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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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APÊNDICE C.

COUTO (MIA)

 

Mia Couto tem entusiasmo por coisas novas, praticando o bom método de "rasgar horizontes". Recordemos o seu poema sobre o curso do tempo. O jogo das palavras permite-nos compreender melhor a substância do tema. «Velho, não. / Entardecido, talvez. / Antigo, sim. / Me tornei antigo / porque a vida, / tantas vezes, se demorou. / E eu a esperei como um rio aguarda a cheia». De facto, que é o andar do tempo senão a compreensão de que só entendemos as raízes, se percebermos o que a elas nos liga? E é esta relação com as raízes que Mia Couto nos transmite. Ao ver as palavras do avesso podemos perceber melhor o que elas representam.

“Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a terra se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia do sonho”. Ah! como é difícil a relação com o sonho. Terra Sonâmbula (1992) tem como pano de fundo os tempos da guerra em Moçambique, da qual se traça um quadro de um realismo forte e brutal. Dentro deste cenário de pesadelo movimentam-se personagens de uma profunda humanidade, por vezes com uma dimensão mágica e mítica, todos vagueando pela terra destroçada, entre o desespero mais pungente e uma esperança que se recusa a morrer. Mia Couto tratou do tema de Terra Sonâmbula de um modo admirável. A crítica literária considera esta, sem dúvida, como uma das melhores obras literárias escritas nos últimos anos em língua portuguesa, sendo considerado como um dos melhores livros africanos do século XX.

Em "O Mapeador de Ausências" (2020), há um poeta “que vem à procura da sua infância" e que "vai começar a perceber que aquilo que é presente para ele no sentido temporal, nasce da ausência de alguém". Vivemos e depois deixamos o nosso espaço e o tempo. Essa ausência mais não representa do que uma continuidade de vida. E Mia Couto recorda o pai - o jornalista e poeta Fernando Leite Couto - entre outras figuras que, apesar de ausentes, permanecem vivas nas suas memórias. A obra é lançada numa altura em que Moçambique é palco de novos confrontos armados, no centro e norte, apelando a que as histórias das vítimas não fiquem por contar. "Acho importante que a informação transmita não só relatórios sobre as agressões, os ataques feitos por terroristas, mas construa a história das pessoas que estão a ser sacrificadas e não podem ser esquecidas".

Mia Couto disse: «Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai quem me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez. Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.”

Mia Couto é um "escritor da terra", escreve e descreve as próprias raízes do mundo, explorando a natureza humana na sua relação íntima e umbilical com a terra. A sua linguagem extremamente rica e muito fértil em neologismos, confere-lhe um atributo de singular perceção e interpretação da beleza interna das coisas. Cada palavra inventada (como o queixa-andar) como que adivinha a secreta natureza daquilo a que se refere, entende-se como se nenhuma outra pudesse ter sido utilizada em seu lugar. As imagens de Mia Couto evocam a intuição de mundos fantásticos e em certa medida surrealistas, subjacentes ao mundo em que se vive, que envolve de uma ambiência terna e pacífica de sonhos - o mundo vivo das histórias. Mia Couto é um excelente contador de histórias. É o único escritor africano membro correspondente da Academia Brasileira de Letras (ABL), eleito em 1998, sendo o sexto ocupante da cadeira nº 5, que tem por patrono Dom Francisco de Sousa. Atualmente Mia Couto é o autor moçambicano mais traduzido e divulgado no exterior e um dos autores estrangeiros mais vendidos em Portugal. As suas obras são traduzidas e publicadas em 24 países.

O encontro com João Guimarães Rosa foi para ele um abalo sísmico. Em “A Terceira Margem”, Mia Couto observou que o escritor mineiro de “Grande Sertão” tornava a oralidade do sertão no modo de se exprimir literariamente, e Mia Couto viu aí uma aproximação natural e necessária. E pode dizer-se que essa familiaridade é marcante na cultura da língua portuguesa da contemporaneidade. «Os livros de João Guimarães Rosa atiravam-me para fora da escrita como se, de repente, eu me tivesse convertido num analfabeto seletivo. Vimos isso já. Para entrar naqueles textos devia fazer uso de um outro ato que não é “ler”, mas que pede um verbo que ainda não tem nome. Mais que a invenção de palavras, o que me tocou foi a emergência de uma poesia que me fazia sair do mundo. Aquela era uma linguagem em estado de transe, como no caso dos médiuns nas cerimónias mágicas e religiosas. Havia como que uma embriaguez profunda que autorizava a que outras linguagens tomassem posse daquela linguagem. Exatamente como o dançarino da minha terra que não se limita a dançar. Ele prepara a possessão pelos espíritos. Ele cria o momento religioso em que emigra o seu próprio corpo». E neste folhetim de fantasmas temos de voltar atrás para entender Diadorim, mas também Binmarder do velho Bernardim e as centenas de personagens que já nos ocuparam neste tempo inesgotável.

«Velho, não. / Entardecido, talvez. / Antigo, sim. / Me tornei antigo / porque a vida, / tantas vezes, se demorou. / E eu a esperei como um rio aguarda a cheia».

De facto, ao ver as palavras às avessas percebemos melhor o que representam.

 

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FRANCISCO: PEÇO-VOS EM NOME DE DEUS (2)

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Continuamos com os pedidos em nome de Deus feitos pelo Papa Francisco.

 

4. Em nome de Deus peço uma política que trabalhe para o bem comum.

Penso que a Política, com maiúscula, como diz Francisco, constitui um dos serviços mais prestimosos e também mais exigentes, que quase requer a santidade. Por isso, quando vejo tantos, tantos, tantos... na corrida para um lugar na política, prestando-se até a comportamentos por vezes ridículos, se me perguntam se eu acredito que a maior parte o faz para prestar esse serviço ao bem comum, respondo sinceramente: não. Há outros motivos; disse-o quem sabe, Henri Kissinger: “o poder é o maior afrodisíaco”.

Francisco escreve que acredita numa política que “nunca perde de vista o bem comum, o seu verdadeiro e primordial objectivo”, mas que também sabe que para alguns “a política se escreve com minúscula e se transformou numa má palavra”: “pensa-se nas vantagens, no “quanto me dá”, e aí está “um dos males que mais a danificam: a corrupção”. “Não é ilegal que um ser humano se sinta atraído pelo dinheiro, as viagens em primeira classe, as mansões, mas convoco a que na Política se envolvam só os que podem viver com sobriedade e austeridade no seu dia a dia.”

 

5. Em nome de Deus peço que se acabe com a loucura da guerra.

Cita Virgílio que há mais de dois mil anos escreveu que “na guerra não há salvação”, para acrescentar: “a guerra é o sinal mais claro da inumanidade”, “um flagelo, que nunca pode resolver os problemas entre as nações, uma matança inútil com a qual tudo se pode perder e que, em última análise, é sempre uma derrota da humanidade.” Pensa que “a sua persistência entre nós é o verdadeiro fracasso da política.” A guerra na Ucrânia mostra-nos “a crueldade do horror bélico.” A guerra “nunca será uma solução; é também uma resposta ineficaz, nunca resolve os problemas que pretende superar. Vemos que o Iémen, a Líbia ou a Síria, só para citar alguns exemplos contemporâneos, estão melhor do que antes dos conflitos?”

E o escândalo dos gastos mundiais com o armamento, “um dos maiores escândalos morais da actualidade”? “Com a guerra há milhões que perdem tudo, mas há muitos que ganham milhões.” Não podemos continuar “condenados ao medo da destruição atómica; ter armas nucleares e atómicas é imoral.”  É “necessário repensar a ONU e especialmente o Conselho de Segurança para que estas instituições dêem resposta à nova realidade existente e sejam fruto de um consenso o mais amplo possível.”

 

6. Em nome de Deus peço que se abram as portas aos migrantes e refugiados.

Francisco lembra que a sua primeira saída de Roma como Papa foi a Lampedusa e diz aos migrantes e refugiados: “nunca vos esqueci”. O pedido que faz está nestes quatro verbos: “acolher, proteger, promover e integrar”: abrir a porta “dentro das possibilidades de cada país”. É realista e previne contra “as redes de traficantes” e a quem é acolhido pede-se “a aceitação indispensável das normas do país que recebe bem como o respeito pelos princípios de identidade deste”.

 

7. Em nome de Deus peço que se promova e anime a participação das mulheres na sociedade.

Essencial: “As mulheres têm a mesma dignidade que os homens. Em cada um dos cinco continentes. Em cada um dos países. A comunidade internacional não pode continuar a olhar com passividade para as consequências dramáticas de modelos de relação baseados na discriminação e na submissão, que estão na base de que milhares de mulheres e meninas sejam todos os anos submetidas a casamentos forçados, escravidão doméstica e outros ataques à sua dignidade. Outro drama extenso é a mutilação genital feminina. São cerca de três milhões as jovens que a cada ano sofrem esta intervenção”, acrescentando que “é importante que nos impliquemos todos na abertura de espaços às mulheres, se quisermos um futuro fecundo e criativo.”

Aqui, Francisco que me desculpe, mas é preciso perguntar para quando o fim da discriminação das mulheres católicas na Igreja.

 

8. Em nome de Deus peço que se permita e fomente o crescimento dos países pobres.

Clama contra o escândalo: “As dez pessoas mais ricas do mundo duplicaram as suas fortunas durante a pandemia. O 1% mais rico da população mundial concentra 32% da riqueza do planeta... enquanto a metade mais pobre do mundo, no seu conjunto, não chega aos 2% da riqueza, segundo os dados da Oxfam e do World Inequality Report 2022. Os ricos são cada vez mais ricos; os pobres cada vez mais pobres. Este sistema mata, exclui e concentra.” Este é um sistema doente, “calcula-se que um terço dos alimentos produzidos é desperdiçado”, “quase seis milhões de crianças morrem anualmente devido à extrema pobreza.”

 

9. Em nome de Deus peço que se universalize o acesso à saúde.

Cita G. K. Chesterton: “A coisa mais poética, mais poética que as flores, mais poética que as estrelas, a coisa mais poética do mundo é não estar doente.” Infelizmente, conclui com Romano Guardini: “o homem moderno não está preparado para usar o poder com acerto”, pois “o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano em responsabilidade, valores, consciência”.

 

10. Em nome de Deus peço que o seu Nome não seja utilizado para fomentar guerras.

Eu, em relação a um Deus que leve à guerra digo: em relação a esse Deus é obrigatório ser ateu.

 

N.B. Com os melhores desejos para todos, esta crónica despede-se até 7 de Outubro.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 de agosto de 2023