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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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Z.   ZOMBAR

 

O António Alçada Baptista era um admirador do Millôr. Muitas vezes invocava o seu humor para pôr tónica na liberdade, e na necessidade de não nos levarmos demasiado a sério. Eram inesgotáveis seus comentários. O Alexandre O’Neill concordava plenamente e o António Tabucchi insistia em que Millôr demonstrou que a cultura da língua portuguesa não era apenas lírica e trágica, mas também picaresca. Daí a importância do escárnio e maldizer, desde as nossas raízes, e de muitos diálogos vicentinos, desde o Auto das Barcas ao Pranto de Maria Parda. Millôr Fernandes era um bom exemplo. Dizia ele: “Em geral quando a gente encontra um espírito aberto entra e verifica que está vazio”. E ainda: “A vida consiste de metade de mentiras que a gente é obrigado a dizer, e metade de verdades que a gente é obrigada a calar”. “O passado é o futuro usado”. “Uma criança está deixando de ser criança no dia em que começa a fazer perguntas que têm respostas”.

Millôr Fernandes (ou Milton Viola Fernandes) nasceu em 16 de agosto de 1923, no subúrbio do Rio de Janeiro. Seu pai — Francisco Fernandes — era um espanhol naturalizado brasileiro. Porém, faleceu em 1925, deixando o escritor órfão. Assim, para sustentar os filhos, a mãe foi obrigada a trabalhar como costureira. Millôr iniciou sua vida escolar em 1931 e, três anos depois, apaixonou-se pelas revistas de quadradinhos. Nessa época, já mostrava o seu talento como ilustrador. No entanto, em 1935, perdeu também a sua mãe. Então, o menino foi morar com a família de seu tio materno. Em 1938, o jovem Millôr ingressou no mercado de trabalho, como paquete num consultório médico e na revista “O Cruzeiro”, além de iniciar seus estudos no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. Nesse ano, foi o vencedor em um concurso de contos da revista “A Cigarra”, onde viria a trabalhar. Um dia disse: “Quando um técnico vai tratar com imbecis deve levar um imbecil como técnico”. “É porque ninguém gosta de trabalhar que o mundo progride” – como já dizia Confuncio.

No ano seguinte, escreveu para o “Diário da Noite” e tornou-se diretor das revistas “A Cigarra”, “O Guri” e “Detetive”. Já em 1942, fez sua primeira tradução: “A estirpe do dragão”, da escritora americana Pearl S. Buck (1892-1973). Em 1943, terminou seus estudos no Liceu e retornou à revista O Cruzeiro. Cinco anos depois, em 1948, viajou para os Estados Unidos, onde conheceu Walt Disney (1901-1966). Nesse mesmo ano, casou-se com Wanda Rubino e, em 1951, fez uma viagem pelo Brasil, durante quarenta e cinco dias, em companhia do escritor Fernando Sabino (1923-2004), com o intuito de conhecerem melhor o país. “Quando, afinal, nos acostumamos com uma moda é porque ela já está completamente em decadência”. Em 1952, Millôr conheceu ainda a Itália e Israel. A primeira peça teatral de Millôr — “Uma mulher em três atos” — estreou-se em 1953. A partir de então, iniciou uma carreira bem-sucedida no teatro. Também apresentou o programa de televisão Universidade do Méier em 1959. Disse então: “Os clássicos mudam muito de opinião para agradar os que os interpretam”. No ano seguinte, a sua peça “Um elefante no caos” estreou após censura. Com ela, Millôr Fernandes ganhou o prémio de melhor autor da Comissão Municipal de Teatro.

O dramaturgo e ilustrador conheceu o Egito em 1961. Dois anos depois, esteve em Portugal. Nesse mesmo ano foi trabalhar no Correio da Manhã e em 1964, criou a revista Pif-Paf. “Idiota é o indivíduo que ouvindo uma história com duplo sentido não entende nenhum dos dois”. E “chato é o indivíduo que tem mais interesse em nós do que nós nele”. “Nada é mais falso que uma verdade estabelecida”. Durante a sua vida, teve uma vasta colaboração na imprensa ligando o comentário breve e a ilustração irónica: O Jornal, Tribuna da Imprensa, Veja, O Pasquim, IstoÉ, Jornal do Brasil, O Dia, Folha de S. Paulo, Bundas e O Estado de S. Paulo. Também em Portugal foi celebrada a colaboração semanal no “Diário Popular”. Da década de 1960 até a sua morte, em 27 de março de 2012, o teatro e a televisão foram para ele importantes meios de expressão do artista. E deixou um especial alerta: “Morrer rico é extrema incompetência. Significa que você não usufruiu ou pelo menos que não usufruiu todo o seu dinheiro. Além disso, um rico que gasta tudo o que tem antes de morrer, livra os seus herdeiros do odioso imposto de transmissão”. Mas também deixou escrito: “Se agir sempre com dignidade pode não melhorar o mundo, uma coisa é certa, com dignidade, haverá na terra um canalha a menos”. “Não ter vaidades é a maior de todas”. “Ser diplomata é discordar sem ser discordante”. “Pontual é alguém que resolveu esperar muito”…

Como disse José Paulo Cavalcanti: “Millôr era amigo certo de amigos incertos. Homem reto, apesar do empeno da coluna. Que sentia dores e quase todos os seus derivativos – sobretudo amores, andores e ardores. Apreciador de bolo de rolo; e, para ser justo de outros bolos e outros rolos. Alguém que acreditava na bolsa dos valores e nas boas ações. Que não gostava de roubar nem o tempo dos outros. Magro no corpo. E gordo nos sentimentos. Pobre, não de espírito. E rico, até de ilusões perdidas. Homem justo em uma vida injusta, onde os dias passam tão devagar e os anos passam tão depressa. Dizem que Millôr morreu? Impossível. Que Millôr é terno. Eterno. Viva Millôr”.

Zombar era seu ofício, não como modo de apoucar, mas para dar valor a quem o merece e de tornar claro quem não o merece. Zombar é cuidar da verdade. “O último refúgio do oprimido é a ironia, e nenhum tirano, por mais violento que seja escapa a ela. O tirano pode evitar uma fotografia, não pode impedir uma caricatura. A mordaça, aumenta a mordacidade”.

 

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ANTOLOGIA

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A GUERRA ÀS AVESSAS
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
 
1 - Quanto mais penso nesse filme, mais espantado fico. Na verdade, nem é no filme, relativamente banal e ensosso, mas no fim do filme. Se há, não conheço uma figura semelhante. A raiz quadrada de um número sem raiz quadrada. "Três quartas de cinema" ou "três quartas partes pretas de lã carneira?". Não estou a louvar nada nem a simplificar nada, embora as citações venham do poema de Cesariny, de que me lembrei a páginas tantas por razões que explicarei lá para o fim desta página.
É certo que estou no princípio e por isso convém que me explique antes que se faça ainda mais tarde.
 
2 - O filme, de que vos poupo o título original em russo, chama-se qualquer coisa como "Às Seis Horas da Tarde, Depois da Guerra", a acreditar nas traduções ocidentais, já que, antes deste Janeiro, nunca tinha sido exibido em Portugal. Realizou-o um certo Ivan Pyriev (1901-1968) em 1944, ou seja, há 60 anos. Passou num ciclo que a Cinemateca está a finalizar, dedicado aos gelos e degelos do cinema soviético entre 1926 e 1968. Ou seja, a filmes que ou foram proibidos pela censura estalinista e dos camaradas que se seguiram, ou a filmes que foram mudados de cabo a rabo pelas mesmas censuras (em certos casos, por várias vezes e com cortes diferentes) ou a filmes que, pelo contrário, de tão perto seguiram a linha oficial que o tempo os tornou inacreditáveis e ainda mais reflectores que as obras tesouradas.
Quando se programam ciclos destes há riscos vários. Os mais ingénuos ou os mais distraídos acreditam que vão ver filmes de resistentes, que heroicamente denunciaram Estaline nos anos 30, 40 ou 50, Krustchev nos anos 50 e 60, ou Brejnev nos anos 60. Basta pensar duas vezes para perceber que filmes desses jamais podiam ter existido na União Soviética. Quem pensasse em filmar um plano sequer de crítica explícita ou implícita já estava na Sibéria (na melhor das hipóteses) antes de pegar na câmara. O que foi proibido ou censurado foi-o por razões circunstanciais, na maior parte dos casos difíceis de detectar a esta distância temporal e sabendo-se o que se sabe hoje. Aprende-se mais com os ortodoxos do que com os humilhados e ofendidos. Pyriev era desses ortodoxos. Um labrego segundo os amigos, mas um labrego com talento, que sabia do ofício, o poder prezou e o público - que-tem-sempre-razão - adorou. Vários filmes dele foram sucessos colossais na URSS, com muitos milhões de espectadores, coisa de povoar os sonhos dos gémeos lusos do século XXI. "Às Seis Horas da Tarde, Depois da Guerra" foi um dos maiores. Filmado em 44 - em plena guerra e não depois dela -, conta a história de um bravo soldado russo (no cinema soviético, todos os soldados são bravos) que se apaixona por uma corajosa enfermeira (no cinema soviético, todas as enfermeiras são corajosas). Encontram-se por aqui e por acolá, cantam muito, na boa tradição do musical e, lá para o meio do filme, combinam casório para o fim da guerra. No dia desse fim, marcam encontro numa ponte de Moscovo, às seis da tarde. Mas eis que o soldado fica sem uma perna em combate. Como alma nobre que era, decide que não vai impor um inválido à bela enfermeira. Um amigo que lhe vá explicar que ele morreu, que ela não pense mais nele. Mas os amigos são para as ocasiões. A meio da piedosa mentira, o portador da má nova arrepende-se do que está a mentir. Conta-lhe a verdade e a rapariga corre para o hospital, para lhe jurar que não é perna a mais perna a menos que a aquece ou arrefece. Chegou a tempo. O soldado pensou melhor e achou-se egoísta, individualista e pequeno-burguês. Repetem a jura anterior. Só que, depois, é a rapariga quem apanha com um estilhaço e o espectador é levado a crer que ela morreu. O soldado nada sabe. E, às seis da tarde, no dia do fim da guerra, lá está na ponte, à espera da noiva. Passam as 6, passam as 7 e nem novas nem mandados. Mas filmes destes, a leste como a oeste, fizeram-se para acabar bem. Quando protagonista e espectadores já desesperam, a moça, supõe-se que incólume, aparece-lhe e lá vem o abraço e beijo finais. É evidente (até por este resumo o é, quanto mais pela visão do filme) que Pyriev viu muito cinema americano. Concretamente viu "Love Affair" de McCarey (1939), obra que, mai-lo seu "remake", "An Affair to Remember" do mesmo McCarey, e mai-los "remakes" feitos depois desse, suponho conhecida pela maioria dos meus leitores, Charles Boyer (ou Cary Grant) a combinar encontros no Empire State Building, com Irene Dunne (ou Deborah Kerr) a ser atropelada, a ficar paraplégica e a decidir desaparecer para não estragar a vida ao amado.
"Às Seis Horas da Tarde, Depois da Guerra" é uma variação sobre o mesmo tema, história de azares e de sortes.
 
3 - Mas não é isso que me embasbacou. Não precisei de chegar a esta idade para saber como o longo braço de Hollywood chegou até ao país dos comunistas e como os filmes mais exaltadores da glória do proletariado seguiram receitas capitalistas, disfarçadas com temperos locais. O que é inédito é que, em 1944, quando ainda havia tropas alemãs em território russo e o desfecho embora previsível não fosse ainda de favas contadas, Pyriev não tenha hesitado em figurar o dia V, como se todo consumado fosse.
Eu sei que não faltam na história do cinema (até na história do cinema soviético) representações de futuros longínquos, isso a que se costuma chamar "ficção científica". Eu sei que ficções do real ou com o real foram o pão-nosso de cada dia. Mas nenhum filme ocidental, dos anos da guerra, ousou jamais mostrar o fim, antes de o fim chegar, ou deu dois passos em frente para olhar do futuro vitorioso o passado sangrento. Também nunca houve - nem nos mais delirantes filmes de propaganda anticomunista - representações da queda do Kremlin ou da queda do Muro. Neste caso, Pyriev não hesitou. Em 44, mostrou 45, na guerra mostrou a paz. Há quem diga que o fez para dilatar a crença de que o dia da vitória estava próximo. Afinal de contas, a "Marselhesa" ("le jour de gloire est arrivé") tanto se cantou no início das grandes guerras como no fim delas. E, como Pyriev até nem se enganou muito (a Alemanha rendeu-se um ano depois da estreia do filme), podemos absolvê-lo dessa antecipação pela premonição. Porque é que eu fiquei tão embasbacado?
 
4 - Precisamente, como já disse, por essa sequência final. Séculos de cinema (passe o exagero) habituaram-nos a ver, documental ou ficcionada mente, o dia da Vitória como um dia de multidões transbordantes, enchendo as ruas, com soldados e paisanos abraçando-se furiosamente, num 25 de Abril em tamanho sobrenatural. A tamanha festa e a tamanha alegria. Tudo o que simbolicamente foi captado na lendária fotografia que deu volta ao mundo do marinheiro e da rapariga em abraço tremendo. Pyriev, em 44, não tinha milhares de figurantes nem podia filmar nas ruas de Moscovo. Que fez ele? Construiu uns "décors" com a ponte tão citada no filme, ao fundo da qual uma transparência dava a sugestão do Kremlin, iluminado por holofotes. Agarrou em duas dezenas de figurantes, de ambos os sexos, e pô-los a passear de braço dado pela dita ponte. Casais jovens, casais de meia-idade, como domingueiros, como se andassem por ali a ver as vistas. Em primeiro plano, o herói da perna de pau, muito sozinho e muito ansioso. Nalguns cantos, outros vultos solitários, ora de mulher, ora de homem. À vez, vinham chegando os pares esperados pelos ditos cujos. Abraços e beijos e lá iam a passear, juntando-se aos outros. Até que só ficava sozinho o protagonista. Caía a noite e os casais iam para a noite deles, sempre vagarosos e emburguesados, com passos de um coro de ópera convencional, mais se assemelhando a espectros do que a humanos. E, quando por fim chegava a enfermeira, o abraço era tão púdico e tão desengraçado como só o cinema soviético filmou abraços e beijos. Mas tratava-se da girândola final. Pyriev não o esqueceu e, para a sublinha, guardou para esse momento uma largada de fogo-de-artifício digna da festa da Senhora dos Remédios em Forno de Algodres, sem desprimor para a Senhora e para o forno. Na banda sonora, muitos bum-bum-bum. Até encadear com a palavra fim. E é essa sequência que não deixa de me perseguir desde o dia 7 de Janeiro. No país do "socialismo", na "pátria do povo", na terra dos sovietes, o fim da guerra foi celebrado por antecipação, sem povo, sem operários, sem camponeses, sem massas, sem qualquer desordem, sem qualquer alegria, a não ser a alegria breve de uns casais de namorados. Moscovo é uma cidade fantasmagórica, inexistente para aquém e para além da ponte sombria e soturna. Ou seja, Pyriev imaginou tudo menos uma real festa popular. É totalmente surrealista, no sentido pejorativo da palavra. Fez frio e medo. Muito frio e muito medo. Mas, pensando bem, talvez esteja certo. Para voltar a Cesariny e ao surrealismo, na verdadeira acepção da palavra: "Porque é que a enfermeira compra do Alves Redol quando está a pensar nas pernas e no peito do louro galã?" E nem sequer nisso pode mostrar que pensa. Na URSS, qualquer festa espontânea era espontaneamente inimaginável.

16 de Dezembro 2004 Público