A VIDA DOS LIVROS
De 4 a 10 de setembro de 2023
Carolina Michaelis de Vasconcelos (1851-1925) foi a referência fundamental do folhetim deste verão no CNC. Por isso destacamos a sua obra “A Saudade Portuguesa”, que permite conhecermo-nos melhor através da rigorosa análise desta mulher excecional.
Esta obra compõe-se do que a autora designa como divagações filológicas, designadamente em torno de Inês de Castro e do Cantar Velho «Saudade Minha - Quando te veria?». A segunda edição, revista e acrescentada coube à Renascença Portuguesa, no Porto, à Seara Nova, em Lisboa, e ao Anuário do Brasil do Rio de Janeiro. 1922. Os especialistas consideram o estudo de grande brilhantismo e profundidade, sendo dividido em nove capítulos, com um post scriptum e um vasto conjunto de anotações. Os capítulos têm os seguintes títulos: Inês de Castro: história e lenda - O drama inesiano ‘Reinar despues de morir’; A canção ‘Saudade minha - Quando vos veria?’; D. Sancho I e Maria Paes, a Ribeirinha; Saudosistas autênticos e apócrifos; O que é a saudade, linguisticamente; O que é a saudade, psicologicamente; Soledades; Cantares velhos; Motes e Voltas. Com recurso a uma segura hermenêutica, a autora analisa um grande número de textos da literatura popular e da literatura palaciana em que é usada a palavra saudade, desfazendo atribuições e datações erradas e iluminando, de forma inovadora, a história de Inês de Castro. Trata-se, pois de uma obra imprescindível para o estudo deste tema central da filologia, literatura e cultura portuguesas.
Na rua da Cedofeita, na cidade do Porto, a casa dos Vasconcelos era um centro onde se reuniam os mais influentes intelectuais do seu tempo, empenhados na vida cívica e no lançamento das bases do progresso baseado na cultura e na liberdade. O conhecimento sobre a realidade portuguesa de Carolina Michaelis enchia de espanto os seus leitores. É impressionante a lista dos trabalhos que publicou sobre história e crítica literárias. Lembremos os estudos sobre o "Cancioneiro da Ajuda" e o glossário imprescindível que preparou, com enorme cuidado. A literatura portuguesa foi um inesgotável campo para a sua investigação sobre as origens da poesia peninsular. Em 1901, D. Carlos concedeu a Carolina Michaelis o grau de oficial da Ordem de Santiago da Espada, como preito de homenagem ao seu labor científico. E em 1911, logo após a implantação da República, foi nomeada professora da nova Faculdade de Letras de Lisboa, lugar que não aceitou, por motivos familiares. No entanto, assumiu o encargo na Universidade de Coimbra, onde recebeu, em 1916, o grau de doutora honoris causa. Em 1923 foi-lhe outorgada idêntica honra na Universidade de Hamburgo. Mulher e investigadora, cultora da sensibilidade e do rigor, a sua vida demonstra a importância da ligação entre a opção pessoal e a vocação científica. Considerou a Saudade como um “traço distintivo da melancólica psique portuguesa e das suas manifestações musicais e líricas”, muito mais do que a Sehnsucht, característica da alma germânica. “Refletida, filosófica, acatadora do imperativo categórico da Razão pura, ou do imperativo energético da atividade ponderada”, a palavra alemã teria “muito maior força de resistência contra sentimentalismos deletérios”. “A saudade e o morrer de amor” são para a estudiosa “as sensações que vibram nas melhores obras da literatura portuguesa, naquelas que lhe dão nome e renome”. Elas perfumam o meigo livro de Bernardim Ribeiro e os livros que estilisticamente derivam dele, como a “Consolação de Israel” de Samuel Usque, as “Saudades da Terra” de Gaspar Frutuoso, as “Rimas” de Camões, os Episódios e as Prosopopeias de “Os Lusíadas”, as “Cartas da Religiosa Portuguesa” e as criações mais humanas de Almeida Garrett, a Joaninha dos olhos verdes e as figuras todas de Frei Luís de Sousa. Não faltam no Cancioneiro do povo; nem na sua fase arcaica, os reflexos cultos da musa popular que possuímos, isto é, nos cantares de amor e de amigo dos trovadores galego-portugueses, no período que se prolongou até Pedro e Inês. E logo no alvorecer da poesia, surgiram naturalmente “lindos lamentos de amor e de ausência, como na singela composição, em que o rei D. Sancho o Velho desdobra o sentimento da saudade nas suas duas componentes principais: cuidado e desejo”.
Vendo a mestra com olhos de hoje, não passa despercebida a intenção claramente emancipadora da mulher que defendia a liberdade e a igualdade, a igualdade e a diferença como faces do mesmo espelho, nunca como realidades antagónicas. Como disse Gerhard Moldenhauer na oração fúnebre: “Quem, para mais conscientemente se orgulhar de ser português, alguma vez se interessou pela nossa herança espiritual, encontrou sempre no excecional espírito de Carolina Michaelis o mais amável dos mestres e o mais seguro dos guias”.
Guilherme d'Oliveira Martins