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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


152. ALEGRIA NA ARTE GÓTICA E RECOLHIMENTO NA ARTE ROMÂNICA


A infância, juventude e a idade adulta plena precisa de expandir-se, correr, gritar, perguntar, rir, saltar, indagar mil e uma coisas, numa curiosidade gradual e permanente, num sucessivo otimismo alegre, em paralelo com a visualização de contentamento e abertura que inspira igrejas, basílicas e catedrais góticas, apelativas e monumentais, chamativas e majestosas, glorificando o divino e a criatividade humana, em deslumbramento e magnitude, num processo engenhoso de requintado gosto e leveza, com rosáceas radiantes e pináculos esguios a encimar torres e flechas pontiagudas, querendo rasgar o azul do céu, em vozes e preces flamejantes.


A terceira idade e velhice (“a melhor idade”?) apela ao recolhimento, descanso, silêncio, fuga ao ruído, dada a sua longevidade, maturidade e experiência de vida, menor responsabilidade familiar e social por objetivos já cumpridos, em paralelo com o minimalismo, simplicidade, devoção e ambiente fechado que inspira igrejas, basílicas e catedrais românicas, recorrendo a uma maior espiritualidade e proximidade com o sagrado, o transcendente, dadas as suas caraterísticas mais intimistas, convidando ao meditar e à prece num espaço de familiaridade, numa certa obscuridade interior alheia ao deslumbramento. 


As góticas espalharam-se pelas cidades, onde viviam as pessoas mais ativas e empreendedoras, na idade mais criativa da vida, as românicas pelos campos e espaços rurais em sinal de recolhimento e oração, tendo como referência as ordens monásticas da época, num sentido menos alegre e otimista da vida terrena no seu fim. 


A arte românica, como arte séria, quiçá pesada, com a sua funcionalidade de fim religioso, apela à meditação e ao recolhimento, que as sombras crepusculares do interior dos seus templos acentuam, onde os crentes podiam ler, meditar, orar e comunicar com o divino, através da “bíblia dos pobres”, mesmo ignorando o alfabeto, lembrando o crepúsculo e o poente da vida, o seu entardecer e anoitecer.


A arte gótica, cheia de luz, incluindo os seus vitrais litúrgicos, presta-se à contemplação e à observação, à plenitude e força, cuja monumentalidade, possibilitada pelo florescimento comercial europeu e urbano, apela ao florescer, maioridade e inteira maturidade da vida.     


Sem esquecer que apesar da sua desunião religiosa, a Europa conservou sempre a sua unidade cultural, sendo certo que além das funções religiosas as catedrais também desempenharam funções civis, aí funcionando escolas de música, leitura, escrita, gramática, lógica e retórica, exercendo-se a justiça nos seus átrios, gozando os seus pórticos do direito de asilo.           


Entre teocentrismo e antropocentrismo, entre uma conceção espiritualista em que o Divino é o centro do universo e o Homem circula em seu redor, e uma conceção materialista em que o Homem se endeusa como a mais perfeita criatura divina e obra suprema de Deus, sendo o centro de tudo, o mesmo sucede, em similitude, com o românico e o gótico.         


Era, e é, a arte, a um tempo simbólica e realista, entrelaçada à vida e aos sentimentos humanos, em coexistência com a religião e as fases da nossa existência terrena e incertezas que permanecem após a morte cujo significado, em absoluto, desconhecemos.


29.08.23
Joaquim M. M. Patrício