropas alemãs, Broch foi detido para interrogatório. Auxiliado por James Joyce e outros escritores amigos, conseguiu uma autorização para emigrar da Áustria. Mudou-se primeiro para Londres, depois para a Escócia e, finalmente, para os Estados Unidos da América, onde se fixou em Princeton. Por falta de títulos académicos, foi-lhe negada uma posição nas universidades de Princeton e de Yale. Recebeu, no entanto, bolsas de várias fundações. A partir de 1940 envolveu-se na ajuda humanitária a refugiados, pelo que muito dos fundos que recebeu foram distribuídos por outros refugiados de guerra europeus. Em 1945 concluiu, nos Estados Unidos, “A Morte de Virgílio”, obra constituída por quatro partes - a água, a terra, o ar e o fogo - que é considerada um dos grandes monumentos da literatura do exílio. Passou os últimos anos da sua vida próximo da Universidade de Yale. Tornou-se, em 1949, docente do Saybrook College. Faleceu na véspera de uma viagem planeada à Europa, vítima de um ataque cardíaco, a 30 de maio de 1951.