Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Quando iniciámos este folhetim, invocámos Ruben A., como eterno fazedor de fantasmas. “A Torre da Barbela” é o melhor romance português sobre fantasmas. Falemos, pois, do seu Autor. "Sedutor fascinante de inteligência e sensibilidade", chamou-lhe Mário Soares. Em bom rigor, a biografia de Ruben Andresen Leitão é digna de Galsworthy. E a sua lógica, um exercício de G. K. Chesterton. Sophia de Mello Breyner Andresen, sua prima direita, recorda o Porto, o Campo Alegre, esse lugar olímpico, com uma inefável ternura: "para uma criança, aquela casa e aquele enorme jardim com os altíssimos plátanos, as tílias, o carvalho, ao lado do ténis, as camélias, o roseiral, o pomar, as adegas, o pinhal, os morangos selvagens, eram um mundo, um reino que em nós permanece como uma inesgotável memória inspiradora". E essa saga da Quinta do Campo Alegre, porque nitidamente romanesca, teve também o dramático de um tiro de pistolão, do fio de armas de fogo mandado instalar por Dona Joana Andresen contra os ladrões, que atingiu o irrequieto Rubinho, deixando-o no território incerto dos mártires. Até que, em março de 1937, faleceu a coluna dorsal daquele mundo, a avó Joana, a "Velha Máquina", que deixou a Ruben, como testamento, a "ânsia desmedida de partir, de romper horizontes".
Ruben é o "sportsman", a promessa do golfe e do "lawn-tennis", que recorda as lições de Adolfo Casais Monteiro. Nas vésperas da Guerra, o jovem incrédulo, em viagem pelo território do drama, pergunta-se: "Guerra?! Pensava eu: que coisa estranha! Guerra? Este mundo quer a Guerra? Para que é que servem os homens inteligentes?". A verdade é que tudo se precipitaria. Agostinho da Silva, o sábio visionário, torna-se grande referência para Ruben… "Trazia livros, deixava-os ficar, como quem deixa ficar maço de cigarros para tentar o vício"… E o vício entrou. Um dia, da boca de Manuel Torre do Valle, "o mais notável tipo da minha geração", ouve dois poemas de Fernando Pessoa, publicados na "Presença", e rende-se a quem passa a considerar como o maior poeta português. E descobre Proust. Novo deslumbramento. Ruben faz admissão a Direito e a Letras. Ao saber da entrada no Convento de Jesus, não tem dúvidas, fica em Histórico-Filosóficas. Mas aí sofrerá o julgamento absurdo de um tal Matos Romão, lente de Psicologia, que o obriga a rumar a Coimbra. "Lisboa fica de luto sem o Rubirosa" e os amigos oferecem-lhe um jantar de despedida nos "Anarquistas"… Torre do Valle está na sombra, mas não aparece. É esse o tempo das grandes leituras ("Eça de fio a pavio, através do António Seabra"), mas sobretudo o do grande arrebatamento pelos modernistas - Rimbaud, Éluard, Sá-Carneiro, Almada… Em Coimbra, funda a primeira República supra-realista em homenagem a Dali, "Babaou - une maison surréaliste".
Tem uma curiosidade intelectual insaciável. Termina o curso. Em Pascal procura "desvendar a luz no campo das trevas" - porque "quando encontramos as 'razões do coração' podemos ter a certeza que dentro de nós qualquer coisa existe que nos transcende". Começa como professor de francês. Ensina, entusiasma os alunos, lê e sonha. Mas vem-lhe a vontade de emigrar. "Emigrava com a saudade de um país geograficamente encantador, inveja dos estrangeiros, mas que à escala humana só com uma lente é possível desvendar a inteligência das coisas, do milagre". A Inglaterra, com que se relaciona, está destruída pela guerra. No King's College conhece Charles Boxer, de quem se torna amigo. O entusiasmo e a sua cultura causam deslumbramento. De Fernão Lopes a Fernando Pessoa, passando pela Geração de 70, Ruben reflete sobre o destino de Portugal… Entretanto, morrera Manuel Torre do Valle, vítima de difteria, na flor da idade e no auge da esperança. É uma perda irreparável. Nas margens do Tamisa, cultiva o inglês, adapta-se ao frio, mata saudades da Pátria, indo buscar ao Aeroporto o seu primo Ruy Leitão e Menez num esplendoroso Rolls-Royce alugado. D. Pedro V serve-lhe de pretexto para frequentar o Castelo de Windsor. Em cada dia que passava mais admirava o reformador-tipo, o nosso primeiro moderno. Ouviam-se as suas "Peregrinações Inglesas" na BBC. Visita Ruy e Menez em Washington, lê Dickens, Dostoievski e Eça, nas margens do Potomac e cada vez mais se convence de que Shakespeare é o primeiríssimo surrealista. Por coincidência, encontra-se com T.S. Eliot… Em 1949, nasce o nome Ruben A., com o primeiro volume das "Páginas" da Coimbra Editora. Mas o segundo volume (1950), caído nas mãos do ditador, vai determinar a ordem para regressar… Para Salazar, "o livro, ou é de um louco ou de um sujeito que, tendo dinheiro para pagar um livro de dislates, se propôs rir-se de todos nós". Os amigos, os colegas ingleses, a gente de bem mexe-se. O ditador retrocede: "o maluco do homem tem habilidade e competência para o cargo". E fica. Mas o mal estava feito. Ruben parte em 1952: "restava-me arrumar as malas, despedir-me. (…) Paga-se muito caro por ter ideias".
Ruben vê-se desempregado. Refugia-se na Embaixada do Brasil, na publicação "Artes e Letras", que coincide com a renovação de Juscelino Kubitschek e com o período rico de abertura e de pujança democrática. O Brasil contemporâneo de Guimarães Rosa é o grande repositório da cultura da língua. Em 1954 sai o "Caranguejo", de que Eduardo Lourenço dirá: "não foi nada senão bicho insólito, entrando às arrecuas e aos pinos na policiada praia lusitana". Tem uma paixão forte pelo património cultural português. António Quadros chamar-lhe-á por brincadeira Dr. Jeckyl e Mr. Hyde, o médico e o monstro - "mas a verdade é que me acuso por ter descurado completamente o Dr. Jeckyl, em exclusivo favor dos imaginosos textos impressionistas, memorialistas ou romanescos do Mr. Hyde, o Monstro, cuja leitura, além de tudo o mais, era divertidíssima".
Escreve das melhores memórias autobiográficas da nossa literatura - "O Mundo à Minha Procura". E nasce "A Torre da Barbela" – romance do absurdo genial nascido em Esteiró."A família Barbela identifica-se com a história de Portugal, com os oito séculos da história de Portugal. Os homens mais notáveis do meu romance (confessa o autor) têm, como os da história de Portugal, as suas estátuas. O que dou eu aos Barbelas? Vida. De noite estão vivos, como qualquer de nós, têm os mesmos problemas e mais um, este irremediável: sabem que vão morrer ao nascer do Sol". Ruben tinha horror à mediocridade. No dizer de Pina Martins, severo julgador, tinha "entusiasmo por coisas novas", insistindo em "rasgar horizontes".
O falecimento com 94 anos de Hélène Carrère d’Encausse, Secretária Perpétua da Academia Francesa, autora de “L’Empire Eclaté”, (Flammarion, 1978) constitui oportunidade para homenagear uma referência maior da cultura contemporânea.
O falecimento com 94 anos da Secretária Perpétua da Academia Francesa constitui oportunidade de homenagear uma referência maior da cultura contemporânea, pela qualidade da personalidade e da obra da historiadora, mas também por ocorrer num momento em que os acontecimentos ligados à guerra da Ucrânia têm gerado uma perniciosa e injusta desconfiança relativamente à cultura russa, que é riquíssima e não pode confundir-se com as tentações do neoimperialismo de qualquer governação. Hélène Carrère d’Encausse deixou-nos uma obra muito importante, da qual resulta uma ideia fundamental – o reconhecimento da relevância da componente russa na História europeia. Ao contrário de um certo discurso radical russófilo, não é possível compreender a História da Europa e a cultura do velho continente sem o reconhecimento dos grandes autores de origem russa, na literatura, na música, nas artes ou no pensamento. A historiadora agora desaparecida deixou-nos uma obra muito rica, que demonstra a necessidade de construir a Europa do futuro, através de um entendimento da complementaridade das raízes euroasiáticas da nossa cultura da sua base indo-europeia. Haverá alguma dúvida sobre a importância de Tolstoi, Dostoievski, Chestov, Berdiaev, Tchaikovsky, Kandinsky ou Chagall na alma europeia? A guerra fria e a sua evolução perturbaram esse entendimento natural, mas não o podem destruir. Quando H. Carrère d’Encausse foi recebida na Academia Francesa em novembro de 1991, parecia abrir-se um novo horizonte, que o tempo esbateu. Então a empossada afirmou: “Faço parte de uma geração que, chegada à adolescência no final da última grande guerra, viu-se confrontada com uma infelicidade europeia. A Europa estava amputada de uma parte de si mesma, estava-se perante o Ocidente raptado, como afirmou Milan Kundera. Essa era a nossa perspetiva. Sabíamos que o passado estava abolido, e que o pensamento e os génios antigos não podiam ter o direito de cidade, a não ser para legitimar uma utopia assassina. (…) Dezenas de milhares dos nossos semelhantes foram lançados no inferno gelado dos campos, com a horrível e degradante obrigação de proclamar que essa infelicidade era uma verdadeira felicidade”. Então, no modesto lugar de estudiosa da História, a investigadora disse ter-se esforçado para contribuir a fim de que fosse preservada a memória desses homens e povos que ficaram privados dela. Ora, com o fim do império soviético, um sonho de liberdade poderia estar a realizar-se. Mas a académica não tinha demasiadas ilusões. Nada seria simples nesta nova “Primavera dos Povos”, que apenas acabava de nascer. Haveria, por certo, o hábito do ódio que alimentaria muitos conflitos, e por isso, apesar dos escombros, acreditava nos homens de boa vontade, que tentariam, apesar do caos e da miséria, reconstruir um universo onde a dignidade humana recuperasse o seu lugar.
PALAVRAS PROFÉTICAS
Estas palavras soaram a proféticas, já que o tempo recente confirmou a incerteza e o medo…. Nascida em Paris, na família Zourabichvili, a 6 de julho de 1929, Hélène teve uma infância dividida entre a memória grandiosa do tempo dos Romanov e as provações da condição de emigrados pobres da revolução bolchevique. A família instala-se em França, vinda da Geórgia, com passagem por Istambul, depois da invasão da República Democrática da Geórgia pelo exército russo no fim do inverno de 1921. A jovem aprende a ler em francês, mas também em russo. Seu pai, Georges, filósofo diplomado em economia política começa por ser condutor de táxi em Paris, antes de criar uma empresa de importação-exportação em Bordéus, mas o domínio de cinco línguas levam-no a ser intérprete durante a ocupação pelas autoridades alemãs, facto que levará ao seu desaparecimento no fim da guerra. Hélène vem para Paris com sua mãe, vivendo de início na comunidade ortodoxa russa. Nesse tempo, Maurice Bardèche, cunhado de Robert Brasillach, dirá dela: “Tinha uma alma de jovem heroína, mas também era realista, decidida e lúcida”. Estudante bem classificada no Liceu Moliére, obtém uma formação sólida que prossegue no Instituto de Estudos Políticos. Sendo apátrida, obtém a nacionalidade francesa quando chega à maioridade, recordando essa circunstância em 1987 quando participa na Comissão da Reforma do Código da Nacionalidade. Casa-se em 1952 com Louis Carrère d’Encausse e interessa-se pelo estudo dos povos da Ásia Central e dos emiratos uzbeques, desde Alexandre II a Lenine, o que constituirá tema da sua tese de doutoramento, sob a orientação de Maxime Rodinson (1963). A editora Armand Colin publica o estudo sob o título “Reforma e Revolução entre os muçulmanos do Império Russo: Bukhara 1867-1924” (1966). A historiadora aproveita esse tempo para viajar pelas repúblicas periféricas da União Soviética, do Cazaquistão ao Afeganistão, passando por Tachkent, atual capital do Uzbequistão. Os seus estudos revelam-se fundamentais, pelo conhecimento das populações e pelo entendimento aprofundado de meio século do sistema soviético, bem evidenciado na obra “A União Soviética de Lenine a Estaline 1917-1953” (ed. Richelieu, 1972), reeditada em dois volumes pela Flammarion em 1979, centrada no tema “a ordem pelo terror”. Contudo, depois de publicar o estudo sobre a política soviética no Médio Oriente (1955-1975), em 1976, é com a saída do célebre “L’Empire Eclaté” (Flammarion, 1978) que Hélène Carrère d’Encausse se torna uma figura mediática de primeiro plano. Apesar de não se concretizar a sua tese fundamental – o enfraquecimento da União Soviética pela pressão demográfica das repúblicas asiáticas muçulmanas – a verdade é que a contestação política na Polónia com o Sindicato Solidariedade e a ação de Lech Walesa, bem como a eleição de João Paulo II, um polaco, como Papa anunciam mudanças profundas no mundo soviético, que trazem os temas da historiadora para a ribalta. Um significativo conjunto de estudos ilustram a urgência dos temas que a ocupam: “O Poder Confiscado, governantes e governados na URSS” (1980); “O Grande Irmão: a União Soviética e a Europa sovietizada” (1983); “Nem Guerra nem Paz: o Novo Império Soviético ou do bom uso da distensão” (1986), “O Grande Desafio: os bolcheviques e as nações 1917-1930” (1987), além de um estudo menos conhecido, mas essencial, sobre a desestalinização de Krutchev, que mais tarde constituirá novo sucesso – “A Segunda Morte de Estaline” (2006). Mas a fulgurante síntese intitulada “Le Malheur russe: Essai sur le meurtre politique” (Fayard, 1988), se lida atentamente nos dias de hoje, faz luz sobre a crise russa. É verdade que a análise do poder sanguinário russo apresenta lacunas, mas a transposição da experiência soviética para história ancestral do czarismo em “Os Romanov – Uma dinastia sob o reino do sangue” (2013) obriga a tentar entender o nevoeiro espesso que rodeia a ação de Vladimir Putin. Trata-se de uma situação muito complexa, a exigir a recusa de qualquer simplificação. Foi Henri Troyat o grande defensor da eleição de Hélène Carrère d’Encausse para a Academia, sendo eleita em 1990 e recebida poucos dias depois da morte da União Soviética (1991). Para o punho da sua espada, da autoria do artista da Geórgia Goudji, escolhe o versículo bíblico “Bem-aventurados os pacíficos”. Mulher de saber e autoridade deixa na sua obra vasta muitas pistas relevantes para a compreensão da gravíssima crise europeia e para as suas saídas, obrigando à recusa do reino do sangue e à salvaguarda da dignidade, tão esquecida… Grande mulher das artes e da cultura, como afirmou Jack Lang, manteve uma coerência extrema no seu pensamento sobre a necessidade de pensar no futuro da Europa devendo ser um fator essencial de paz, devendo estreitar-se os laços culturais em todo o continente, com recusa do regresso da lógica do “homo sovieticus” e da lembrança em Praga de 1968…