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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA


D. DEUSES (CONCÍLIO DOS)


“Chiquinho” pôs-nos perante o dilema do ficar ou do partir – eis a grande dúvida, neste ponto do nosso folhetim… Se falamos de enigmas numa história de fantasmas, nada melhor do que seguir caminho até ao Olimpo, para nos encontrarmos perante um curioso debate entre espíritos supremos sobre esse dilema de seguir em frente ou de tornar atrás. Para chegar ao Olimpo é preciso passar por “perigos e guerras esforçados, mais do que permitia a força humana”. E damo-nos com um Concílio. Eu sei que podemos escrever Consílio, mas mantemos a fórmula comum, mesmo que esta se confunda com a reunião de um areópago religioso. Olimpo é mais do que isso, e mantem-se a letra c… “Já no largo Oceano navegavam, as inquietas ondas afastando” … “…Os Deuses no Olimpo luminoso / onde o governo está da humana gente / Se ajuntam em concílio glorioso”. E ouvimos a voz de Júpiter, a defender os portugueses, afirmando serem estes um povo de grande valor, como ficou demonstrado no tempo largo. É a coragem dos portugueses que os leva a navegarem em mares desconhecidos, em frágeis naus, enfrentando ventos e tempestades. Que diz o pai dos deuses? “Que sejam, determino, agasalhados / nesta costa africana como amigos, / E, tendo guarnecida a lassa frota / tornarão a seguir a sua longa rota” (C. I, 29). E eis que irrompe a voz de Baco, opondo a sua voz à decisão de Júpiter, argumentando que os portugueses se tornariam superiores a ele próprio no Oriente. Vemos aqui o confronto da primeira globalização. Baco teme a mudança. Júpiter compreende o desenho do novo mundo. Mas, depois de Baco, ouvimos Vénus, belamente representada na gravura de Desenne da edição de 1837 de “Os Lusíadas” do Morgado de Mateus. Vénus defende os portugueses porque se trata de gente que se assemelhou ao povo romano, em coragem e valentia. E assim com o contributo dos portugueses seria Roma, por certo, pela fama e pela língua, venerada também no Oriente. “Ou porque o amor antigo o obrigava / ou porque a gente forte o merecia”. E Marte também defende a estirpe dos descendentes de Luso ou Lisa, de Baco filhos ou companheiros, porque achava que eles bem o mereciam e, deste modo, Vénus estava na plena razão. Por isso, Marte ordena que se façam respeitar as ordens de Júpiter pois Baco não tinha razão, agindo por despeito, devendo os descendentes de Luso ou Lisa merecer recompensa. E Camões escreve no mármore puro: “E tu Padre de grande fortaleza, / Da determinação que tens tomada / Não tornes por detrás, pois é fraqueza / Desistir-se da cousa começada. / Mercúrio, pois, excede em ligeireza / Ao vento leve e à seta bem-talhada. / Lhe vá mostrar a terra, onde se informe / Da Índia e onde a gente se reforma”. Mas a história fantasmática prossegue, e Baco, inconformado, instiga o governador de Moçambique contra os portugueses e põe a bordo um falso piloto, mas graças a Vénus, às nereidas, a Mercúrio e à coragem de Gama, os portugueses chegam a Melinde. Inicia-se o relato ao rei Melinde da história de Portugal, “onde a terra se acaba e o mar começa” e das origens, de Viriato até à morte de Inês de Castro. É claramente o partir que prevalece e o longo e belo episódio da Ilha dos Amores corresponde à decisão de Vénus de premiar os navegadores por tal decisão, numa ilha paradisíaca.  E oiçamos o soneto: “Busque Amor novas artes, novo engenho, / para matar-me, e novas esquivanças; / que não pode tirar-me as esperanças, / que mal me tirará o que eu não tenho…”. Luís de Camões representa a maturidade poética da língua portuguesa. É o supremo cultor do idioma. Toda a obra do grande épico e lírico constitui oportunidade para lidarmos com uma riquíssima convergência entre o amor e a beleza, os maravilhosos pagão e cristão, servidos pelo domínio exemplar da palavra e da imagem. E prosseguimos assim a caminhada entre espíritos, como se estivéssemos numa máquina do tempo…

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CRÓNICAS PLURICULTURAIS


144. NÃO SOMOS A MEDIDA DE TODAS AS COISAS (I)


O início do Livro de Job, texto da Bíblia, diz que Job, da terra de Us, era um homem bom, rico, justo e temente a Deus, afastando-se do mal. Tinha sete filhos, três filhas, sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois, quinhentas jumentas e uma grande quantidade de escravos. As suas ordens eram cumpridas e as suas virtudes recompensadas. Um dia foi atingido pela desgraça e sujeito a provações. Os sabeus roubaram-lhe os bois e as jumentas, passando os servos a fio de espada. Os raios reduziram a cinzas as suas ovelhas e pastores. Os caldeus ficaram com os camelos. Um furacão, vindo do deserto, assolou a casa do seu filho primogénito, matando-o, e aos seus irmãos e irmãs. O corpo de Job cobriu-se de uma lepra maligna e, sentado e meditando entre ruínas, limpava as feridas e abandonou-se ao pranto. A mulher disse: “Persistes ainda na tua integridade? Amaldiçoa a Deus e morre de uma vez!” Respondeu-lhe Job: “Falas como uma insensata. Se recebemos os bens da mão de Deus, não aceitaremos também os males?”. Os amigos tinham como resposta para tamanho sofrimento os seus pecados. Deus não poderia ter dado a morte aos seus descendentes sem que estes e o pai tivessem agido mal: “Deus não abandona o homem íntegro, nem dá a mão aos malvados”.

Job rejeitou estas alegações, que considerou de charlatães e fazedores de mentiras. Se nunca fora um homem mau, qual o porquê deste infortúnio?    

Após várias interpelações dirigidas a Deus, eis que: “Então, do seio da tempestade, o Senhor respondeu a Job e disse:  

Quem é esse que obscurece os meus desígnios com palavras insensatas?

Cinge os rins como um homem; pois vou interrogar-te e tu responder-me-ás.

Onde estavas, quando lancei os fundamentos da terra?

Diz-mo, se a tua inteligência dá para tanto. 

Sabes quem determinou as suas dimensões?  

Quem pôs diques ao mar, quando, impetuoso, saía do seu seio materno?...

Alguma vez, na tua vida, deste ordens à manhã e indicaste o seu lugar à aurora, para que ela alcançasse as extremidades da terra e expulsasse dela os malfeitores?  

De que lado habita a luz? Qual o lugar das trevas? …  

Qual a maneira como se divide o relâmpago e por onde se expande o vento leste pela terra? 

Quem abre o caminho aos aguaceiros e as rotas ao trovão? …  

Terá a chuva um pai?   

Quem gera as gotas do orvalho?

De que seio sai o gelo?  

Conheces as leis do céu? A tua ordem faz surgir os relâmpagos?

És tu que dás força ao cavalo? … É pela tua sabedoria que o falcão levanta voo? … Acaso é à tua ordem que a águia levanta voo? …    

Queres condenar-me para te justificares? Tens um braço forte como o braço de Deus?”.   

Trata-se de um pequeno excerto de um livro do Antigo Testamento, causa de várias interpretações, desde a censura ao implacável poder de Deus, passando pela ética da compaixão, até à aceitação da nossa pequenez perante o que é mais forte, incluindo a incapacidade de justificar e superar acontecimentos que escapam às leis atuais do conhecimento humano. Desafiando-nos e podendo provocar ira, ressentimento, fragilidade e resignação (qual Prometeu e Sísifo), há que o interpretar e compreender, o que tentaremos.


04.08.23
Joaquim M. M. Patrício