Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Ficámos na paisagem etérea do Olimpo, contando com o inesperado companheirismo de umas vetustas personagens que nos enchem ainda hoje de entusiamo, e que são as divindades greco-latinas. De súbito, recorremos ao Cronoscafo. Esse mesmo, o de Mortimer, a lembrar H. G. Wells. E, num ápice chegamos a Paris, no final do século XIX. E lemos José Maria Eça de Queiroz num clássico: «Era de novo fevereiro, e um fim de tarde arrepiado e cinzento, quando eu desci os Campos Elísios em demanda do 202. Adiante de mim caminhava, levemente curvado, um homem que, desde as botas rebrilhantes até às abas recurvas do chapéu de onde fugiam anéis dum cabelo crespo, ressumava elegância e a familiaridade das coisas finas. Nas mãos, cruzadas atrás das costas, calçadas de anta branca, sustentava uma bengala grossa com castão de cristal. E só quando ele parou ao portão do 202 reconheci o nariz afilado, os fios do bigode corredios e sedosos. - Ó Jacinto! - Ó Zé Fernandes! O abraço que nos enlaçou foi tão alvoroçado que o meu chapéu rolou na lama. E ambos murmurávamos, comovidos, entrando a grade: -Há sete anos!... E, todavia, nada mudara durante esses sete anos no jardim do 202! Ainda entre as duas áleas bem areadas se arredondava uma relva, mais lisa e varrida que a lã dum tapete. No meio, o vaso coríntico esperava abril para resplandecer com tulipas e depois junho para transbordar de margaridas. E ao lado das escadas limiares, que uma vidraçaria toldava, as duas magras Deusas de pedra» … Demos um salto imenso no tempo. Nada é mais preciso!
«- Eis a Civilização! Jacinto empurrou uma porta, penetramos numa nave cheia de majestade e sombra, onde reconheci a Biblioteca por tropeçar numa pilha monstruosa de livros novos. O meu amigo roçou de leve o dedo na parede: e uma coroa de lumes elétricos, refulgindo entre os lavores do teto, alumiou as estantes monumentais, todas de ébano. Nelas repousavam mais de trinta mil volumes, encadernados em branco, em escarlate, em negro, com retoques de ouro, hirtos na sua pompa e na sua autoridade como doutores num concílio. Não contive a minha admiração: -Ó Jacinto! Que depósito! Ele murmurou, num sorriso descorado: -Há que ler, há que ler.... (…) -Vê aí o telégrafo!... Ao pé do divã. Uma tira de papel que deve estar a correr. -E, com efeito, duma redoma de vidro posta numa coluna, e contendo um aparelho esperto e diligente, escorria para o tapete como uma tênia, a longa tira de papel com caracteres impressos, que eu, homem das serras, apanhei, maravilhado. A linha, traçada em azul, anunciava ao meu amigo Jacinto que a fragata russa Azov entrara em Marselha com avaria! (…) Depois parei em frente da estante que me preocupava, assim solitária, à maneira duma torre numa planície, com o seu alto farol. Toda uma das suas faces estava repleta de Dicionários; a outra de Manuais; a outra de Atlas; a última de Guias, e entre eles, abrindo um fólio, encontrei o Guia das ruas de Samarcanda. Que maciça torre de informação! (…) Escapei, respirando, para a Biblioteca. Que majestoso armazém dos produtos do Raciocínio e da Imaginação! Ali jaziam mais de trinta mil volumes, e todos decerto essenciais a uma cultura humana. Logo à entrada notei, em ouro numa lombada verde, o nome de Adam Smith. Era, pois, a região dos economistas». Os fantasmas que por aqui pululavam eram os mais ilustres. Platão ombreava com Hobbes. E eis que deparamos com os dois fantasmas bem conhecidos de Jacinto e Zé Fernandes…
Viver fora do tempo? por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Tem sido esta a minha sina: viver fora do meu tempo, e sempre necessariamente nele. Será estúpido, talvez, irrealizável certamente. Mas é assim, e mais não posso. Não é presunção, nada tem a ver com desejo ou vontade. É, simplesmente, um olhar do coração a fazer com que a cabeça esteja aqui e além. Também não é difícil, é tão só uma tensão, simultaneamente dolorosa e muito feliz, entre o que surge possível e o que impossivelmente me chama. Não te direi a ti, a quem digo tudo, que seja estar entre a realidade e o sonho... Antes será estar entre esta realidade, que vemos, e outra, em que gostaríamos de nos ver. E onde seja possível estarmos. Como diria o padre Cardonnel (no "Deus é Pobre"?): "o pecado é a paixão dos nossos limites"! É não entender que tudo, tudo, muda sempre... E que, precisamente por isso, só somos nós sendo na mudança... Mas sendo nós. Ser eu e a minha circunstância - como diria o Ortega - é viver o drama, a tensão, desse paradoxo." É estar e não ser o que se está", como tantas vezes repetia o nosso Alberto, no seu português materno que, não sendo língua de filósofos, tão bem intui essa ferida genética da condição humana, essa permanente dor que é o rasgão entre o ser e o estar.
Na papelada escrita nos anos da minha ousada juventude "pensadora" - que destruí - havia uma longa dissertação (pretensiosa, penso, e por isso a rasguei) sobre "A Liberdade em Espinoza"... Vê tu bem! Lembrei-me dela, há pouco, por ter dado comigo a seguir peregrinações dos olhares europeus sobre outros povos e civilizações... Voltei ao "Tractatus Theologico-Politicus" de Baruch de Espinoza, redigido em latim, publicado, anonimamente, em 1670, por esse judeu de família vinda de Portugal para os Países Baixos. E, para me descansar do esforço da leitura, alcancei, para ler na cama, "Le Secret de l´Espadon" do Edgar-P. Jacobs. Ambos me motivaram a fazer um percurso que me levou a Bento de Góis e a Sérgio de Beaurecueiul. No "Tractatus", Bento (era o seu nome português) Espinosa, acicatado pela memória da sua família sefardita, de judeus ibéricos e marranos também, propõe uma explicação para a sobrevivência da nação judaica, explicação essa que já tem sido atribuída a um impulso de desforra dos que o tinham excomungado da sinagoga portuguesa de Amsterdam. Escreve ele: "Quare hodie Judaei nihil prorsus habent, quod sibi supra omnes Nationes tribuere possint...", ou seja, "nada podem hoje os judeus procurar que os coloque acima de todas as nações. Quanto à sua longa duração como nação dispersa e sem se constituir em Estado, isso em nada surpreende, já que os judeus têm vivido à parte de todas as nações de modo a atraírem o ódio universal, não só pela observância de ritos opostos aos das outras nações, mas também pela circuncisão a que estão religiosamente submissos. Aliás, mostra a experiência que o ódio das nações proporciona a conservação dos Judeus. Quando o rei de Espanha obrigou os Judeus a abraçar a religião do Estado, ou a exilarem-se, muitos se tornaram católicos romanos, e tendo desde então participado dos privilégios dos Espanhóis de raça, julgados dignos das mesmas honras, se fundiram com os Espanhóis, a tal ponto que, pouco depois, nada deles ficou, nem sequer a lembrança. Foi diferente com aqueles que o rei de Portugal obrigou à conversão: continuaram a viver separados, porque foram excluídos de todos os cargos honoríficos..." Não me interessa, agora e aqui, o acerto ou desacerto de um juízo sobre circunstâncias históricas. Em hora pós-prandial, vagamente nebulosa e tão sossegada, entrego-me a interrogações para as quais não espero respostas imediatas... Anoto apenas a ideia de que o acolhimento do outro transforma, com a circunstância, as pessoas. E pergunto: estaremos condenados a sempre projetar fantasmas? Em "Le Secret de l´Espadon", o inimigo a abater, o mal essencial a destruir, é o perigo amarelo, "les jaunes"... Inspirado no terror ocidental da ameaça que o Japão representou na guerra do Pacífico, o medo é motivado, nesta primeira aventura de Blake e Mortimer, pela sombra da vontade de conquista universal que um império extremo-asiático projeta sobre o mundo. A capital deste monstruoso "Leviathan", amarelo pela cor da pele, é Lhassa, imagina!, no Tibete! Claro que, guiados pelos bons princípios da moral e da organização britânica - do UK que, por mais de um século, dominara povos e territórios do sul e sudeste asiático - muçulmanos, com hindus confundidos, colaboram na resistência até à vitória final... Quem diria? Com que facilidade se identificam, com o mal ou o bem, povos e raças, religiões e culturas? Curiosa civilização cristã esta, europeia e nossa, em si mesma já dividida por ódios que se brindavam com epítetos de "boche!" , "marrano!", "papista!",etc... e pretendeu ser lição para "pretos", "índios", "amarelos", etc... Ganham, no meio da miopia e mesquinhez, estatura enorme pessoas como o dominicano Bartolomeu de las Casas, o jesuíta António Vieira e o nosso frei Sérgio de Beaurecueil. E muitos outros. Mas hoje - até por essa simultaneidade de muçulmanos e tibetanos em "Le Secret de l´Espadon" - recordo o irmão Bento de Góis. Nasceu nos Açores, na ilha de S. Miguel, foi marinheiro e soldado, comerciante e, finalmente, frade jesuíta, sem todavia ter recebido ordens sacras. Foi definitivamente admitido na Companhia de Jesus em 1588, quando tinha 26 anos e vivido em Ormuz, onde aprendera e praticara o persa. Foi o conhecimento dessa língua veicular no Império Mogol que lhe valeu ser colocado, pelos seus superiores religiosos, em 1594, na missão jesuíta na corte do Grão Mogol. E deste, que era Akbar, recebeu o passaporte que lhe permitiu iniciar, em Outubro de 1602, a viagem que o levaria de Agra, na Índia, através do Paquistão, do Afganistão, de Tian Shan e do deserto de Gobi, até a Suzhou, já para lá da Grande Muralha da China, onde chegou no dia de Natal de 1605. Aí morreria em 1607, vestido à muçulmana e usando o nome de Abdalá Isawí (jesuíta). O objetivo de tão prolongado percurso era descobrir o Catai, supostamente um reino cristão estabelecido para os lados da China. Rumores da existência de reinos cristãos antigos, ou de cristandades extra-europeias fundadas nos primórdios do Cristianismo - como o Reino do Prestes João ou o Reino do Catai - permaneceram muito tempo na tradição de vários povos, e há notícia de que a mensagem evangélica não se espalhou apenas pelos mundos helénico e romano, mas chegou à Índia e à China. Um texto da liturgia siro-malabar da festa do Apóstolo S. Tomé reza assim: "Por S. Tomé, o erro da idolatria desapareceu das Índias. Por S. Tomé os Chineses e os Etíopes foram convertidos à verdade... ... Por S. Tomé, os esplendores da doutrina vivificadora atingiram a Índia inteira. Por S. Tomé, o reino dos céus foi dado aos chineses." Um dos escritos apócrifos cristãos, redigido em siríaco e grego, provavelmente no século III, tem por título "Atos de Tomé" e começa por relatar como o Senhor, na distribuição de missões pelos Apóstolos, a Judas Tomé confiou a Índia. Perante a recusa deste, o Senhor vendeu-o como escravo carpinteiro a Habban, mercador do rei Gudnafar,que assim o leva para o destino que lhe fora atribuído. Por lá ficará e ali morrerá mártir,pelas mãos do rei Mazdaí... Terá sido a Igreja inicialmente estabelecida na Síria e na Mesopotâmia que, mais tarde, se expandiu para Oriente. Quando, nos séculos VII e VIII, o Islamismo segue o mesmo caminho, até à Índia e à China, não integrará apenas populações hindús, budistas e outras, mas também cristãs. Na China, ganha, com a dinastia Ming, alguma preponderância, ao ponto de ser plausível a conversão do imperador Zhengde, no início do século XVI. Mas afinal o Islamismo implantou-se, para Ocidente, até ao Atlântico, pela margem sul do Mediterrâneo e o norte de África e,a partir do Médio Oriente, cobriu o norte da península industânica e atingiu, pelo sul,a Malásia e a Indonésia. Ainda que prosélito em regiões do Império do Meio, nunca fez do Imperador Celeste o Sultão ou Califa de um imenso império asiático... "Le Secret de l´Espadon" poderia ter sido uma história bem diferente... Pois há uma contradição intrínseca ao modo teológico do ser muçulmano: em clima de guerra, prevalece o apelo da "jihad", da guerra santa; em ambiente de paz, a tolerância. Akbar o Grande, Grão Mogol, teve a dita de escutar um mestre persa, Mir Abdul Latif, que lhe inculcou o princípio "sufi" da tolerância universal. Por isso, tinha jesuítas na sua corte. Um deles chamava-se Jerónimo Xavier, sobrinho-neto de S. Francisco Xavier. Foi ele quem enviou Bento de Góis em busca do Catai. Minha Princesa de mim: esta carta é um conto das mil e uma noites. Mas, desta feita, é este sultão a entreter a Princesa..." Esta carta de Camilo Maria levou-me, quase quarenta anos depois, a reler, na "Descrição da China" do Pe. Matteo Ricci, o relato da viagem do seu irmão açoriano. Voltarei a ele e, quando com ele chegar a Kabul, pensarei em frei Sérgio de Laugier de Beaurecueil.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 12.07.13 neste blogue.