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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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APÊNDICE D

DEDO DE AURÉLIA (O)

 

Como poderíamos aproximar-nos do términus deste folhetim, depois da presença tão forte de Carolina Michaëlis, sem chamarmos à ribalta Aurélia de Souza (1866-1922)?  É uma das personalidades mais marcantes da arte portuguesa, na transição do século XIX para o século XX. A sua obra assume os grandes temas da pintura europeia da época, sendo de destacar a utilização continuada do autorretrato ou da autorrepresentação que se alarga, à semelhança com o que ocorre com os maiores pintores, à construção teatral e onírica de narrativas que envolvem a casa de família e as pessoas das suas relações. Acrescente-se que outro aspeto original da obra de Aurélia é a prática da fotografia como componente, com percursor grau de autonomia, do extraordinário trabalho da pintura.

Não obstante a sua ligação umbilical ao Porto, Aurélia de Souza nasceu em 1866, no Chile, filha de emigrantes portugueses. A artista mudou-se com a família ainda criança para o Porto, sendo sempre considerada à frente do seu tempo, todavia nunca casou, nem teve filhos.

Aurélia foi aluna brilhante da Academia de Belas Artes do Porto e completou a sua formação com uma estada em Paris onde frequentou a Académie Julian (acompanhada pela sua irmã, também pintora, Sofia de Souza). Bem relacionada com o meio artístico e cultural do Porto, participou em exposições em Lisboa, na atitude determinada de se afirmar como uma pintora profissional num meio predominantemente masculino em que as mulheres artistas em princípio não deviam ambicionar mais do que o estatuto subalterno de amadoras.

Aurélia de Souza é um caso especial no panorama da arte portuguesa de finais do século XIX e inícios de XX. Ao contrário de outras mulheres artistas, com quem compartilhou talento, esforço e coragem, a sua vida discreta apenas foi contrabalançada por uma obra que nos surpreende sempre. Uma recente mostra no Museu Soares dos Reis, com curadoria de Maria João Lello Ortigão de Oliveira, apresentou cinco núcleos. O primeiro, “Vidas”, tratou essencialmente do retrato na obra da pintora, correspondendo ao vetor fundamental da sua produção. No segundo, “Espaços”, integraram-se os locais de intimidade que refletiram o cenário a partir do qual teve lugar grande parte da vida de Aurélia de Souza e dos seus talentos na Quinta da China com vista para o Douro. No terceiro núcleo, propunham-se “Temas”, numa obra muito rica que registou uma grande variedade temática de acordo com a grande amplitude dos seus interesses. Finalmente, o último núcleo da exposição, “Cores”, dedicado à exploração do eu, do autorretrato e da autorrepresentação, permite entender a paleta plural usada pela pintora, perante a variedade das paisagens. E a produção de Aurélia de Souza atinge o auge no célebre “retrato do Casaco Vermelho”, finalizando o percurso de homenagem e tornando visível a vida e obra desta fantástica criadora.

Ao seguirmos a obra multifacetada de Aurélia de Souza, compreendemos simultaneamente a identidade cultural da cidade do Porto, de onde houve nome Portugal, o espírito independente da urbe, que foi a única cidade-estado existente em Portugal, o facto de ter sido, ao longo do tempo, capital política e cultural do País – desde a independência, passando pela crise de 1383, pela expansão, pela inserção europeia do comércio do vinho fino, até à vitória do constitucionalismo liberal, ao desembarque do Mindelo (que permitiu a vitória do Cerco do Porto, mas também deu nome à capital da ilha de S. Vicente em Cabo Verde) ao sucesso da causa de D. Pedro IV, à afirmação da liberdade política, económica e cultural, à Regeneração, à Liga Patriótica do Norte, ao 31 de janeiro, à Águia e à Renascença Portuguesa. A riqueza da obra da artista não foi produto do acaso, como não o foi a de Carolina Michaëlis, de Guilhermina Suggia, de Helena Sá e Costa ou de Agustina Bessa-Luís. Em todos os casos, o papel desempenhado por mulheres pioneiras significou a compreensão de que a sua emancipação tinha toda a coerência com o espírito da cidade invicta. E neste folhetim fantasmático, depois de virmos de Entre-Douro-e-Minho, e tendo palmilhado meio mundo, compreendemos que o dedo indicador de Aurélia aponta no sentido da liberdade e da independência. Eis como a arte pode tornar-se libertadora…

 

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

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   Ilustração de Ana Ruepp

 

“Über aller dieser deiner Trauer: kein zweiter Himmel.”

“Por cima de todo este teu pesar: nenhum segundo Céu”
Paul Celan, Die Schleuse (A Eclusa)

 

Paul Celan, Paul Antschel, nasceu a 23 de novembro de 1920, em Bukovina, no Norte da Roménia, no Império Austro-húngaro. Filho de judeus de expressão alemã, ficou a dever a sua paixão pela poesia à mãe, que lhe recitava Novalis e Rainer Maria Rilke. Em 1926 iniciou a frequência da escola primária alemã, tendo sido depois enviado para uma escola hebraica, a Safah Ivriah. Em 1933, após o bar mitzvah, ritual judaico de entrada na adolescência, aderiu a um grupo comunista, responsável pela publicação de uma revista destinada aos estudantes. Em 1938 deu início a estudos de Medicina, em Paris, transitando depois para a Universidade de Czernowitz, onde ingressou como estudante de Filologia Românica. Em 1940, e no decurso da Segunda Grande Guerra, Bukovina foi invadida pelas tropas russas, enquanto os alemães começavam a enviar judeus para campos de concentração, onde os pais de Célan teriam sido mortos, e para onde ele próprio foi também enviado, permanecendo no cativeiro até 1943. Em 1944 as tropas soviéticas invadiram parte da Roménia, o que levou Célan a refugiar-se em Bucareste, onde trabalhou como tradutor e editor. Mudou sucessivamente de nome, primeiro para Paul Aurel, logo para Paul Ancel, e finalmente para Paul Célan. Em 1947 viajou até Viena, emigrando no ano seguinte para Paris, tornando-se professor de Alemão na École Normale Supérieure, Rue d’Ulm. Em 1951, conheceu Gisèle Lestrange, artista gráfica com quem casou no ano seguinte. Nos dezanove anos que estiveram juntos, trocaram cerca de sete centenas de cartas, apesar de Célan ter mantido uma relação extraconjugal com Ingeborg Bachmann. No final da década de 40, Célan começou a publicar os seus poemas em publicações periódicas da então República Federal Alemã. Publicou o seu primeiro livro em 1948, Der Sand aus den Urnen, a que se seguiu Mohn und Gedachtnis (1952), bem acolhido pela crítica, que considerou o poeta como figura proeminente da literatura do Holocausto. Em 1963 publicou Die Niemandrose, obra característica do seu estilo de sintaxe sincopada e minimalismo radical. Entre as décadas de 50 e 60, foi acusado de plágio relativamente à tradução de poemas de Cocteau, Rimbaud e Pessoa, entre outros e foi vítima de um colapso nervoso. A 1 de maio de 1970 morreu por afogamento no rio Sena. Na sua agenda de bolso havia uma nota nesse dia, na qual estava escrito "Partida Paul".