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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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T.  TROVADORES

 

Neste folhetim que vai reunindo fantasmas, encontramos agora os pioneiros do nosso idioma. Quem são eles? Poetas de primeira água. Como idioma nacional, o português tem essa extraordinária originalidade, que advém de ser na sua raiz uma língua de trovadores com talento feito no caminho de peregrinação de S. Tiago de Compostela. Se os trovadores ocidentais utilizaram o galaico-português, os orientais fizeram uso do provençal ou Languedoc, que correspondeu ao falar do sul do território francês, por contraposição à Languedoïl.  E se há monarca português fundador e criador decisivo da língua portuguesa é sem dúvida D. Dinis. Este rei poeta leva-nos ao reconhecimento da importância da poesia trovadoresca na origem da nossa cultura.

«O que vos nunca cuidei a dizer, / com gram coita, senhor, vo-lo direi, / porque me vejo já por vós morrer; / ca sabedes que nunca vos falei / de como me matava voss'amor; / ca sabe Deus bem que doutra senhor, / que eu nom havia, mi vos chamei. /
E tod[o] aquesto mi fez fazer / o mui gram medo de que eu de vós hei / e des i por vos dar a entender / que por outra morria — de que hei, / bem sabedes, mui pequeno pavor; / e des oimais, fremosa mia senhor, / se me matardes, bem vo-lo busquei. / E creede que haverei prazer / de me matardes, pois eu certo sei / que esso pouco que hei de viver / que n’um prazer nunca veerei; / e porque sõo desto sabedor, / se mi quiserdes dar morte, senhor, / por gram mercee vo-lo [eu] terrei».

Tal poesia centrada no amor cortês floresceu na Península, salientando Carolina Michaelis de Vasconcelos, no noroeste peninsular, quatro períodos dessa poesia inicial: o pré-afonsino (1200-1245), o afonsino (1245-1280), de Afonso X e do nosso Afonso III, o dionisíaco (1280-1325) e o pós-dionisíaco (1325-1350). As cantigas profanas galego-portuguesas estão reunidas em três manuscritos. O mais antigo, do século XIV é o Cancioneiro da Ajuda (A), rico manuscrito iluminado, mas incompleto, já que contém apenas 310 composições, na sua esmagadora maioria cantigas de amor. Descoberto na biblioteca do Colégio dos Nobres em inícios do século XIX está na Biblioteca do Palácio da Ajuda, em Lisboa, pouco sabemos sobre as suas origens ou sobre o seu percurso. Os outros dois manuscritos, conhecidos como Cancioneiro da Biblioteca Nacional, também chamado Cancioneiro Colocci-Brancuti, é o mais completo, que o património português ganhou graças à direção magistral da Biblioteca Nacional de Jaime Cortesão. O Cancioneiro da Vaticana está guardado na Biblioteca Apostólica Vaticana, trata-se de manuscritos copiados em Itália, nas primeiras décadas do século XVI, sob as ordens do humanista Angelo Colocci, e a partir de um cancioneiro anterior, muito certamente medieval, hoje desaparecido. Ao que tudo indica, terá sido D. Pedro, conde de Barcelos, trovador e primogénito bastardo de D. Dinis, o compilador das cantigas que chegaram até nós. A lista dos poetas é vasta e inclui João Soares de Paiva, João Garcia de Guilhade, Pero da Ponte, Pai Gomes Charinho, João Aires de Santiago, Afonso X, João Soares Coelho e Pedro Afonso, João de Lobeira (célebre autor do Lai de Leonoreta e provavelmente do Amadis de Gaula, onde este poema se encontra), Rui Queimado e no período de D. Dinis, além do próprio, Afonso Sanches, filho natural do rei. Antes dos cantares de Amor em que a voz é do poeta, temos as cantigas de Amigo em que fala a donzela e ainda as de escárnio e maldizer, em que prevalece o tom picaresco.

Voltando ao tema dos fantasmas, o caso de Amadis de Gaula é essencial, já que não poderemos compreender esta nossa cultura do cadinho ocidental sem o fundamento lírico invocado por Leonoreta. A originalidade da língua portuguesa baseia-se, assim, no seu fundo poético. E o Tratado de Alcanizes foi símbolo político, o mais antigo e estável da Europa – tendo Castela e Aragão reconhecido a D. Dinis especial legitimidade mediadora. A Crónica de 1344 recorda, aliás, a solene comitiva de mais de mil nobres que o rei de Portugal levou à fronteira castelhano-aragonesa, em junho de 1304, por ocasião da arbitragem a que foi chamado. A ocasião foi aproveitada para selar o solene tratado de paz envolvendo os três reinos, Portugal, Castela e Aragão, não tardando a fazer-se o consórcio do infante D. Afonso com D. Beatriz, irmã de Fernando IV. E o reino reforçou-se pelo reordenamento do aparelho administrativo; pela atribuição de forais aos municípios; pelo reconhecimento das comunas judaicas e dos “mouros forros”; pela regularização na cobrança das receitas; pelo fomento das atividades agrícolas e comerciais; pela concessão de feiras francas (no Douro e na estrada da Beira); pela realização de Inquirições Gerais e afirmação da reserva para o rei da distribuição de poderes e dons aos membros da corte; pela adoção de novas regras de recrutamento militar nos concelhos (“besteiros de conto”); pela nacionalização das Ordens religiosas militares (Santiago, Templários/Cristo); pela criação de coutos de homiziados, que previam o cumprimento de penas em zonas fronteiriças pouco povoadas; pela concretização de uma lei sobre tabeliães e selos dos concelhos; pela criação da bolsa de mercadores para apoio aos portugueses que comerciavam em França, Inglaterra e Flandres, pela proteção da atividade mineira (ferro, mercúrio, ouro…); e pela nomeação do genovês Manuel Pessanha para o comando da frota real (1317). O casamento em junho de 1282 com a Rainha Santa D. Isabel de Aragão, filha de Pedro III, o Grande, permitiu uma aliança essencial.

E deve recordar-se a importância da influência franciscana, a abrir novos horizontes e uma nova visão do mundo e da história. Como salientou Jaime Cortesão, as festas do Espírito Santo nos Açores ou no Brasil são sinal dessa presença franciscana. A Livraria de D. Dinis é exemplo notável de abertura de espírito, de curiosidade intelectual e de sensibilidade e o Estudo Geral (1290), futura Universidade, é o indicador de que a autonomia política exigia a criação de uma elite intelectual, de clérigos e legistas, apta a corresponder às novas exigências de uma Administração pública autónoma, centralizada e competente.

Cerca de 1296, a adoção do romanço ou língua vulgar (o galaico-português) nos documentos oficiais da chancelaria permite a consolidação da língua portuguesa. E a medida levou à consagração da prevalência da instância civil sobre a eclesiástica. Fronteira, língua, Estudo Geral, independência económica (agricultura, marinha e pesca) definem ventos novos. O Estado constitui-se, a Nação consolida-se. Fernando Pessoa chamou ao rei, com justiça, “plantador de naus a haver”, fundador da nova potência marítima…

 

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POEMS FROM THE PORTUGUESE

 

POEMA DE ANA MARQUES GASTÃO

 

 

 

Vinho hipocraz

Jamais saberei a distância dos lábios
ao nariz ou da faúlha a chão luminoso.
Somos sempre menos do que de mais
belo fizemos e do mais, ingratos,
esquecemo-nos. Da soletração levamos
o vinho hipocraz, do frio a água, do fogo
o vapor de um sopro abafado a perdiz.

Se me olho sem nome e me vejo num
nome onde tudo e nada trago, saboreio,
botão a botão o fruto, o lascar da pedra,
o corte áspero da foice. Sou a altura do
que oiço, a cegueira do que como e, quando
bebo, entrega-se o corpo a um sono de
morte que transformo em outro caminho.

Mas se é luz que vejo num céu-da-boca
de frases rasas e quentura gémea,
que se solte a língua da boca, os cabelos
da cabeça, se rasgue a memória vedada,
véu de uma suave, amarrada linha de fio
de prata e granulado funcho, e eu adormeça
de lábios e gosto no peito de meu amado.

in Adornos, 2011

 

Hippocras wine

I will never know the distance from the lips
to the nose or from the spark to the fire-lit ground.
We are always less than that we have most
beautifully done and everything else, ungrateful,
we forget. From the spelling we take
the hippocras wine, from the cold the water, from the fire
the vapours of braised partridge.

If I look at my nameless self and see me
in a name to which I bring everything and nothing, I taste,
bud by bud, the fruit, the slicing of the stone,
the harsh cut of the sickle. I am the loudness
of what I hear, the blindness of what I eat and, when
I drink, my body is abandoned to a deadly
sleep that I turn in another direction.

But where I to see light inside a palate
of even sentences and congenial warmth,
let then the tongue be loosened in my mouth, the hair
of my head, let the forbidden memory
be torn, veil of a softly fastened line of silver
thread with fennel beads, and let me sleep,
lips and pleasure, on the breast of my beloved.

© Translated by Ana Hudson, 2010