Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Educar é o melhor modo de antecipar o futuro. E se falamos de futuro é porque a aprendizagem é a compreensão da importância presente da experiência. O futuro é a compreensão do presente. António Sérgio (1883-1969) seguiu o exemplo de Francis Bacon e de Montaigne privilegiando o método dos Ensaios. E que são os ensaios senão a demonstração do saber todo de experiências feito. Ao longo da vida preocupou-se com o testemunho pedagógico para as gerações futuras, usando essencialmente o método crítico. Hoje, mais do que nunca, é necessário lermos e ouvirmos os seus ensaios, onde nos propõe, em lugar de receitas ou de caminhos pré-fabricados, vias múltiplas centradas na liberdade e na responsabilidade, articulando a importância da singularidade individual (ou não fosse ele sempre um idealista racional) com a solidariedade voluntária (baseada na ação do cooperativismo). Note-se que, no fugaz tempo em que foi Ministro da Instrução Pública, deixou duas marcas muito evidentes, que merecem lembrança: a criação da Junta de Orientação dos Estudos (Decreto nº 9332, de 29 de dezembro de 1923) e do Instituto do Cancro. A Junta foi criada no sentido da abertura dos nossos investigadores e estudantes ao contacto internacional, através de bolsas de estudo e de formações avançadas (que teria continuidade na Junta de Educação Nacional, no Instituto de Alta Cultura, chegando ao Instituto Camões). Devemos lembrar que José de Azeredo Perdigão, um sergiano confesso, desenvolveu, na linha do mestre o apoio ao conhecimento na Fundação Calouste Gulbenkian, com belos frutos na abertura de horizontes centrados no valor e na liberdade. O Instituto Português para o Estudo do Cancro (Decreto nº 9333, de 29 de dezembro de 1923), hoje Instituto Português de Oncologia, que o Professor Francisco Gentil animou, dando projeção internacional e grande prestígio, é um exemplo premonitório da necessidade de ligação estreita entre a ciência e a saúde. Poucos governantes têm a seu favor uma tão importante marca simbólica de valor perene.
António Sérgio foi um polemista aguerrido, por isso podemos afirmar que, na senda de figuras que tanto admirou, como Alexandre Herculano e Antero de Quental, preocupou-se em modernizar Portugal, seguindo a lição da Regeneração e da Geração de 1870, na perspetiva de superar a mediocridade, sem iludir defeitos e limitações. O empenhamento na causa da Instrução Pública é significativo e facilmente o verificamos na leitura da sua vasta bibliografia. Foi importante a passagem por Genebra com sua mulher D. Luísa Sérgio e compreendemos como António Sérgio pensou a modernização do País através do estudo e do conhecimento. Leia-se a série de ensaios publicados na revista “A Águia”, da Renascença Portuguesa, sobre a “Educação Cívica”, que continua a ter atualidade pela defesa de uma cidadania ativa e pela ideia de República Escolar, na linha do pensamento de John Dewey, um dos mais fecundos pedagogistas do seu tempo. E a verdade é que aí encontramos uma preocupação fundamental em que o rigor e a exigência se aliam à motivação e à tomada de consciência fecunda de cidadãos livres e iguais, autónomos e responsáveis, empenhados e solidários. Para Sérgio a escola era lugar natural de cidadania, e as mais recentes investigações das neurociências confirmam a importância de considerar desde a infância a aprendizagem da cidadania e do compromisso solidário. A sociedade não está fora da escola, faz parte intrínseca da vida escolar e da comunidade educativa. Do mesmo modo, o cooperativismo constitui um desafio prático, que ainda hoje continua por cumprir, sendo um elemento que a história recente tornou mais atual. A ação cooperativista de António Sérgio constitui uma indelével marca política que, apesar das resistências, continua a ser relevante. De facto, nem o Estado nem o mercado só por si podem responder às exigências da sociedade e da economia. Assim, para que não haja um Estado produtor, centralizado e burocrático ou um mercado vulnerável e incapaz de garantir eficiência e equidade ou de assegurar uma concorrência sã e equilibrada, impõe-se a criação de uma economia cooperativa, capaz de realizar um Estado catalisador e ordenador e um mercado justo...
A obra do escritor é rica em reflexão, mas pode dizer-se que o espírito de reformador está enraizado na sua atitude intelectual. Trata-se de procurar linhas de orientação e de ação capazes de garantir a superação do nosso atraso. Daí a dualidade transporte / fixação, na qual há uma procura determinada no sentido do melhor aproveitamento dos recursos próprios – a começar nas pessoas e a continuar nos recursos disponíveis – no território, na inserção internacional e na cooperação científica e técnica. Quando António Sérgio publicou a sua Antologia dos Economistas Portugueses (1924) ou quando proferiu a conferência sobre “as duas políticas nacionais” (1925), dada à estampa no segundo volume dos Ensaios, lembrou que três autores seiscentistas, Luís Mendes de Vasconcelos, Severim de Faria e Duarte Ribeiro de Macedo, iniciaram a doutrina da política da Fixação, contra a política do Transporte; e o reformismo português, desde aí até agora, será o desenvolvimento dos princípios que defenderam nas suas obras. Em Vasconcelos é a Fixação, pela agricultura; em Severim, pela agricultura e pelas indústrias; em Macedo, finalmente, são as minúcias de um programa de fomento industrial”. Logo no final do século XVII, porém, o dinheiro das minas do Brasil, mais tarde os empréstimos do fontismo e as remessas dos emigrantes adiaram a realização das ideias dos reformadores. Mas o seu espírito continua, ressalvadas as distâncias e qualquer anacronismo, vivo e pertinente, em nome de um reformismo que foi assumido por Herculano, pela geração de 1870, pela “Seara Nova” e pelo moderno pensamento democrático. Como afirmou: “parece-me que os males de que nos queixamos são fatalíssima consequência da estrutura da sociedade, - e que só portanto terão remédio se nos metermos firmemente a transformar essa estrutura, o que não é possível com pregações, nem com políticas de autoritarismo, nem com reformas só pedagógicas, - mas com reformas sociais e pedagógicas entrelaçadas como fios de um tecido único, as quais preparem o nosso povo para um uso razoável da liberdade e para empreender por si mesmo a sua emancipação social-económica”. Neste folhetim que prossegue, a modernidade faz-se de consciência crítica. O tempo é revelador de uma cultura de várias realidades…
MELANCOLIA DE UM ALEGRETTO… por Camilo Martins de Oliveira
Diz Eduardo Lourenço: "o que eu sou como ser mortal (o que todos somos) está contido na melancolia absoluta do allegretto da Sétima Sinfonia". Diz-se que Pio XII, na agonia da sua morte, pediu para ouvir como companheiro de viagem esse segundo andamento da sinfonia de Beethoven. Escuto-o agora, em cálida tarde de sábado, enquanto me passeio por leituras... E surge-me a interrogação de Paul Gauguin, pintada em ilha perdida do Pacífico, quase nos antípodas de nós: "quem somos, donde vimos, para onde vamos?"
No percurso da leitura, deparo com dois títulos no El País: "Era como estar en una pelicula" e, páginas adiante,"Espacios libres de niños/ los hoteles y restaurantes solo para adultos experimentan um polémico auge/ la crisis acelera esta opción minoritária/ que el sector abraza para captar clientes". O primeiro título refere-se ao tiroteio mortífero num cinema de Denver; o segundo nem precisa de esclarecimento. Ambos, afinal, traduzem fatores culturais da crise em que mergulhámos. Assim, apesar de doutorando em neurociências, o jovem Holmes "assumiu-se", na estreia de mais um filme de Batman, como mais um herói da violência indiscriminada que, todos os dias, apetitosamente nos é servida pela "comunicação social"... Porque a exploração da fraqueza, do mimetismo, da debilidade mental dá lucro aos que vendem!
Também as crianças, como as coisas bonitas do passado e tantas do presente, todas essas que queremos livres, construtivas e fraternas, já são, ao que parece, obstáculo ao lucro... Talvez não fosse mau lembrar que esquecer os outros, a pessoa humana -- que é real -- por essa ideia matemática e abstrata que é o dinheiro, é, muito simplesmente, uma estupidez.
TERRA DOS HOMENS…
Nos anos 30 do século passado, meditando sobre o avião que pilotava, o desenvolvimento das máquinas e o advento de uma nova era técnica, Antoine de Saint-Éxupéry escrevia (cf. «Terre des Homme», III – L’Avion): "Só agora começamos a habitar esta casa nova que nem sequer acabámos de construir. Tudo à nossa volta mudou tão depressa: relações humanas, condições de trabalho, costumes. A nossa própria psicologia foi abalada nas suas mais íntimas fundações. As noções de separação, de ausência, de distância, de regresso, embora mantenham os mesmos nomes, já não contêm as mesmas realidades. Para apanhar o mundo de hoje, usamos uma linguagem estabelecida para o mundo de ontem. E a vida do passado parece corresponder melhor à nossa natureza pela simples razão de que corresponde melhor à nossa linguagem"...
Em 1990, Jacques Le Rider publicava nas PUF o seu "Modernité viennoise et crise d´identité (1890-1938)", onde defendia que a modernidade vienense se tornou " numa das nossas referências estéticas e intelectuais mais importantes", por ter pensado a modernidade "como premonição do fim de um mundo". Situando-o no tempo, vemos como o movimento modernista vienense baliza uma crise que despoletou a queda das grandes monarquias da Europa central, os processos de industrialização e colonização aceleradas, as revoluções socialistas e anarco-sindicalistas, e os conflitos e vexames inerentes a tudo isso e que conduziram à hecatombe da 2ª Grande Guerra.
Para Jacques Le Rider, Schoenberg, Schiele, Musil, Freud, Wittgenstein, todos "os criadores vienenses refletiram de modo crítico a sua condição de homem moderno,feita simultaneamente de euforia e mal-estar..." Mas essa criatividade deveu-se "à imigração e à diversidade étnica, não à homogeneidade nacional..." Assim, Le Rider atribui à incapacidade política de pensar essa coexistência o fim do "modelo muito elaborado da pluralidade nacional, linguística, étnica e cultural no centro da Europa". Quero hoje começar a refletir sobre a crise presente e sobre a nossa interrogação da Europa. Não numa perspetiva economicista, nem à luz dominante da prioridade dada à política financeira. Mas antes partindo da consideração do povo, dos povos europeus de hoje, e dos desafios a que terá de responder para começar "a habitar esta casa nova que nem sequer acabámos de construir".
Aliás, a casa dos homens está sempre em construção, pois das pessoas que nascem, vivem e morrem, ela é feita. Da Jerusalém Celeste à Torre de Babel, do monaquismo às comunidades hippies, por constituições de estados e convenções internacionais, vamos tentando... Temos de olhar para a Europa de hoje, tal como se situa num mundo em globalização, em que as tecnologias de comunicação e transporte tornam o longínquo imediato e próximo e vão confrontando o sentimento de si com entidades várias e a tentação mimética de misturar tudo. A miscigenação étnica e cultural é hoje um fenómeno crescentemente generalizado e frequente. Mas também gera receios, desconfianças, racismo, fanatismos. Por isso mesmo, se torna tão importante que cada um se compreenda melhor a si, cada pessoa, cada povo, cada cultura. A consciência informada e limpa da própria identidade é condição prévia do convívio e do diálogo, e estes são participação e partilha, não são eliminação.
Fala-se do inglês como língua universal e há quem pretenda que as línguas nacionais ou os dialetos regionais não têm razão de existir num mundo global. Mas o inglês que funciona como língua franca é também um inglês que se destila, filtra e empobrece e, por vezes, já pouco tem de inglês clássico, ou pouco a ver com a cultura anglo-saxónica (que não é só a dos negócios) Quantos dos nossos "CEO", que fazem "statements" com três palavras de inglês para duas de português, conseguirão ler Shakespeare no original? Deverão por isso os anglófonos castiços abandonar o vate ou todos nós esquecê-lo? Ou não deveremos nós, portugueses, conhecer melhor, como diria Eça, "o nosso Camões"?
Na Europa de hoje vivem - e são europeus, tal como os afro-americanos são americanos e não já africanos, e isto não só por imposição legal ou reconhecimento de um direito, mas culturalmente - gentes de variadas origens étnicas, geográficas e culturais. Basta ver na televisão jogos entre seleções nacionais europeias de futebol ou atletismo para disso nos apercebermos, ou, mais simplesmente, sair à rua. Cada um deles deverá ter uma dupla função: a de aprender bem a língua do país que os acolheu (ou já a seus pais e avós) e, com a língua, ir apreendendo uma cultura enquanto visão e modo de estar no mundo e na vida; mas também, porque o modo vive e evolui no tempo, enriquecer essa cultura e essa língua com a contribuição do seu pensamento, sentimento e discurso. Afinal, como qualquer de nós. E não têm a língua e cultura lusíadas sido enriquecidas pelas literaturas brasileira e afro-lusófonas?
Em próxima oportunidade, poderemos falar na importância das chamadas humanidades na construção da casa que todos teremos de habitar. Teremos de perceber como a preservação da memória histórica e a transmissão da língua viva são fatores de entendimento, de diálogo e de convívio.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 27.07.2012 neste blogue.