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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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U. UTOPIA E QUINTO IMPÉRIO

 

O folhetim fantasmático chega a um ponto crucial. Tomás Morus celebrizou-se pela publicação do discurso de um português de nome Rafael Hitlodeu, sobre a melhor Constituição de uma República. Esse texto fundamental tem feito correr rios de tinta, sobretudo a partir do seu misterioso título - «Utopia». A etimologia grega remete para uma designação contraditória que significa o que não existe ou não tem lugar… Morus procurou apresentar uma sociedade que pudesse satisfazer a felicidade humana, no entanto a história da humanidade está cheia de exemplos de tentativas falhadas de realizar na prática esse generoso objetivo. Tomás Morus (1478-1535) foi um dos humanistas mais destacados do Renascimento. Foi advogado, deputado à Câmara dos Comuns, «speaker» da mesma Câmara, Vice-Tesoureiro e Chanceler do Ducado de Lancaster até chegar à primeira linha da governação. Amigo de Erasmo de Roterdão, que lhe dedicou o «Elogio da Loucura», este disse de Morus: «É um homem que vive com esmero a verdadeira piedade, sem a menor ponta de superstição, tem horas fixas em que dirige a Deus as suas orações, não com frases feitas, mas nascidas do mais fundo do seu coração. Quando conversa com os amigos sobre a vida futura, vê-se que fala com sinceridade e com as melhores esperanças. E assim é Morus também na Corte. Isto, para os que pensam que só há cristãos nos mosteiros». O conflito com Henrique VIII deveu-se à querela sobre a anulação do casamento com Catarina de Aragão. Morus discordou da posição do monarca e demitiu-se de Chanceler – negando-se a dar o seu acordo no sentido da cisão religiosa. Em consequência recusou-se a prestar juramento a Henrique VIII, o que determinou a sua prisão na Torre de Londres, com o cardeal e bispo de Rochester, John Fisher, o seu julgamento e condenação à morte, que ocorreu em 6 de julho de 1534. As suas últimas palavras foram: «morro como bom servidor do rei, mas de Deus primeiro». Na história britânica esta execução é considerada das mais graves e injustas aplicadas pelo Estado, por atingir um homem prestigiado e de honra.

Tomás Morus usou sobre a sociedade do seu tempo um método semelhante ao de Erasmo em «Elogio da Loucura» (de 1509). Erasmo pôs a loucura a falar, de modo que se percebesse a imperfeição humana – como Morus foi buscar na sua obra referência aos povos com «instituições tão más como as nossas». Curiosa é que a escolha do cicerone tenha recaído sobre um português, Rafael Hitlodeu, conhecedor do latim e sabedor do grego. Nascido em Portugal, cedo abandonou a fortuna paterna aos irmãos, levado pela «intensa paixão de conhecer mundo». Foi companheiro de Américo Vespúcio e um dos poucos escolhidos para ficar nos confins da Nova Castela, no litoral da América, em contacto com novos povos – tendo desembarcado por milagre na Taprobana, seguindo depois para Calecute, «onde um navio português o reconduziu ao seu país». Reler esse testemunho é compreender que um tal português simbólico reúne diversas qualidades pertinentes e atuais – o desejo de conhecer novos mundos e novas gentes, aliado a uma especial sabedoria, capaz de entender que «o dever mais sagrado do príncipe é pensar na felicidade do povo antes de pensar na própria» ou que «a dignidade real não consiste em reinar sobre mendigos, mas sobre homens livres e felizes». Eis por que razão a descrição da «Utopia» tem mais a ver com um caminho livremente aceite e comummente construído. «Na Utopia, as leis são em pequeno número e a administração difunde os seus benefícios por todas as classes de cidadãos». Não cabe aqui, porém, uma descrição da sociedade encontrada por Hitlodeu na ilha com dois mil passos na sua maior largura… Morus diz não concordar com tudo, «há nos utopianos um conjunto de instituições» que se deseja ver estabelecidas em nossos países. Daí a importância do sentido crítico e da liberdade… E o autor deseja-o, mais do que o espera…

Aproveitamos para seguir as pisadas do Padre António Vieira nas viagens diplomáticas, em representação do rei D. João IV. E deparamo-nos com a presença de Menasseh ben Israel (1604-1657).  Em 20 de abril de 1646, Vieira chega a Haia, vindo de Rouen, com duas missões: discutir o futuro de Pernambuco, na posse dos holandeses, e contactar os sefarditas portugueses sobre a possibilidade de regressarem a Portugal num momento decisivo em que os meios financeiros faltavam, com o Tesouro exaurido por sessenta anos de monarquia dual com a Espanha. O jesuíta conhecia bem o estado de espírito dos judeus portugueses – tinham uma boa lembrança da pátria antiga, mas desejavam liberdade de consciência e garantias de segurança, que a Inquisição não dava. Sem provas documentais, o Padre Vieira ter-se-á encontrado com Menasseh ben Israel, cuja pessoa admirava, partilhando muitas das suas convicções. Era indispensável atrair capitais e mobilizar iniciativas para reconstruir uma economia empobrecida. O facto de os capitais ligados ao comércio das Índias Orientais e Ocidentais estarem nas mãos de judeus e cristãos-novos constituía uma oportunidade que teria de ser aproveitada. Daí a importância do diálogo com a comunidade judaica. Quem era Menasseh ben Israel? Nasceu na Madeira, filho de Gaspar Rodrigues Nunes, sendo-lhe dado o nome de Manuel Dias Soeiro. O pai, acusado de práticas judaizantes, teve de partir para a Holanda em 1613 e tomou o nome de Joseph ben Israel, dando a seus filhos os nomes de Ephraim e de Menasseh. Em 1622, encontramos Menasseh como pregador da comunidade, no ano seguinte casado com Raquel Abarbanel. Em 1626, funda a primeira tipografia de caracteres hebraicos. Corresponde-se com Rembrandt van Rijn (que o retrata) e com Hugo Grócio. Semuel ben Israel Soeiro, o filho, prosseguirá a intensa atividade editorial paterna. Em 1651, Menasseh tentará estabelecer pontes com as ilhas britânicas, mantendo contactos com Cromwell. Em 1656 é inaugurada a Sinagoga de King Street e é decidida a construção do hospital de Mile Ende, iniciando-se um grande crescimento da comunidade judaica, sobretudo a partir do reinado de Carlos II, marido de D. Catarina de Bragança. Menasseh está em Londres entre 1655 e 1657, regressando aos Países Baixos em 1657. Morre em Midleburgo em novembro e está sepultado no cemitério judeu de Beit Haym, que fica em Ouderkerk no Amstel, nos arredores de Amesterdão. Diga-se que o rabino Menasseh ben Israel não estava em Amesterdão quando Saul Levi Morteira assinou a condenação de Bento Espinosa, e diz a tradição que se Israel tivesse intervindo tal decisão não teria sido tomada. O Padre António Vieira ficaria nos Países Baixos durante três meses, voltando a Haia a 17 de dezembro de 1647. Se é certo que os resultados práticos não foram grandes, é fundamental o que António José Saraiva descobriu, na sua estada holandesa. Não foi apenas o dinheiro dos judeus que interessou António Vieira, mas a aproximação das teses judaicas. Assim considerou os judeus, a “gente da nação”, um povo laborioso, enriquecedor das comunidades em que se inseriu, em nada podendo perverter os costumes tradicionais da Igreja Católica. E se o capital mercantil dos judeus lhe importou, com resultados práticos, houve igualmente uma preocupação de justificar a aproximação às ideias positivas que poderiam colher-se no pensamento judaico. Daí o sucesso na negociação dos empréstimos para a coroa portuguesa com Duarte Silva, cristão-novo de Lisboa, que abriu caminho aos créditos obtidos nos Países Baixos.  No regresso de Amesterdão que Vieira inicia a escrita, nunca acabada, da “História do Futuro” (1649), e em 1659 da carta “Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo”, pela qual será processado pela Inquisição (a partir de 1663). O “Quinto Império (profetizado no Livro de Daniel, sucedendo aos Impérios Assírio, Persa, Grego e Romano) localizar-se-ia na Terra, na totalidade geográfica da Terra, e não no Céu”, mercê da convergência de vontades de um Imperador espiritual e de um Imperador temporal, no sentido da criação de um estado de justiça e santidade, de paz universal e de sobriedade. As personagens encontram-se nos diversos mundos e responde a mil enigmas.

 

ABC da língua portuguesa.jpg>> Abecedário da Cultura da Língua portuguesa no Facebook

A VIDA DOS LIVROS

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  De 21 a 27 de agosto de 2023

 

O “Dicionário de Autores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa” de Aldónio Gomes (de saudosa memória) e Fernanda Cavacas constitui um documento fundamental para a compreensão da diversidade da Língua Portuguesa.

 

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O CASO DE ALFREDO MARGARIDO

Se nos ativermos ao «Dicionário de Autores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa» do mestre Aldónio Gomes (nome que não pode ser esquecido, e cuja obra continua a exigir a maior atenção) com Fernanda Cavacas, Alfredo Margarido usou na sua extensa e profusa obra, além do seu próprio nome, pseudónimos como Lúcio Câmara, Manuel Kandiba e Paulo Saraiva, sendo inicialmente técnico agrícola e jornalista, e depois licenciado e doutorado em França. Expulso de Angola por motivos políticos, viveu muitos anos em Paris, tendo sido investigador, pensador, poeta, romancista, ensaísta e crítico literário. «É reconhecido como um dos históricos dos estudos literários africanos com Mário de Andrade e Manuel Ferreira». E como não lembrar Manuela Margarido, sua primeira mulher, figura essencial nas lusofonias africanas, que conheci pessoalmente na UNESCO, e que teve uma presença forte na ligação à cultura africana de Alfredo Margarido?

Eugénio Lisboa bem o definiu: «Era, como os melhores, um monte de contradições: um rezingão inteligente que disfarçava os seus afetos, um cultor da palavra acerada e perscrutadora que escondia, com pudor e alguma malícia, o seu talento de artista plástico, um erudito sólido que fazia, com desenvoltura, poesia e romance, um provocador profissional que amava o convívio e sabia cultivar as amizades, um professor que gostava de desarrumar a sabedoria estabelecida e convidava à irreverência fundamentada, em suma, um cavalheiro de opinião diferente, sempre preparado para nos contradizer, com um sorriso malicioso e uma voz mansa que amaciava o tumulto». Dificilmente se poderia dizer melhor. Estávamos diante de uma inquietude iluminante, de quem tudo lia e por tudo se interessava. A sua obra que tem contado com a extraordinária apresentação de Isabel Castro Henriques, ilustra bem essa faceta de conhecimento e desassossego. Trata-se de um repositório tocante e exaustivo, onde podemos acompanhar um percurso extraordinário de quem foi «um dos pensadores mais lúcidos da nossa realidade» (Perfecto Cuadrado).

 

UM LONGO DESASSOSSEGO

Falei longamente com o meu querido amigo Eduardo Lourenço sobre Margarido. Era sempre um fascínio ter esta companhia, depois de termos andado às voltas com o papel dos mitos na interpretação da História. Com uma atenção especial a todos os pormenores, foi exprimindo uma sincera admiração pela capacidade de compreensão e de argúcia de Alfredo Margarido, sempre comparando a evolução dos textos e da reflexão com a belíssima obra gráfica. Há uma rara sensibilidade manifestada nos desenhos expostos, o surrealismo é assumido com doçura e ironia, o colorido suave ilustra uma espécie de representação onírica da literatura – o que entusiasma Eduardo: aqui, os vários heterónimos pessoanos num turbilhão ou num caracol de cabeças; acolá Caeiro pastor de rebanhos, mais adiante Feernando Pessoa passeando sobre os telhados ou segurando um balão… Luciana Stegagno Picchio fala de «uma notável técnica de aguarelista», que aproveita «a lição surrealista, modalidade portuguesa de uma geração ilustrada por Alexandre O’Neill ou um Mário Cesariny».

Entre a descoberta dos textos, das referências, das pequenas e grandes audácias, os desenhos entusiasmam o visitante. Eduardo Lourenço recorda o primeiro contacto, no já distante ano de 1953, através de «Poemas com Rosas». Depois lembra o surrealismo em Luanda, com Cruzeiro Seixas («o Margarido era muito sociável e eu preferia o sol e o mar, encontrar um estranho búzio, as noites e a gente jovem»). Perfecto Cuadrado fala da singularidade da expressão artística de Alfredo Margarido. «Lúcido, crítico e livre, poeta no olhar, no pensar e no dizer uma realidade que continua a precisar de uma profunda reabilitação desde os territórios concêntricos e sucessivos do moral, do ético, do político e do estético». E convém lembrar Teixeira de Pascoaes, que tanto entusiasmou o jovem A. Margarido - «a luz é cada vez mais luz». Eduardo Lourenço recorda a importância e o prestígio dos textos no «Diogène» (como «Incidences socio-economiques sur la poèsia noire d’expression portugaise» de 1962) - e vem à baila Marc Ferro a dizer: «Il avait la sagacité de Fernand Braudel, l’inventivité d’Eric Hobsbawm, la curiosité multiforme de Roland Barthes». Lá estão os «Cadernos de Circunstância», com Manuel Villaverde Cabral e Fernando Medeiros.

Os textos têm uma rara pertinência, e ao vê-los em conjunto, percebemos que o autor se manteve sempre atento aos novos fenómenos, sabendo que o desenvolvimento moderno precisa de autonomia e diálogo, de singularidade e reciprocidade. E Eduardo Lourenço aponta-me uma frase, que obriga a um sério repensar. Sinto que se coloca abertamente ao lado de Margarido: «A nossa modernidade, criada pelas independências africanas, obrigou o país a cortar uma parte substancial dos seus laços com o Atlântico, que foi sempre o Oceano das nossas grandes incursões, mesmo se o Índico não pode ser afastado desta reflexão (…). A invenção da lusofonia procura com algum desespero devolver-nos uma parte desse espaço (…). A maior parte dos missionários da lusofonia agem como se não tivéssemos atrás uma longa história de relações polémicas com aqueles que escolheram falar português». Este é um tema fulcral. E. Lourenço sente que ali estão as suas preocupações fundamentais: «A língua nasceu em Portugal e pertence aos portugueses. Não se consegue aceitar o princípio simples de que a língua pertence àqueles que a falam! Aceitemos a leitura crítica do passado, o que será sempre ocasião para impedir que alguns dos nossos melhores vícios se transformem em virtudes». É esse aguilhão da crítica que tem de funcionar, para tirar as lições dos erros e para fazer dos mitos motivo de compreensão.

 

Guilherme d'Oliveira Martins