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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

De 11 a 17 de setembro de 2023


“Manuel Teixeira Gomes – Biografia” de José Alberto Quaresma (INCM) constitui um repositório essencial para a compreensão do grande escritor e cidadão que tomou posse como Presidente da República há cem anos.


PRESIDENTE HÁ CEM ANOS
A lembrança dos cem anos da eleição de Manuel Teixeira Gomes constitui oportunidade para refletirmos sobre a afirmação portuguesa da cultura na democracia. Se o escritor algarvio nunca escondeu a importância que atribuía à ligação entre a cidadania e as artes, a verdade é que tal nos permite salientar que os fatores democráticos devem ser alimentados pela consagração de instituições estáveis e de mecanismos de mediação capazes de representar adequadamente os cidadãos e de criar condições favoráveis ao desenvolvimento humano. Longe da ideia de sociedade perfeita, que motiva os tiranos, importa ligar o primado da lei e as legitimidades do voto e do exercício. Se é verdade que o Presidente Teixeira Gomes invocou razões pessoais para deixar as funções de primeiro magistrado, tal ficou no panorama cultural e ético como referência fundamental.


E recordo a célebre carta de Tunis de 1927 que enviou ao seu amigo João de Barros (publicada pela inesquecível jornalista Manuela de Azevedo): “quando já cansado projetava, ou melhor, preparava, a saída do meu posto (em Londres), abriu-se-me outro período ainda mais adverso a devaneios: o da Presidência, onde tudo dependia da colaboração e boa vontade alheia, isto é, dos políticos. Um presidente constitucional, no nosso país, que se conserve fiel aos juramentos prestados, é um misto de ‘boneco de palha’ e de ‘Senhor da cana verde’: o primeiro para ser mandado e o segundo para ser insultado. Mas perguntará o meu amigo: ‘E não teve pena de deixar a sua casa, as suas filhas, os seus livros, o seu mar, a sua paisagem?...’ Nenhuma, ou se a tive não me lembro; e como nunca me arrependi do que fiz, nem mesmo essa arrelia me pungiu, se porventura alguma vez julguei que fizera asneira. A minha vida em Londres foi de luta ininterrupta, e mais divertida, infinitamente, do que poderia ser contemplativa. Não escrevia romances: vivia-os e a miúdo com êxitos a que jamais me teria dado aspirar na literatura escrita. E era-me constante motivo de satisfação, ver chegar a Londres os nossos grandes e pequenos homens de todos os partidos, firmemente convencidos de que o sucessor de Soveral não podia ter feito caminho algum, e observar o espanto – que o não ocultavam – com que, sem demora, verificavam o contrário”.


CIDADÃO REFERENCIAL
Só alguém imbuído do melhor sentido cívico poderia pronunciar-se deste modo. Solto de Belém, poderia ter voltado à vida antiga – no antigo escritório de Portimão, onde tinha a livraria, em Lisboa, na Gibalta, onde estavam as coisas vindas de Londres, podendo encetar o trabalho de seleção dos manuscritos, de correção, polimento e conserto. Contudo, quinze anos de intervalo, abriam “um barranco largo e fundo, sobre o qual dificilmente” se lançaria “ponte sólida”. Além de que “a flor da sensibilidade de um escritor aparece logo no seu primeiro livro” … E tinha razão, até considerando a qualidade por si manifestada precocemente. Contudo, o artista andou sempre fora da “atmosfera da ilusão”. E quando o recordamos, percebemos que o cidadão juntou a sensibilidade do amante da qualidade e da beleza à capacidade criadora do extraordinário intérprete da vida e da natureza. “Edificar para que a eternidade nos soletre o nome? Que insensatez! Na história do mundo, tudo tem prazo, que, para a glória, é sempre curto”. O que importaria, porém, era o gosto, o valor da obra de arte ou da paisagem, em suma, a compreensão da beleza. Por isso, eram limitadas as tiragens das suas obras, “presumindo que seriam suficientes para encontrar uma ou outra rara alma afim, que os gostasse”. E confessa: “Se eu fosse suscetível de arrependimento, experimentá-lo-ia por ter intitulado um dos meus livros ‘Cartas sem moral nenhuma’, como chamariz obsceno. Não me importava nada que a obra fosse realmente indecente, mas importava-me, contrariava-me o chamariz. Caí naquele título quase involuntariamente. Devia ser ‘Cartas de um imoralista’ (e talvez não fosse melhor, nem mais são, mas era menos desbragado), quando nas vésperas do seu aparecimento me chegou noticia do romance do Gide, ‘O Imoralista’. Designação ainda nova, para fugir ao plagiato, tomei outro título, o primeiro que me ocorreu”. Ética e estética relacionavam-se para o escritor, sem contradição, como exigência constante da dignidade da vida e de respeito mútuo, ante o fulgor das diferenças.


UMA RARA COERÊNCIA
Ao decidir terminantemente fechar a carreira política, o escritor percebeu a dificuldade de empreender uma campanha de desafronta ou de desforra, tanta tinha sido a intriga e a difamação de que fora alvo. E assim “empregou artes de ninguém saber nem suspeitar em mim o antigo chefe de Estado, o que me permite viver modestissimamente e em plena liberdade de movimentos”. E assim a existência voltou a ser propícia e feliz, sem motivo para mudar de rumo. Confessa ter saído de Portugal, a bordo do “Zeus”, sem um livro, sem um papel, sem um apontamento ou nota; nada que recordasse o antigo literato ou o político. E assim abriu na vida uma página perfeitamente em branco. Lia pouco, comia e bebia com apetite e proveito, dormia à noite em dois sonos de pedra, fazia uma hora de ginástica todas as manhãs, à tarde caminhava regularmente dez quilómetros, e os passeios a pé mereciam menção especialíssima, pois eram o que designava como eflorescência do dia. “Os museus, as igrejas, os monumentos abrem-se-me como outras tantas portas para o paraíso” … Além do espetáculo das ruas, olhava «para o céu, para o mar, para as montanhas, para a paisagem com a encantada curiosidade de um ressuscitado”. E escrevia a alguns amigos com a abundância. Assim consumia «à semelhança de certos animais que hibernam, a própria enxundia, adquirida com o magro chorume das leituras passadas, e repito invariavelmente ao fim de cada dia: ‘este já ninguém mo tira’». Ao lermos esta carta, compreendemos bem como o artista se mantinha desperto. E temos o supremo prazer de gozar o talento de um espírito superior. Em menino era sonâmbulo - tendo, quando “acordado, facilidade de desassociar a inteligência da sensibilidade”. E os seus leitores compreendem bem a abundância do verbo. “Amiúde mergulho nas recordações de viagem, e a sucessão das cenas e quadros esquecidos, que retomam a cor, é de uma riqueza e de uma exatidão assombrosa”. E, sem surpresa, ouvimo-lo: acompanhando visões de extrema precisão, vendo-o os poetas recitar versos que nunca soube; os filósofos discutir sistemas, que mal conhecia, os historiadores lembrando lutas, raças e reinados, a que jamais prestara atenção, tecendo enredos e sucessos verosímeis, embora nenhuma notícia certa deles tivesse …  E seguia a música, a sensualidade e o amor. E assim se explica como foi sempre voltando à literatura, quase mesmo sem o desejar, em quinze anos de um exílio de criação fértil.       


Guilherme d'Oliveira Martins