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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

NATÁLIA CORREIA (1923-1993)


O Centro Nacional de Cultura assinala o centenário de Natália Correia, no dia do seu nascimento, 13 de setembro, nome maior da cultura portuguesa contemporânea.


Foi uma voz rebelde que construiu o seu percurso literário e cívico juntando o talento poético e a energia, orientados pelos valores da verdade e da justiça. A sua voz é singular e presente. Nunca se fechou numa torre de marfim. Trilhou sempre os caminhos da liberdade. A «Mátria» era, para si, a demonstração da força da mulher e do feminino, como marca de sensibilidade e de determinação. E sobre a missão da mulher era claríssima: «Acho que a missão da mulher é assombrar, espantar. Se a mulher não espanta... De resto, não é só a mulher, todos os seres humanos têm que deslumbrar os seus semelhantes para serem um acontecimento. Temos que ser um acontecimento uns para os outros. Então a pessoa tem que fazer o possível para deslumbrar o seu semelhante, para que a vida seja um motivo de deslumbramento. Se chama a isso sedução, cumpri aquilo que me era forçoso fazer. O meu primeiro contacto com as pessoas é de uma grande afabilidade. Quando as pessoas recusam essa afabilidade, então eu dou-lhes o que elas me pedem: irascibilidade. Volto-lhes as costas irascivelmente, mais nada. Se é isso mau génio, talvez seja» (Entrevista de 1983).


Conheci Natália, já não no período da sua aura mítica de sedução, mas no tempo da sua força, do seu entusiasmo, da fantástica capacidade de afrontar tudo e todos, em nome dos valores em que acreditava. Convidei-a muitas vezes para debates e reflexões e nunca se negava, desde que o combate valesse a pena. A cultura para a poeta e para a escritora significava, a um tempo, ter capacidade criadora, e poder comunicar a força íntima. Era uma açoriana de gema, que fazia das suas ilhas encantadas um sinal indómito de autonomia e força anímica. Acreditava, por isso, nas identidades abertas – e proclamava a açorianidade como uma marca indelével de espírito e de vontade. O culto do Espírito Santo sobre que a ouvi falar, em cumplicidade estreita com Agostinho da Silva ou Lima de Freitas, era um modo de afirmar a sua heterodoxia, salientando como essa forma de pensar era um modo de afirmar a vontade de ligar o primado das pessoas ao sonho de uma utopia onde não houvesse amos e súbditos, onde houvesse a partilha plena da riqueza e onde uma mulher pudesse ser coroada com a coroa do Espírito. Nesta linha, demarcava-se com clareza de qualquer fechamento provinciano ou de um qualquer protecionismo cultural. Dava-se muito mal com o egoísmo e com a hipocrisia. Tantas vezes usou a sua coragem para desafiar os poderes mais instalados e subservientes. No caso do amor de Snu Abecasis e Francisco Sá Carneiro, não dissimulou, desde o primeiro momento, a sua consideração positiva. O mesmo se diga de tantas outras atitudes poéticas, intelectuais, políticas e cívicas, mesmo contra as correntes dominantes. Nunca regateou esforços por uma boa causa em que acreditasse. E o seu tempo e a sua atitude foram precursores em muitos combates – entre os quais o direito inalienável à diferença.


Dizia os poemas de Antero de Quental com uma verve e uma intensidade, como ninguém mais fazia. Compreendia Vitorino Nemésio, nas suas diversas facetas, ponto de encontro de desassossego e de inconformismo, como ninguém mais. Dialogava com Agostinho da Silva, de igual para igual, com o mesmo idealismo, mas sem esquecer a racionalidade. Recordava com saudade os tempos em que pôde usufruir da maiêutica de António Sérgio, em inesquecíveis tardes de sábado, com um chá gordo de ideias e de pensamento crítico. Eram épicos os serões no “Botequim”, onde tudo se debatia e de tudo se falava. David Mourão-Ferreira disse que ela foi a irmã que nunca teve. José-Augusto França considerou-a a “mais bonita mulher de Lisboa”. Mário Cesariny também se deslumbrava que a sua beleza que superava as melhores obras de Miguel Ângelo. Para Fernando Dacosta: “As causas, as pessoas do coração e do sonho, e da fé, tinham-na do seu lado; as causas, as pessoas da manipulação, do utilitarismo, da serventia, conheciam-lhe a cólera, o chiste, a indignação”. A sua indignação era inexorável e não podia deixar alguém indiferente…


Um dia Natália, perante a acusação num tribunal plenário, propôs-se uma defesa intransigente e poética. O seu advogado pediu-lhe que não usasse o poema, uma vez que o mesmo lhe traria, por certo, dissabores, sendo, no mínimo, considerado ofensivo para o plenário. Hoje, lemo-lo como um verdadeiro manifesto pela liberdade. Sabemos que não foi dito, mas Natália tinha vontade e ânimo para o fazer. Ele representa, sobretudo nos dias de hoje, um alerta severo, contra as tentações que subalternizam a liberdade e que fazem regressar as formas mais subtis de condicionamento e de desenfreado populismo, que tendem a pôr a democracia entre parêntesis. A releitura do poema, publicado em “As Maçãs de Orestes” de 1970, fala por si e merece uma releitura permanente e atenta: «Senhores jurados sou um poeta / um multipétalo uivo um defeito / e ando com uma camisa de vento / ao contrário do esqueleto. / Sou um vestíbulo do impossível um lápis / de armazenado espanto e por fim / com a paciência dos versos / espero viver dentro de mim. / Sou em código o azul de todos / (curtido couro de cicatrizes) / uma avaria cantante / na maquineta dos felizes. / Senhores banqueiros sois a cidade / o vosso enfarte serei / não há cidade sem o parque / do sono que vos roubei. / Senhores professores que pusestes / a prémio minha rara edição / de raptar-me em crianças que salvo / do incêndio da vossa lição. / Senhores tiranos que do baralho / de em pó volverdes sois os reis / sou um poeta jogo-me aos dados / ganho as paisagens que não vereis. / Senhores heróis até aos dentes / puro exercício de ninguém / minha cobardia é esperar-vos / umas estrofes mais além. / Senhores três quatro cinco e sete / que medo vos pôs por ordem? /que pavor fechou o leque / da vossa diferença enquanto homem? / Senhores juízes que não molhais /a pena na tinta da natureza / não apedrejeis meu pássaro / sem que ele cante minha defesa. / Sou uma impudência a mesa posta / de um verso onde o possa escrever / ó subalimentados do sonho! /a poesia é para comer». Quando hoje voltamos ao poema, entendemos a dimensão singular de Natália Correia. E assim, podemos compreender não só a coragem de defender a liberdade criadora (que a levaria à condenação, com pena suspensa no caso da “Antologia de Poesia Erótica e Satírica”), mas também a determinação em não deixar por mãos alheias as causas cívicas em que genuinamente acreditava.


GOM

A FORÇA DO ATO CRIADOR


A imensidão dos espaços físicos existe dentro de cada ser.


“The world is large, but in us it is deep as the sea.”, R. M. Rilke


Os espaços são testemunhos de vida e são suscetíveis de ser manipulados pela memória e pela imaginação. São uma mistura de passado, de sonho e de experiência e têm a capacidade de revelar e corresponder ao estado íntimo de cada ser.


Gaston Bachelard em The Poetics of Space, no capítulo “Intimate Immensity” explica que a imensidão do mundo exterior é um estado íntimo. A imensidão pertence à categoria do sonho. O sonho e o devaneio têm a capacidade de transportar o ser para fora do mundo imediato e a contemplação tem sobre si a marca do infinito. 


Para Bachelard, apenas através da memória, longe do mar e da terra sem-fim, podem-se adquirir ressonâncias do inalcançável. A imensidão está dentro de cada ser. Está ligada a uma expansão, que a vida restringe e sufoca - mas que, segundo Bachelard, pode ser reactivada sempre que se está sozinho ou parado: “Indeed, immensity is the movement of motionless man.” (Bachelard 1994, 184)


A sede de imensidão, define o ser da imaginação pura, permite o alargamento da consciência e a abertura do mundo concreto. Muitas vezes é esta imensidão interior que dá sentido real ao espaço limitado e visível.


“I live in great density (…) In the forest, I am my entire self.”, René Ménard


Bachelard revela que só se consegue meditar perante aquilo que já conhece. Mas existem certos espaços físicos cuja ligação é imediata e intrínseca e não depende de nenhuma condição ou predisposição prévia - tal como o mar ou a floresta. Estes espaços, transportam naturalmente a profundidade íntima de todos os seres: “The forest is a before-me, before-us, whereas for fields and meadows, my dreams and recollections accompany all the different phases of tilling and harvesting. When the dialectics of the I and the non-I grow more flexible, I feel that fields and meadows are with me, in the with-me, with-us. But forests reign in the past.” (Bachelard 1994, 188)


Há assim imagens de certos lugares que já existem dentro de cada ser, mas a ressonância dos espaços que formam o mundo só acontece se houver predisposição. O muro que separa o eu de o mundo e que impede a sua compreensão, só pode deixar de existir se houver um diálogo entre dois silêncios e duas solidões. E o esforço de entender e de ver a verdade que está por trás de cada espaço e de cada objeto, pode ajudar a pertencer. Os espaços desconhecidos demoram tempo a ser entranhados e entendidos.


Deste modo, Bachelard escreve que um espírito que medita e que sonha, consegue alcançar imagens de imensidão até no mais pequeno objeto. A vastidão e o infinito podem estar ao alcance imediato. O mundo percetível é então um eco do que já existe dentro de cada ser. A imensidão íntima e particular tem a capacidade de absorver e dissolver o mundo percetível. Quanto mais profunda for a interioridade e o detalhe maior será o alcance do infinito. Para Bachelard cada ser é o espelho de uma vastidão singular.


Ana Ruepp