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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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R.  ROSA (JOÃO GUIMARÃES)

 

Esta fotografia é de 1961 e constitui uma autêntica relíquia. Carlos Drummond de Andrade, João Guimarães Rosa e Manuel Bandeira, lado a lado, num momento glorioso da literatura brasileira, no seio da gloriosa língua portuguesa. Neste abecedário de fantasmas, percebemos bem como a vida persiste e se prolonga. Ler qualquer um destes geniais autores, é encontrar a língua portuguesa na sua expressão mais rica e legítima. Já aqui referimos o Concílio (ou Consílio) dos Deuses. Nesse areópago sagrado, se apurássemos a vista, descobriríamos num dos cantos, uma animada conversa. De quem? Naturalmente desta sacra trindade, deste triunvirato solidamente criador. E ouvimos: “Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra” … Mas do outro lado, ouvi: «Vou-me embora pra Pasárgada / Lá sou amigo do rei / Lá tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei / Vou-me embora pra Pasárgada» … Mas devo ainda recordar que um dia, no final dos anos cinquenta, Alexandre O’Neill disse a António Alçada Baptista que tinha descoberto um grande escritor e um livro extraordinário da língua portuguesa acabado de sair. Referia-se a João Guimarães Rosa (1908-1967) e à sua obra “Grande Sertão: Veredas” (1956, Livraria José Olympio). António tomou boa nota e embrenhou-se na obra tão elogiada. Nas primeiras impressões achou difícil. Mas não bastou muito para se deixar apaixonar por essa escrita tão atraente, de uma escrita genial. E nunca mais deixou de elogiar e de citar esse livro, rigorosamente fantástico. Aparentemente, estamos perante a linguagem rural dos sertanejos, que o Guimarães Rosa maneja com mestria perturbadora. Como diz António Cândido (e o meu amigo Celso Lafer sempre me lembra): “tudo se transformou em significado universal graças à invenção, que subtrai o livro da matriz regional”. Ali estão “os grandes lugares-comuns, sem os quais a arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte, para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e, na verdade, o Sertão é o mundo”. O livro é complexo como a própria vida. Riobaldo começa a contar, de modo incessante, a sua experiência pessoal. Trata de tudo, dos mistérios do mundo e da vida. “O diabo na rua, no meio do redemoinho”. E contar é “dificultoso”, pela “astúcia” de certas coisas passadas, que fazem “balancé” e se remexem dos lugares. “Vivendo se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas”. Riobaldo encontra Reinaldo, que o fascina. E depois da morte da mãe Brigi, vai para a fazenda do padrinho Selorico Mendes e conhece o mítico chefe Joca Ramiro. É professor do fazendeiro Zé Bebelo, mas isso serve para entrar no cangaço, como jagunço do bando deste, no sul da Bahia e em Goiás. Acaba, porém, por fugir e reencontra Reinaldo, “companheiro” de Joca Ramiro, “transferindo-se” de bando. Reinaldo revela-lhe em segredo que se chama Diadorim e abre-se o combate com o antigo bando, de Zé Bebelo, e contra as tropas governamentais. A pontaria de Riobaldo (chamado o Tatarana) torna-se celebrada e permite ao grupo de Joca levar de vencida Zé Bebelo. Este é julgado e condenado ao exílio em Goiás. Mas Joca Ramiro é assassinado à traição (pelos “judas”, Hermógenes e Ricardão) e Riobaldo, como Reinaldo, continuam no cangaço com Titão Passos. Riobaldo tem um caso com Nhorinhá, mas enamora-se de Otacília, de quem Diadoirim se enciúma. Por entre lutas e contra lutas, Zé Bebelo regressa do exílio e toma a chefia do bando na perseguição dos “judas”. Os bebelos chegam a “Veredas-mortas” e Riobaldo faz um pacto com o diabo, para vencer os “judas”, e torna-se chefe do bando como Urutu-branco. “Deus existe mesmo quando não há. Mas o demónio não precisa de existir para haver”. O combate e a perseguição não têm tréguas nem quartel. Nos sertões de Minas Gerais, vindos da Bahia, os jagunços perseguem traidores. As lutas são sangrentas, e Diadorim enfrenta Hermógenes. Mas ambos morrem. E descobre-se que Diadorim é Maria Diadorina da Fé Bittancourt Marins, filha do próprio Joca Ramiro. Diadorim (Bruna Lombardi) e Riobaldo (Tony Ramos) protagonizaram a mini-série realizada pela Globo (1985), dirigida por Walter Avancini, que contribuiu para popularizar o genial romance. Bruna Lombardi imortalizou Diadorim numa grande representação! No final do romance, Riobaldo fica gravemente doente, mas consegue sobreviver e acaba a vida a gozar da herança do padrinho e a lembrar o pacto com o diabo, concluindo que o que verdadeiramente “existe é o homem humano” … Porque afinal “sertão é dentro da gente”. E Eduardo Lourenço comparou “Grande Sertão” com “Menina e Moça” de Bernardim. No português moderno é insuperável. Os fantasmas encontram-se e superam-se. E assim se demonstra como uma narrativa pode ser imorredoura.

 

 

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CRÓNICAS PLURICULTURAIS

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146.   ENTRE O REAL E O IDEAL E O IDEAL E O REAL

 

O florentino Maquiavel e o inglês Thomas More são dois vultos permanentes em política e sociologia.

Maquiavel, confrontado com as guerras e lutas civis que gangrenavam a península itálica, procura uma maneira de a salvar, colhendo e adaptando os ensinamentos da história de Roma e da “Política” de Aristóteles, escrevendo “O Príncipe”, onde César Bórgia, senhor de Florença, de quem foi favorito e secretário de chancelaria, é tido como uma referência de governante, a quem atende, aconselha e se dirige.

Não sendo os poderosos, por natureza e princípio, mais inteligentes e justos que os outros, defende que chegaram onde estão porque são mais astutos, demagogos, hipócritas e pérfidos, podendo usar a crueldade, a tortura, a mentira, a má fé, o crime e a violência para manter o poder. Se para teres êxito na vida tiveres de atropelar e passar por cima dos outros, não hesites, sendo irrelevante que alcances o êxito sem honra ou modo pouco honroso. O fim justifica os meios, mesmo que condenáveis em si, desde que chegues onde queres, estando as razões de Estado acima de tudo, para alcançar o bem geral, identificado com o interesse de quem governa.

Os Estados, evoluindo ao sabor das leis naturais que gerem as sociedades, adaptam-se e reformulam-se consoante os tempos, de monarquias eletivas, hereditárias, tirânicas e decorativas, a repúblicas, autocracias, ditaduras, democracias liberais ou iliberais, e por aí adiante, num equilíbrio instável, em progressos e regressões.

Tomás Moro, inspirado na “República” de Platão, foi autor da “Utopia”, que significa “o que não existe em lado algum”, imaginando uma sociedade ideal, perfeita, quimérica, habitando uma ilha idealizada e longínqua, que o navegador português Rafael Hitlodeu conhecera, onde os bens são comuns, os governantes eleitos pelos utopistas, estes consultados sobre o que é relevante, quem governa fixa planos de produção e dirige a economia, todos vivendo felizes com o que têm, e cada um com o que precisa, idealizando uma coletividade com base na razão humana, balançando entre um real que se censura e rejeita e o ideal que se almeja e sonha.

Os utopistas deviam ajudar os vizinhos a transformar-se em Estados utópicos, passando a protegê-los, tendo-se como precursores do humanismo.

Este balancear do real para o ideal (Maquiavel e Tomás Moro) e do ideal para o real (Tomás Moro e Maquiavel), continua a guiar-nos, nomeadamente os políticos, sendo tidos por realistas e idealistas consoante seguidores de Maquiavel ou de  More, chamando-se maquiavélica a política caraterizada pela ausência de escrúpulos para governar e tomar o poder, e idealista a que se baseia numa sociedade que não existe mas se deseja que exista, mesmo que alimentada pela fantasia, fuga e sonho de um mundo tido como irreal.

Em qualquer caso, o Estado é um ente sempre presente, quer infrinja as leis para se manter e disponha das nossas vidas sem limites, quer se assuma como paternalista, qual messias ou salvador, rumo à sociedade ideal.

Predominando, entre os políticos e grandes estrategas os realistas (realpolitik), que nunca deixaram de ler e meditar sobre a doutrina de Maquiavel (tendo como subjacente os interesses práticos e primordiais do Estado e que as relações de poder tendem a minar as pretensões de fundamentação moral), deduz-se ser esta a política que agarra mais de  perto a realidade atual, devidamente adaptada ao contexto em que vivemos, teoria que tem como intrínseca a imperfeição da condição humana, com o seu clímax em todas as ditaduras e totalitarismos.

Porém, embora constitutivamente finitos e imperfeitos, também aspiramos, constitutiva e estruturalmente, a fazer sempre melhor, rumo a uma sociedade superiormente aperfeiçoada, num misto entre o real e o ideal e vice-versa, mesmo que agora utópica e uma democracia escrutinadora e pluralista, per si, possa ser vulnerável e insuficiente.

 

18.08.23
Joaquim M. M. Patrício