Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O espaço exterior é o eco da expansão do espaço interior.
“I look outside myself, and the tree inside me grows.”, R. M. Rilke
Gaston Bachelard em The Poetics of Space, ainda no capítulo “Intimate Immensity” explica que Baudelaire, na sua poesia, se refere a vastidão como sendo um conceito que não pertence ao mundo objetivo. A palavra, vastidão, quando usada é um vocábulo que evoca pausa, silêncio, unidade, respiração, imperturbabilidade. De facto, vastidão é o eco dos lugares mais ocultos e desconhecidos do ser. É uma abertura para um espaço ilimitado: “With it, we take infinity into our lungs, and through it we breath cosmically…” (Bachelard 1994, 197)
Para Bachelard, poetas tais como Baudelaire, ajudam no constante contentamento do olhar, que na presença de um objeto familiar, permitem a extensão da esfera interior e particular.
“Space, outside ourselves, invades and ravishes things: If you want to achieve the existence of a tree, Invest it with inner space, this space That has its being in you. Surround it with compulsions, It knows no bounds, and only really becomes a tree If it takes its place in the heart of your renunciation.”, R. M. Rilke
Objetos, espaços e lugares precisam de ser impregnados de imagens construídas na esfera interna e intima - caso contrário não existe ligação, nem vínculo. Na verdade, eu e objeto são um só. Para ultrapassar o seu limite, o objecto ou o espaço precisa do sujeito para transmitir as suas imagens. O objeto contém o sujeito e o sujeito contém o objeto. Juntos tomam o lugar um do outro.
Bachelard esclarece que, quando o sujeito sabe que um objeto ou espaço do mundo é reflexo de imensidão, isso significa que é o próprio sujeito que está à procura da sua essência. O eu e o mundo têm assim um forte vínculo metafísico: os dois espaços - interior e exterior - completam-se e são uma plenitude.
É o espaço íntimo que descodifica e abre o mundo. É este espaço que permite ampliar, dilatar e alargar o mundo exterior. Ao dar valor a um espaço está-se a conceder ainda mais espaço do que aquele que existe objectivamente. O espaço exterior é o eco da expansão do espaço interior: “… may all matter achieve conquest of its space, its power of expansion over and beyond the surfaces…” (Bachelard 1994, 202-3)
Deste modo, para Bachelard, é a imensidão que une o espaço íntimo e o mundo exterior - e assim que a solidão humana se aprofunda, os dois infinitos tornam-se idênticos. E é através desta dinâmica e desta coexistência de espaços que se manifesta a consciência do próprio existir.
É sempre uma festa o reencontro com Edgar Morin, na bonita idade de 102 anos. E é oportunidade para lembrarmos os amigos comuns, que já nos deixaram, mas que estão bem presentes nas nossas memórias, num fecundo caminho em prol da liberdade – António Alçada Baptista, Helena e Alberto Vaz da Silva ou Mário Soares. Há dias, tive a honra de abrir a sessão na Fundação Oriente, durante a qual o mestre encantou uma plateia fascinada pelo seu brilhantismo e oportunidade. Lembrei os sete pilares que propõe para a educação contemporânea, e ainda há pouco subscreveu com Elisabeth Badinter, Tahar Ben Jelloun e Pierre Nora um grito de alerta sobre a falta de qualidade da escola, afirmando que saber escrever não se reduz a alinhar frases, mas a dar sentido ao que escrevemos. De um modo singularmente acessível, falou-nos da complexidade, usando ideias claras e distintas – em nome das cabeças bem feitas de Montaigne. Há pouco, publicou De Guerre en Guerre – de 1940 à l’Ukranie (Aube, 2023) e compreendemos que “navegamos num imenso oceano de incertezas, onde existem apenas pequenas ilhas para nos irmos reabastecendo”. A sua vida, desde as origens sefarditas, é o percurso de um intelectual comprometido com a liberdade e a dignidade humana, ao lado de Alain Touraine e de Paul Ricoeur (como salientou Teresa de Sousa). Presenciou conflitos e guerras, tomou posição, denunciou a degradação ambiental, como exigência humana, antes de se tornar moda. Lembrou-nos o relatório do Clube de Roma (1972) sobre “Os Limites do Conhecimento”, salientando a tendência para o rápido esgotamento dos recursos naturais e a lentidão na tomada de medidas. Agora, falou-nos de uma nova carta do humanismo, a propósito da experiência dos países de língua portuguesa e do Atlântico Sul. E pôs a tónica no risco do que designou como trans-humanismo, que leva a sociedade a pensar-se imortal, perante os avanços científicos e técnicos, idolatrando a inteligência artificial, em lugar de a pôr ao serviço das pessoas e da natureza. A sociedade ilusória, baseada numa elite do dinheiro e do poder, esquece os milhões de seres humanos que vivem na pobreza e na precariedade. “O humanismo significa o respeito e a consideração que qualquer ser humano merece. E temos de reconhecer a humanidade na sua unidade e na imensa diversidade”. Vivemos, na nossa aventura coletiva, diversas crises: ambiental, económica, democrática e da mundialização. As democracias têm perdido força. Um país como a China dispõe de meios tecnológicos que controlam os indivíduos e a sua vida, mercê das tecnologias de informação e comunicação e do reconhecimento facial, numa lógica de submissão neototalitária. Países como a Rússia, em parte a Turquia e na América do Sul cultivam o despotismo com fachada democrática. A mundialização, sobretudo económica, levou ao surgimento do racismo, da intolerância, do medo das diferenças e dos novos nacionalismos – até ao que acontece na Ucrânia – o que não tem permitido tornar uma comunidade de destino em fator de solidariedade. “Esta guerra comporta perigos enormes, para além dos massacres em todos os campos e do risco da destruição de recursos alimentares e agrícolas”. Há uma escalada que pode degenerar num novo tipo de conflito mundial, para o qual poderemos a estar a ser arrastados. Se ninguém previu o início da guerra em 1914, bem com a invasão da Ucrânia ou a pandemia, isso significa que temos de saber esperar o inesperado e preparar-nos para tal. Edgar Morin afirma que temos de saber escolher entre a barbárie e a solidariedade, compreendendo o diálogo entre “polemos”, o debate de ideias, “eros”, a importância do amor, e “tanatos”, a consciência da morte. Temendo o risco da regressão, o pensador acredita nas ideias e na esperança que representam. E esperar o inesperado é acreditar na prevalência da dignidade humana como fator de paz.
Autor de “Revelação e experiência do Espírito” (Paulinas), Yves Congar foi um dos grandes teólogos do século XX. Assim, o novo Patriarca de Lisboa fez questão de o referir na entrada solene nas novas funções.
UMA ATITUDE RENOVADORA E ABERTA Como lembrou Frei Bento Domingues, O.P., dominicano Yves Congar muito lutou e sofreu para publicar as suas investigações que punham em causa tabus, doutrinas e apologéticas que sufocavam a revisão teológica da sua história e impediam as reformas de que precisava para se abrir às outras Igrejas cristãs, ao universo das outras religiões e ao mundo contemporâneo. Nasceu em 1904 e faleceu em Paris a 22 de junho de 1995. Os seus restos mortais repousam no cemitério de Montparnasse, ao lado da sepultura que evoca a vida do seu confrade e amigo, Marie-Dominique Chenu. A sua vida e a sua obra são uma fonte de inspiração, para quem ama a Igreja e luta para que nunca se esqueça que a sua lei, na graça do Espírito de Jesus Cristo. Elaborou a sua teologia – em constante evolução e revisão – a partir do centro da vida e da história da Igreja Católica, em diálogo com as outras Igrejas cristãs, em escuta do universo das religiões não-cristãs e das correntes que agitam o mundo. Nos anos 30, em face da crescente descrença e indiferença religiosa, sintetizou o seu diagnóstico perspicaz: a uma religião sem mundo sucedeu um mundo sem religião. Acompanhou e marcou os grandes movimentos eclesiais que precederam o Concílio Vaticano II, designadamente no ecumenismo, na teologia do laicado e na reforma da Igreja. Congar afirmou: “As grandes causas que procurei servir chegaram ao Concílio: renovação da Eclesiologia, estudo da Tradição e das tradições, reforma na Igreja, ecumenismo, laicado, missão, ministérios”…
UM NOVO TEMPO A nomeação de D. Rui Valério como novo Patriarca de Lisboa constitui motivo de alegria e de esperança num momento especialmente importante e exigente na vida da Igreja entre nós, perante inúmeros desafios marcados pelo período sinodal e pela necessidade de mobilizar energias no sentido de superar graves dificuldades recentes, de aproveitar o impulso das Jornadas Mundiais da Juventude e de apresentar à sociedade um sentido de renovação e de responsabilidade. É de bom augúrio a declaração do novo Patriarca segundo a qual se propõe dar à Igreja de Lisboa o que tem dado sempre ao longo da sua vida sacerdotal e como bispo: através da presença e da proximidade. “Vou ser um bispo da estrada, um bispo da rua, um bispo junto das pessoas. E é nessa ótica que vou concretizar e alinhar a minha ação”. Esta ideia de caminho, de atenção às periferias e de mobilização de todos, no sentido que tem sido dado pelo Papa Francisco, constitui um sinal forte e necessário.
A declaração solene feita no momento de entrada na diocese constitui um motivo de reflexão e de responsabilidade para toda a Igreja. «Tal como sempre, também hoje, à Igreja, incumbe a grave responsabilidade de indicar o verdadeiro alimento, a verdadeira água, e oferecê-lo. É essa a sua missão urgente». E não é por acaso que à presença necessária se junta o sentido da urgência. E continua D. Rui Valério: «Como já anotava o teólogo Yves Congar, acerca da pertinência da missão evangelizadora, conservando uma desarmante atualidade: “o nosso mundo já não está naquela espécie de harmonia e homogeneidade com a cultura católica, com os seus símbolos, com as formas de expressão católicas. Simplesmente é profano, secular, laico; é científico e técnico; mas também, cada vez mais, utilitário, hiper sensual, violento, afrodisíaco. Em larga medida é ateu, não porque esteja demonstrada a inexistência de Deus, mas porque se constrói cada vez mais fora da perspetiva de Deus e do seu culto. E Congar rematava: hoje, exigem-se gestos verdadeiros, uma palavra simples e verdadeira, sinais fortes e compreensíveis. Quer-se que a liturgia seja de Alguém, que seja expressão da sua alma e, por isso, que envolva e diga respeito à vida». E nesse sentido o Patriarca afirmou, no sentido do tom geral da Jornadas da Juventude: «Queremos ser Igreja Missionária que, ao estilo de Maria, se levanta apressadamente para a montanha do mundo e da humanidade.» Importa, assim, seguir um caminho audacioso e seguro, permitindo-nos exprimir gratidão e homenagem ao Cardeal D. Manuel Clemente, anterior Patriarca, pelo que realizou, pelas fecundas sementes que deixou e pelo muito que ainda tem para nos dar, na ação e no exemplo.
LEMBRAR A HISTÓRIA Lembremos que Lisboa tem uma presença da Igreja Católica que vem dos primeiros séculos do Cristianismo. Foi elevada a metrópole eclesiástica, em 1393, tendo em 1716 o Papa Clemente XI, pela Bula de 7 de novembro, «In Supremo Apostolatus Solio», criado o Patriarcado de Lisboa, primeiro na Capela Real, em Lisboa Ocidental, estendendo-se em 1740 o referido estatuto a Lisboa Oriental. A decisão envolveu um acontecimento eclesial e régio. As razões que levaram o Papa a esta concessão inédita, diferente da de Veneza, que recebeu o título patriarcal já existente no Adriático, têm a ver imediatamente com a armada enviada por D. João V para deter o avanço turco no Mediterrâneo, seguindo um apelo insistente do referido Papa Clemente XI. A este facto, associa-se o zelo missionário de Portugal. Foi na verdade o auxílio prestado por D. João V ao Pontífice que decidiu a Santa Sé a reconhecer a importância da antiga capela real portuguesa. Assim a célebre embaixada do Marquês de Fontes (1712), enviada a Roma para defender o padroado português do Oriente e conseguir também o título patriarcal de Lisboa, obteve resultados positivos, graças ao auxílio político contra os turcos, que o Papa recompensou excelentemente. Pode dizer-se, contudo, que é o zelo missionário a razão decisiva para a permanência deste estatuto – que recorda os cinco patriarcados clássicos, Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém e se prolonga no Patriarcado da Índias Orientais, de Goa e Damão. O primeiro Patriarca de Lisboa foi D. Tomás de Almeida (1670-1754), notável teólogo, que veio do Porto para Lisboa, acompanhando D. João V até ao fim do seu longo reinado. Refira-se ainda, neste mês, o início do Ano Jubilar Vicentino, recordando o primeiro padroeiro da Cidade de Lisboa, São Vicente, cujas relíquias chegaram a Lisboa no dia 15 de setembro de 1173 e ficaram primeiro depositadas na Igreja de Santa Justa, sendo transladadas, no ano seguinte, para a capela-mor da Sé. Para assinalar a efeméride o Patriarcado de Lisboa, o Cabido da Sé e a Câmara Municipal de Lisboa concordaram numa série de celebrações comemorativas, em curso.
Digo-o: não se escreve com medo. Devia perguntar-se aos poetas a quem lêem eles os seus versos, antes de os publicarem. Todos passam por essa corda de segurança. O poema de hoje lembra-me um Tempos Modernos, em que os poetas são operários como as poetas são aplicadas donas de casa. Opto pela androginia de género. Gosto de poetas que lêem versos às mães: as mães sentadas de televisor apagado, ouvindo-os, a coragem dos filhos e o pudor das mães, que sorriem como, de manhã, ao levantarem-lhes os lençóis manchados. Nisso ainda são delas, as ejaculações privadas que obrigam a lavar à mão cuecas em água quente e lixívia. Fariam o mesmo com os poemas; e eu, que pouco entendo de poesia, adoraria ler um poema esterilizado por cuidados maternos. As mulheres são diferentes, nenhuma mostraria os seus poemas ao pai. As intimidades das filhas são segredos pregados às costas paternas, quadros fixados numa parede móvel onde confortavelmente se deixam embalar sem que, por isso, os pais o saibam. Todos são paredes de casa expostas ao sol; voltados para fora, são tão fáceis de amar. Não há poeta que não seja filha de seu pai; nisso são equivalentes a eles, filhos de sua mãe. E talvez o problema operacional do verso seja esse: a falta de óleo na engrenagem que tritura a familiaridade. Todos deveriam ser pródigos, abandonar o conforto materno e evitar o mijo ou o sémen que manche páginas de livros. Poesia Kleenex é a melhor definição que me ocorre, ao pensar poeticamente na poesia contemporânea; e choca-me que ninguém se tenha lembrado ainda de imprimir versos do Pessoa em guardanapos de papel; ou Camões, que também serviria às saladas de entrada. Já vi xícaras de café com Álvaro de Campos e acho que Agustina, em curtas frases, faria brilharete em qualquer serviço de chá Vista Alegre. Para os kleenexes propriamente ditos, de uso vário, como se poderá mirar à margem da estrada, aconselharia alguma da poesia de 61 que, apenas por oito anos, não foi pródiga na sua auto-enunciação. Agora que a Renova imita a Alchimie du Verbe na produção das mais enigmáticas cores aliadas ao bom gosto genital de cada um, nada há a temer.
in É quase noite, 2013
I Say
I say this: you shouldn’t write with fear. You should ask poets to whom they read their verse, before having it published. All of them go through this safety net. Today’s poem reminds me of a Modern Times in which poets are workers and poetesses are dutiful housewives. I choose gender’s androgyny. I like poets who read verse to their mothers: mothers who sit opposite turned off televisions listening to them, the courage of sons and the decorum of mothers who smile, like they smile in the morning as they change the sons’ stained sheets. Private ejaculations which demand bleach and hot water hand-washing of pants. They would do the same with the poems; and I who don’t know much about poetry, would love to read a poem sterilised by motherly care. Women are different; not one would show their poems to their fathers. Daughters’ intimacies are secrets stuck onto paternal shoulder backs, pictures hanging from a mobile wall, being carried in comfort without their fathers’ knowledge. These walls all are sun facing; looking outwards, they are so easy to love. There isn’t a poet-ess who is not her father’s daughter; in this they are equivalent to poets, their mothers’ sons. And perhaps this is the verse’s operational problem: the lack of oil in the gear that grinds familiarity. All sons should be prodigal; they should abandon motherly comforts and avoid the piss and the semen that stain book pages. Kleenex poetry is what best occurs to me to poetically think of contemporary poetry; and I’m shocked that it hasn’t yet occurred to someone to print Pessoas’ lines on paper napkins; or Camões, who could be served as a starter. I’ve seen Álvaro de Campos coffee cups and I guess Agustina, in short sentences, would do really well on any Vista Alegre tea set. For the actual kleenexes, used for various purposes as can be verified on road verges, I’d recommend some of 1961 poetry which missed its self-enunciation just by eight years. Now that Renova copies l’Alchimie du Verbe in the production of the most enigmatic colours allied to one’s genital good taste, there’s nothing to be feared.
COM HISTÓRIA E COM MISTÉRIO… por Camilo Martins de Oliveira
Minha tão linda Princesa de mim:
Neste ano em que talvez me morra, nesta manhã tão cheia de sol amigo, vejo as primeiras andorinhas de uma primavera que tardou. Estou deitado, pedi que me abrissem as largas janelas do quarto, para te escrever à luz firme de um novo dia cheio de promessas. Sinto a tua mão ausente quentinha na minha. Há quantos anos me disseste, num aconchego assim, que eras a Violaine de "L´Annonce faite à Marie"? E porque seria que te senti então como te sinto agora? Porque percebi - ou não percebi de todo, não sei, meu querido amor, não sei nada do mistério das almas delicadas - que eras a Violaine que, a Mara, que lhe perguntara: "Violaine c’est mal! as tu peur que nous te touchions? Pourquoi nous traites tu ainsi comme des lépreux?" respondia:" - J´ai fait un voeu... ...Que nul ne me touche. " E porque te ofereci eu então, do mesmo Claudel de que até nem gosto muito, em edição do "Livre de Poche", "Le Soulier de Satin?" Seria o cetim dos teus passos? O silêncio generoso com que me entraste na vida? Uma adivinha de mim? Fui eu quem te escreveu assim: "Dá-me versos, dá-me flores / Põe-nos no meu coração... / E no dia em que lá fores / À campa dos meus amores / Enfeita-a pela tua mão... / Dá-me sorrisos e vinho / E o fundo do teu olhar... / Vem até mim de mansinho / E verás como adivinho / Os passos do teu andar... / E quantas estrelas tiveres / Guarda-as bem na tua mão: / Que na hora em que vieres / Nessa noite que escolheres / Te veja meu coração!" Será assim? Volto a Paul Claudel, e medito: "L’ombre m’atteint, mon jour terrestre diminue. / Le passé est passé et l´avenir n´est plus." Cobre-me a sombra, diminui-me a vida. O passado passou e o porvir não ficou. Estou só. Sorrio lendo as duas citações com que Claudel apresenta o seu "Sapato de Cetim": "Deus escreve direito por linhas tortas" (provérbio português); e "Etiam peccata" (Sto. Agostinho). Repetem-se os pecados, mas Deus vai escrevendo... E eu também escrevo, aqui deitado. Pouco mais posso ou sei fazer. Já nem me lembro das minhas longas caminhadas, dos passeios que dava, em passos perdidos que eu não contava para que não tivessem fim. Eram a minha liberdade, o ritmo do meu silêncio ininterrupto. A minha comunhão. O modo de ser eu e estar com tudo, uma procura física da paz. Abria-me ao vento, à chuva, ao sol, enchia-me de ar e mar, tornava enorme a minha pequenez. Era soprado, sentia-me pertencer à vida. Hoje, só numa qualquer peregrinação interior de mim que de mim me tire eu poderei talvez reencontrar essa liberdade de ser, essa paz que é a harmonia de mim com, de mim e... Mas sou tão feio, meu amor, sei que sou horrivelmente feio, tão desamparadamente só! Não tenho alibis, não os gosto, nem os procuro... O inferno de Sartre nunca existiu, o inferno não são os outros, é cada um de nós. Somos nós na prisão de nós mesmos. É a solidão essencial. Assim penso e muitas vezes o disse. Ontem, antes de me recolher, percorri estantes de livros que, ao longo de tantos anos, se foram depositando nesta casa. Entre outros, peguei no "Vaste Monde, Ma Paroisse" do frei Ivo Congar, título que glosa o britânico John Wesley: "I look upon the World as my Parish". Empurrado por uma curiosidade infantil, reli o capítulo "L´Enfer existe, mais il n´est pas celui des diablotins cornus". E a certo passo: "A ontologia do céu é o amor, a comunhão e a ação de graças; a da terra é a possibilidade de livre decisão, é a fé e a esperança, a possibilidade de tudo correr melhor amanhã, a possibilidade da conversão. A ontologia do inferno é a permanência numa vida destituída de significado e esperança. Uma vez mais, Dostoïevsky tem sobre tudo isso páginas de extraordinária profundidade". E cita passos das reflexões do monge Zózimo em "Os Irmãos Karamazov": " O que é o inferno? É o sofrimento de já não poder amar. Uma vez só, na vida infinita que não podemos medir, nem no tempo nem no espaço, foi dada a um ser espiritual, pelo facto de ter aparecido cá em baixo, a possibilidade de dizer: Sou e amo! Uma vez, apenas uma vez, lhe foi dado um instante de amor ativo e vivo, e para isso lhe foi dada a vida terrestre nos seus limites temporais..." "How do I love thee? Let me count the ways. / I love thee to the depth and breadth and height / My soul can reach, when feeling out of sight / For the ends of Being and Ideal Grace." Assim começa um dos "Sonnets from the Portuguese", que Elizabeth Barret Browning escreveu a Robert Browning, seu marido. O próprio título da coletânea ("Sonetos da Portuguesa") é uma referência à autora: Robert chamava carinhosamente a Elizabeth "my little Portuguese", desde que lera o seu poema "Catarina to Camoens". É imenso esse amar assim, com a profundidade, a largueza, a altitude a que a alma pode chegar, até aos confins do Ser e da Graça... John sobreviveu 28 anos a Elizabeth e nunca mais se casou. Usava dizer que tinha o coração em Florença, enterrado com ela. Amou-a sempre. Ainda hoje se amam. No seu "L´amour humain" que as "Éditions Montaigne" publicaram em 1948, o académico Jean Guitton defende que três grandes temas definiram o amor no decurso da História: o platónico, o salomónico e "Tristão". A análise que faz do amor expresso por heróis e heroínas da literatura europeia, a que chama romântico ou romanesco, é a do amor apaixonado e transgressor, cuja genealogia, como apontou Denis de Rougemont (em "L’Amour et l´Occident") se enraíza no mito medievo de Tristão e Isolda. Tem muita erudição, revela um extenso e sólido conhecimento da filosofia e literatura ocidentais. Peca, a meu ver, por alguma precipitação moralizadora... Pela mesma preocupação com chegar depressa ao santuário, Guitton, cotejando "O Banquete" com o "Cântico dos Cânticos", lhes vai empurrando o desenvolvimento até à epístola aos Efésios, em que S. Paulo afirma que o amor humano comunga no mistério do amor de Cristo e da Igreja, de Deus e dos homens. Mas diz bem quando observa que "Platão não se interessa tanto pelo amor como pelas vibrações que o amor produz, na alma, ao socorro que o fervor oferece às aspirações do espírito. O amor é o meio do êxtase, uma espécie de intermediário, ou, como ele diz, um "demónio" que assegura a subida para o inteligível. Nessa perspetiva, ser amado não é senão uma ocasião e um excitante com vista a atingir um contentamento onde já não é necessário que permaneça, onde isso até é inoportuno, porque a sua experiência sensível viria perturbar o êxtase. É uma centelha que suscita um fogo que depois se sustenta de si próprio. Compreende-se que Platão não tivesse dado grande atenção à qualidade do indivíduo que vai suscitar o amor. O ser amado só existe para ser incessantemente ultrapassado; e se chamamos dialética a um processo que só atinge para ultrapassar, podemos dizer que o amor platónico é a própria dialética: devemos passar do amor dos belos corpos ao das almas belas, do amor das belas almas ao do Bem supremo, que não tem forma..." A menos que, lembrados do verso cruel de Ovídio ("nec sine te nec tecum vivere possum") nos aturemos na terra, conforme as nossas capacidades e circunstâncias. Dizer ao ser amado - ou pensar com ele - que "nem sem ti nem contigo posso viver" é prova de sabedoria: cá em baixo, o amor-perfeito é uma bela flor. Frágil. O outro, o amor humano, será perfeito quando Deus quiser. Se os amantes deixarem. Ouço o sino meridional da aldeia, lá longe, tocar o "angelus". É uma promessa". Esta foi a última carta de Camilo Maria à sua Princesa. Não estava no maço que esta entregou com o pedido de algum expurgo e publicação, que tenho respeitado e levarei a termo. O Marquês de Sarolea escrevia muito, comunicava mesmo quando não enviava os seus escritos. Tenho aqui muitas cartas que a Princesa não terá lido. A que acima traduzi, lia-a ela ainda anos depois da morte do remetente. Apanharam-na, do seu regaço, as criadas que, ao levarem-lhe o chá, a encontraram, direita na sua cadeira de braços, serenamente morta, em florida tarde de primavera.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 02.08.13 neste blogue.
Se tomarmos como referência um modelo antropológico, a cultura não é um bem de primeira necessidade, por confronto com o ar que respiramos, a água, a alimentação, o vestuário, a saúde, tidos como bens primários e de sobrevivência, pelo que, nesta perspetiva, podemos viver sem ópera, cinema, teatro, bailado, literatura, as letras e as artes em geral, embora haja a tradição de ser-se tanto mais civilizado quanto mais culto, de que não há civilização sem cultura, sob pena de vivermos em barbárie.
Se se aceita, em termos antropológicos puros, que se pode sobreviver sem a cultura erudita, também podemos permanecer vivos, pelo mesmo critério, sem escrita e a palavra falada, sem educação, sem medicina, sem justiça, por exemplo, embora não possamos ter educação e saúde sem o saber associado ao culto do estudo, da investigação, da criatividade, da invenção, o que implica não excluir a escrita, a fala, a linguagem especializada, a ciência e a técnica, incluindo as humanidades e as artes.
É inexequível positivar a realidade que apelidamos de cultura, dada a sua adaptabilidade, flexibilidade e elasticidade, sendo um universo escrutinado e questionado em permanência, englobando tudo o que a natureza não produz e lhe é adicionado pela criação e espírito humano, desde uma definição mínima e seu sentido restrito, a um significado intermédio e uma interpretação mais ampla, numa desconstrução e refazer permanente, negando determinismos e purismos.
Nesta sequência, é redutor não ter a cultura como um bem de primeira necessidade, por maioria de razão se pensarmos que tudo é passageiro e só fica a escrita, o património histórico, a fotografia, o audiovisual, a digitalização, sem os quais não há “eternidade”, mesmo que os seus autores, em vida, não tenham tido o poder de mandar, mas sim o de imortalizar do esquecimento histórias e biografias de poderosos que não sobreviveram à lei da morte, definindo a Cultura a História e a memória coletiva duma civilização post mortem e dos que nela foram seus intervenientes.
Recuperar o gosto pelo tempo livre; libertá-lo da economia; dar-lhe um sentido de existência, de cultura, de arte, de contemplação, de atividade de descanso, é recuperar o ócio criativo.
Assaltados pelos computadores, pelas redes e pela própria IA, ouvir música, é uma libertação face aos monopólios de atividades supostamente criativas que nos propõem.
Hoje a interligação entre as pessoas e factos via redes, constitui o modo de usar o tempo livre, por força das forças que facilmente vencem a capacidade do próprio escolher para si, o que o faz feliz.
Deixar que o tempo se subtraia na vida de cada um, e não cuidar que o tempo livre equivale à possibilidade de aumento de vida qualitativa, equivalendo mesmo, a uma aberta ao desenvolvimento não atrofiado do indivíduo a um advir provável da felicidade de cada um, é realidade bastante à visão de presente no futuro.
De realçar que existe ainda um horário mínimo a utilizar dentro do tempo livre, e que nos oferece um rendimento pluridimensional de substância que é constituído por tudo quanto a natureza nos oferece, se dela não nos esquecermos.
Registe-se ainda que, no fazer tudo para nos salvarmos, surpreender-nos-á o saber do tempo livre, qual testemunho que cada geração nos deixou e que nós, quais recifes!, deveríamos preservar e transmitir.
O Centro Nacional de Cultura assinala o centenário de Natália Correia, no dia do seu nascimento, 13 de setembro, nome maior da cultura portuguesa contemporânea.
Foi uma voz rebelde que construiu o seu percurso literário e cívico juntando o talento poético e a energia, orientados pelos valores da verdade e da justiça. A sua voz é singular e presente. Nunca se fechou numa torre de marfim. Trilhou sempre os caminhos da liberdade. A «Mátria» era, para si, a demonstração da força da mulher e do feminino, como marca de sensibilidade e de determinação. E sobre a missão da mulher era claríssima: «Acho que a missão da mulher é assombrar, espantar. Se a mulher não espanta... De resto, não é só a mulher, todos os seres humanos têm que deslumbrar os seus semelhantes para serem um acontecimento. Temos que ser um acontecimento uns para os outros. Então a pessoa tem que fazer o possível para deslumbrar o seu semelhante, para que a vida seja um motivo de deslumbramento. Se chama a isso sedução, cumpri aquilo que me era forçoso fazer. O meu primeiro contacto com as pessoas é de uma grande afabilidade. Quando as pessoas recusam essa afabilidade, então eu dou-lhes o que elas me pedem: irascibilidade. Volto-lhes as costas irascivelmente, mais nada. Se é isso mau génio, talvez seja» (Entrevista de 1983).
Conheci Natália, já não no período da sua aura mítica de sedução, mas no tempo da sua força, do seu entusiasmo, da fantástica capacidade de afrontar tudo e todos, em nome dos valores em que acreditava. Convidei-a muitas vezes para debates e reflexões e nunca se negava, desde que o combate valesse a pena. A cultura para a poeta e para a escritora significava, a um tempo, ter capacidade criadora, e poder comunicar a força íntima. Era uma açoriana de gema, que fazia das suas ilhas encantadas um sinal indómito de autonomia e força anímica. Acreditava, por isso, nas identidades abertas – e proclamava a açorianidade como uma marca indelével de espírito e de vontade. O culto do Espírito Santo sobre que a ouvi falar, em cumplicidade estreita com Agostinho da Silva ou Lima de Freitas, era um modo de afirmar a sua heterodoxia, salientando como essa forma de pensar era um modo de afirmar a vontade de ligar o primado das pessoas ao sonho de uma utopia onde não houvesse amos e súbditos, onde houvesse a partilha plena da riqueza e onde uma mulher pudesse ser coroada com a coroa do Espírito. Nesta linha, demarcava-se com clareza de qualquer fechamento provinciano ou de um qualquer protecionismo cultural. Dava-se muito mal com o egoísmo e com a hipocrisia. Tantas vezes usou a sua coragem para desafiar os poderes mais instalados e subservientes. No caso do amor de Snu Abecasis e Francisco Sá Carneiro, não dissimulou, desde o primeiro momento, a sua consideração positiva. O mesmo se diga de tantas outras atitudes poéticas, intelectuais, políticas e cívicas, mesmo contra as correntes dominantes. Nunca regateou esforços por uma boa causa em que acreditasse. E o seu tempo e a sua atitude foram precursores em muitos combates – entre os quais o direito inalienável à diferença.
Dizia os poemas de Antero de Quental com uma verve e uma intensidade, como ninguém mais fazia. Compreendia Vitorino Nemésio, nas suas diversas facetas, ponto de encontro de desassossego e de inconformismo, como ninguém mais. Dialogava com Agostinho da Silva, de igual para igual, com o mesmo idealismo, mas sem esquecer a racionalidade. Recordava com saudade os tempos em que pôde usufruir da maiêutica de António Sérgio, em inesquecíveis tardes de sábado, com um chá gordo de ideias e de pensamento crítico. Eram épicos os serões no “Botequim”, onde tudo se debatia e de tudo se falava. David Mourão-Ferreira disse que ela foi a irmã que nunca teve. José-Augusto França considerou-a a “mais bonita mulher de Lisboa”. Mário Cesariny também se deslumbrava que a sua beleza que superava as melhores obras de Miguel Ângelo. Para Fernando Dacosta: “As causas, as pessoas do coração e do sonho, e da fé, tinham-na do seu lado; as causas, as pessoas da manipulação, do utilitarismo, da serventia, conheciam-lhe a cólera, o chiste, a indignação”. A sua indignação era inexorável e não podia deixar alguém indiferente…
Um dia Natália, perante a acusação num tribunal plenário, propôs-se uma defesa intransigente e poética. O seu advogado pediu-lhe que não usasse o poema, uma vez que o mesmo lhe traria, por certo, dissabores, sendo, no mínimo, considerado ofensivo para o plenário. Hoje, lemo-lo como um verdadeiro manifesto pela liberdade. Sabemos que não foi dito, mas Natália tinha vontade e ânimo para o fazer. Ele representa, sobretudo nos dias de hoje, um alerta severo, contra as tentações que subalternizam a liberdade e que fazem regressar as formas mais subtis de condicionamento e de desenfreado populismo, que tendem a pôr a democracia entre parêntesis. A releitura do poema, publicado em “As Maçãs de Orestes” de 1970, fala por si e merece uma releitura permanente e atenta: «Senhores jurados sou um poeta / um multipétalo uivo um defeito / e ando com uma camisa de vento / ao contrário do esqueleto. / Sou um vestíbulo do impossível um lápis / de armazenado espanto e por fim / com a paciência dos versos / espero viver dentro de mim. / Sou em código o azul de todos / (curtido couro de cicatrizes) / uma avaria cantante / na maquineta dos felizes. / Senhores banqueiros sois a cidade / o vosso enfarte serei / não há cidade sem o parque / do sono que vos roubei. / Senhores professores que pusestes / a prémio minha rara edição / de raptar-me em crianças que salvo / do incêndio da vossa lição. / Senhores tiranos que do baralho / de em pó volverdes sois os reis / sou um poeta jogo-me aos dados / ganho as paisagens que não vereis. / Senhores heróis até aos dentes / puro exercício de ninguém / minha cobardia é esperar-vos / umas estrofes mais além. / Senhores três quatro cinco e sete / que medo vos pôs por ordem? /que pavor fechou o leque / da vossa diferença enquanto homem? / Senhores juízes que não molhais /a pena na tinta da natureza / não apedrejeis meu pássaro / sem que ele cante minha defesa. / Sou uma impudência a mesa posta / de um verso onde o possa escrever / ó subalimentados do sonho! /a poesia é para comer». Quando hoje voltamos ao poema, entendemos a dimensão singular de Natália Correia. E assim, podemos compreender não só a coragem de defender a liberdade criadora (que a levaria à condenação, com pena suspensa no caso da “Antologia de Poesia Erótica e Satírica”), mas também a determinação em não deixar por mãos alheias as causas cívicas em que genuinamente acreditava.
A imensidão dos espaços físicos existe dentro de cada ser.
“The world is large, but in us it is deep as the sea.”, R. M. Rilke
Os espaços são testemunhos de vida e são suscetíveis de ser manipulados pela memória e pela imaginação. São uma mistura de passado, de sonho e de experiência e têm a capacidade de revelar e corresponder ao estado íntimo de cada ser.
Gaston Bachelard em The Poetics of Space, no capítulo “Intimate Immensity” explica que a imensidão do mundo exterior é um estado íntimo. A imensidão pertence à categoria do sonho. O sonho e o devaneio têm a capacidade de transportar o ser para fora do mundo imediato e a contemplação tem sobre si a marca do infinito.
Para Bachelard, apenas através da memória, longe do mar e da terra sem-fim, podem-se adquirir ressonâncias do inalcançável. A imensidão está dentro de cada ser. Está ligada a uma expansão, que a vida restringe e sufoca - mas que, segundo Bachelard, pode ser reactivada sempre que se está sozinho ou parado: “Indeed, immensity is the movement of motionless man.” (Bachelard 1994, 184)
A sede de imensidão, define o ser da imaginação pura, permite o alargamento da consciência e a abertura do mundo concreto. Muitas vezes é esta imensidão interior que dá sentido real ao espaço limitado e visível.
“I live in great density (…) In the forest, I am my entire self.”, René Ménard
Bachelard revela que só se consegue meditar perante aquilo que já conhece. Mas existem certos espaços físicos cuja ligação é imediata e intrínseca e não depende de nenhuma condição ou predisposição prévia - tal como o mar ou a floresta. Estes espaços, transportam naturalmente a profundidade íntima de todos os seres: “The forest is a before-me, before-us, whereas for fields and meadows, my dreams and recollections accompany all the different phases of tilling and harvesting. When the dialectics of the I and the non-I grow more flexible, I feel that fields and meadows are with me, in the with-me, with-us. But forests reign in the past.” (Bachelard 1994, 188)
Há assim imagens de certos lugares que já existem dentro de cada ser, mas a ressonância dos espaços que formam o mundo só acontece se houver predisposição. O muro que separa o eu de o mundo e que impede a sua compreensão, só pode deixar de existir se houver um diálogo entre dois silêncios e duas solidões. E o esforço de entender e de ver a verdade que está por trás de cada espaço e de cada objeto, pode ajudar a pertencer. Os espaços desconhecidos demoram tempo a ser entranhados e entendidos.
Deste modo, Bachelard escreve que um espírito que medita e que sonha, consegue alcançar imagens de imensidão até no mais pequeno objeto. A vastidão e o infinito podem estar ao alcance imediato. O mundo percetível é então um eco do que já existe dentro de cada ser. A imensidão íntima e particular tem a capacidade de absorver e dissolver o mundo percetível. Quanto mais profunda for a interioridade e o detalhe maior será o alcance do infinito. Para Bachelard cada ser é o espelho de uma vastidão singular.
A última conversa com o meu amigo Manuel Brito, há cerca de uma semana, terminou com a combinação de que avançaríamos nos vários projetos em carteira. Estava um pouco cansado fisicamente, mas não lhe faltava o entusiasmo de sempre. Com votos de melhoras, encontrar-nos-íamos dentro de dias para acertar os pormenores. Por isso, não me perdoaria se hoje fizesse aqui um obituário. O que importaria sempre mais seria o futuro e os novos projetos. Nos vários domínios em que se empenhou ao longo da vida, era um exemplo de competência, de rigor e de solidariedade. Nos últimos anos, tivemos um contacto permanente, na sua função de auditor financeiro. Nunca falhava e estava sempre disponível para as mais complexas tarefas ou para os mais diversos pormenores. Como algarvio dos quatro costados, além da sua principal ação profissional, lançou-se nos últimos anos em dois projetos que o apaixonavam. A editora “Sul, Sol, Sal” e a “Casa do Meio Dia” depressa ganharam a ribalta no campo da criação e das artes e da defesa do património cultural. E insistia em dizer: “o nosso objetivo é editar obras que valorizem a cultura e o património algarvio e façam com que a visão exterior do Algarve saia reforçada e deixe de ser tão negativa… Os projetos que tenho (dizia) não obedecem a critérios financeiros de rentabilidade, vivo do que já trabalhei e com o conforto que considero adequado. O que eu procuro são projetos que sirvam e valorizem o Algarve”. O mesmo entusiasmo tinha com a empresa de embarcações movidas a energia solar, a “Sun Concept”, em cujo desenvolvimento colocava a maior esperança. Mas, como sonhador realista, dizia-me que a “Sul, Sol e Sal” é um “embrião cultural improvável para o Algarve”. E era sua intenção editar obras em várias áreas, em especial nos domínios da história e do património, mas também do urbanismo, da agricultura biológica e da ecologia. Escolheu uma designação quase mágica e como símbolo a maravilhosa canoa da Picada, embarcação veleira de tradição mediterrânica, utilizada até finais do século XIX que, devido à sua rapidez e facilidade de manobra, transportava o peixe vindo do alto mar para chegar às cidades. A metáfora da pesca milagrosa adaptava-se plenamente à difusão do livro e da leitura. Aliás, logo no início, o saudoso professor Joaquim Romero Magalhães propôs uma “Algarviana Breve”, lembrando Mário Lyster Franco, e projetou a publicação da “Crónica da Conquista do Algarve”, nunca editada, ou dos textos de Raul Proença no “Guia de Portugal”. Essa a linha estratégica de um projeto pleno de virtualidades que envolverá a cooperação da Universidade do Algarve e dos melhores especialistas. Não por acaso, a tónica em que Manuel Brito insistia era que a editora “é um projeto que não procura o lucro, mas tem de ser sustentável”. E o Algarve bem precisa da valorização do que tem de mais rico – as raízes, a economia, a natureza e o desenvolvimento humano. As obras editadas, como “Olhão fez-se a si próprio” do também saudoso António Rosa Mendes, ou “A Pesca no Algarve Medieval” de José Marcelino Castanheira e o texto fundamental de Joaquim Romero Magalhães “O Algarve Económico durante o século XVI” constituem bons exemplos da defesa do património cultural como realidade viva, não numa lógica retrospetiva, mas sempre como conceito em movimento. Por tudo isso, refiro o exemplo de alguém que nos deixa como legado um desafio de responsabilidade, ligando a memória das raízes antigas, o diálogo entre culturas e a necessidade de encarar o desenvolvimento humano como uma ligação permanente entre o conhecimento, a compreensão, a ciência, a educação, as artes e a cultura. Tenho no ouvido a nossa última despedida “até ao nosso próximo encontro”. É duro dizê-lo, mas vamos continuar!