Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Aproxima-se o Halloween, a festa de todos os santos e o dia de finados. O que aí fica é uma reflexão sobre essas celebrações, também num esforço por mostrar a sua conexão.
1. Como todas as instituições, que celebram os seus heróis, também a Igreja cristã começou, já no século II, a celebrar os mártires, aqueles que, como diz a palavra, morreram por Cristo, para d'Ele darem testemunho. No século VII, o Papa Bonifácio IV consagrou em 13 de Maio de 609 ou 610 o Panteão romano a Maria, mãe de Jesus, e todos os mártires. No século seguinte, uma vez que, dado o seu número, já não era possível dedicar um dia a cada santo, Gregório III dedicou uma igreja em Roma a todos os santos, e essa festa de todos os santos tornou-se universal em 835 por decisão do Gregório IV. E aqui surge uma pergunta: porquê no dia 1 de Novembro?
No dia 1 de Novembro, havia uma grande festa celta, o Samhain, celebrando as divindades pagãs, as colheitas e a entrada no inverno: precisamente nesse dia acendia-se o primeiro fogo. Para que a festa pagã não monopolizasse as atenções, introduziu-se a festa de todos os santos neste mesmo dia.
No século XIX, houve uma imensa imigração de irlandeses para os Estados Unidos. Como é natural, levaram com eles as suas tradições, também o Samhain, inaugurando o inverno, no qual se impõe a noite, noite que mete medo — na noite, esbatem-se as fronteiras entre o aquém e o além.
Na noite de 31 de Outubro para 1 de Novembro, festeja-se o Halloween, a noite das bruxas, dos fantasmas... Repare-se no termo Halloween em inglês e veja-se o que significa. Halloween é All Hallow’s Eve, que significa, textualmente, véspera de todos os santos.
Que se conclui então? Diz-se que o Halloween é uma importação da América. Sim. Mas, se se estiver atento, percebe-se que, afinal, se trata da importação de uma exportação anterior.
2.1. Perguntam-me se os festejos do Halloween me preocupam. Nada, desde que, como todos os festejos, se passem com juízo. Até compreendo. O ser humano precisa de divertir-se, de rir, de fazer humor, exorcizar medos. Ora, cá está, repetindo: na noite, no meio das trevas, há mais permeabilidade entre este mundo e “o outro mundo”. Não esqueço uma conversa, na Alemanha: “com a luz eléctrica, as almas do outro mundo deixaram de aparecer!”.
O que me preocupa é o predomínio desses festejos sobre a festa de todos os santos. Preocupa-me que já não se pense no sentido da vida, no sentido último.
Por vezes, tem-se uma ideia errada da santidade. O santos não são uns beatos, a “bater constantemente com a mão no peito”. São pessoas normais, que cumprem o seu dever, numa vida honrada e digna. Significativamente, santo tem a ver com saúde em várias línguas. Em português, dizemos que alguém está são, com saúde, e também dizemos São João, São José. O santo é uma pessoa sã em todos os domínios: que cuida da saúde física, moral, espiritual, capaz de sacrificar-se pelo bem, numa relação boa consigo, com os outros, com a natureza, com Deus. Pergunto: ao contrário do que dá a entender a Igreja oficial, que parece canonizar apenas homens e mulheres consagrados, dedicados à religião, não há tantos homens e mulheres e casais verdadeiramente santos, exemplares no seu amor fiel, na educação dos filhos, no trabalho, na relação boa e felicitante com os outros, na relação com Deus?
E a fé é um combate, até para os santos canonizados. O Papa Francisco acaba de escrever uma Exortação Apostólica, “C’est la confiance”, sobre Santa Teresinha do Menino Jesus e não ignorou este seu escrito: “Eu sofria então grandes provas interiores de todo o tipo (até chegar a perguntar-me por vezes se o Céu existia). Quando canto a felicidade do Céu e a eterna posse de Deus, não experiencio a menor alegria, pois canto apenas o que quero crer.”
Neste contexto, permita-se-me um parêntesis: não sou favorável à canonização no sentido oficial corrente do termo. Até porque custa imenso dinheiro — dizem-me que pode chegar a centenas de milhares de euros. E porque se exige um milagre. Ora, não há milagres, porque tudo é milagre: o milagre do ser e de ser. Deus criou o mundo com as suas leis. Deus é infinitamente transcendente e ao mesmo tempo infinitamente presente à sua criação; Ele não está fora, mas dentro; ora, o milagre pressuporia que Deus está fora e, por vezes, vem dentro, e vem a favor de uns e não de outros. E como se saberia que determinado milagre é por causa de um determinado “santo” e não de outro que também aguarda a canonização?
A canonização só faria sentido como declaração de que alguém teve uma vida exemplar como cristão ou cristã.
2.2. No dia 2 de Novembro, celebra-se o dia dos defuntos. E, para muitas pessoas, ainda é importante fazer memória dos mortos. De qualquer modo, já não é como era. De facto, característica essencial desta nossa sociedade é fazer da morte tabu. Disso não se fala.
Não sou de modo nenhum favorável ao pensamento mórbido da morte, de que a própria Igreja se serviu por vezes para atemorizar e exercer poder, mas, quando a morte se torna tabu, há o perigo de cair na banalidade rasante e não colocar as perguntas essenciais. Já não se pensa e cai-se numa sociedade doente. Poderia dar muitos exemplos, mas deixo apenas uma pergunta: Que se passa neste país onde cerca de 9% dos juízes recorrem a drogas: haxixe e cocaína?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 28 de outubro de 2023
A Cultura como Enigma procura, num conjunto de crónicas e ensaios, salientar a importância das Humanidades como aprendizagem do ser, do conhecimento, do saber fazer e do viver com os outros, ligando cultura e ciência e visando superar a indiferença e o relativismo que subalternizam a memória, que absolutizam os contextos e os mercados e que põem em causa a dimensão emancipadora e universal da dignidade da pessoa humana e a salvaguarda da liberdade e dos direitos humanos.
UM MOMENTO ESPECIAL Num momento em que o Direito e a Cultura da Paz são menosprezados e desrespeitados, importa recuperar as virtualidades do universalismo humanista, longe da separação e da fragmentação de um formalismo que pode tornar os seres humanos súbditos ou instrumentos de novas idolatrias. O elogio do livro e da leitura significa, assim, a procura de uma emancipação baseada na autonomia, na liberdade e no sentido crítico. O enigma da cultura está, assim, no misterioso diálogo com as gerações que nos antecederam e com os pensadores, artistas, cientistas, criadores, que podemos encontrar na leitura ou no usufruto das mais diversas formas de arte e de conhecimento. É esta a pergunta fundamental da esfinge na porta de Tebas.
Eis o introito desse conjunto de reflexões: «Gosto das casas com livros e da alma que eles alimentam. E falar de livros é lembrar a sua presença a ocupar amigavelmente todos os cantos das casas onde eles existem. Não concebo a hospitalidade de uma casa sem a omnipresença dos livros. E não há prazer maior do que ir à estante e folhear um livro, que já não recordamos, do qual temos uma lembrança vaga ou que julgamos ter bem presente. No fundo, os livros fazem parte dos nossos afetos. No entanto, porque os livros vivem, ou não fossem a projeção permanente dos seus autores nas nossas vidas, é normal que quando os relemos, e julgamos conhecê-los, descubramos novas ideias, novas perspetivas, cambiantes diferentes, com se fossem eternamente novos. As bibliotecas são sempre lugares iniciáticos, misteriosos, labirintos autênticos e inesgotáveis.
ENCRUZILHADAS, BIFURCAÇÕES Os contos de Jorge Luís Borges têm a ver com esses caminhos, encruzilhadas, bifurcações, becos, saídas que nos entusiasmam ou exasperam. As minhas primeiras recordações da biblioteca fantástica de meu avô têm a ver com as Enciclopédias e os Dicionários. Foi por aí que comecei, na tentativa, sei hoje que vã, de procurar as saídas dos labirintos. E lembro-me bem dos sábados, passados até que a luz se desvanecesse, a correr de Herodes para Pilatos nas várias entradas do velho “Dicionário de Portugal”, a descobrir os vultos do nosso oitocentismo, a desvendar uma gigantesca Enciclopédia espanhola ou o “Larousse Illustré”, a folhear os Atlas e os livros imponentes e pesados com as reproduções já um pouco desmaiadas das grandes obras de arte do mundo, nos grandes Museus, desde o Louvre aos Ofícios de Florença, passando pelo misterioso Hermitage…
Eram horas esquecidas, em companhia da multidão de mortos que povoavam essa encruzilhada única que era a livraria de meu Avô (biblioteca e livraria eram sinónimos no vocabulário lá de casa). Penso que o vício dos livros veio no meu código genético. Nunca me senti bem sem eles. E quando há o vício de lidar com livros, tudo o que vem à rede é peixe. E, a pouco e pouco, depois da História, que havia para todos os gostos (o meu Avô era professor de História e Geografia), vinha o território da poesia e dos romances - dos romances, inevitavelmente. Entre duas revoltas e quatro viagens virtuais ou imaginárias (Odisseia, Ilíada, Eneida, Gulliver, Robinson e Júlio Verne) ia à poesia (Camões, Garrett, Antero, Cesário, Pessanha…) e aos romances, às coleções completas de Camilo e de Eça, sem restrições. Lá estavam todos. E rapidamente pude perceber por que razão Tolstoi era o romancista preferido dessa livraria ordenada e silente. Em frente de um antigo Atlas, perante a trajetória audaciosa e suicida do Imperador, jamais esquecerei as descrições épicas de “Guerra e Paz”.
Aos mortos das enciclopédias juntava-se a outra multidão das personagens romanescas: Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, Zé Fernandes, Jacinto, Carlos, Maria Eduarda, Basílio, Luísa… Stendhal confundia-se com Julien Sorel, com Fabrice del Dongo, com Clélia ou Sanseverina. Só Flaubert permitia compreender a ascensão e a queda de Cartago, através de Salammbô… E fica uma enorme saudade dessas aventuras e de quando minha Mãe vinha dizer serenamente que era chegada a hora de voltar».
SIC TRANSIT GLORIA MUNDI… por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Prolongo esta estadia em Viena, "noblesse oblige". Mas também me dá tempo para voltar à ópera, desta vez na Grosses Spielhaus, em Salzburg. Ontem, tive uma "Salomé", do Richard Strauss, dirigida pelo Karajan. Valeu muito mais pela música e pela direção nervosa do maestro do que pela encenação. De certo modo, o Herbert von Karajan parece ser feito para esta "Salomé" que, aliás, dirigiu pela primeira vez há quase meio século, tinha ele 21 anos, e eu poucos mais. Então, como agora, tremi naquele monólogo final da filha de Herodíades, dirigindo-se à cabeça cortada de S. João Baptista: "Ah! Ich habe deinen Mund geküsst, Jochanaan!" Beijei a tua boca e os teus lábios tinham um sabor amargo... Seria o gosto do sangue? Não! Talvez fosse o gosto do amor, dizem que o amor tem um sabor amargo. Hoje, aproveito a minha folga da noite para ficar no quarto do Hotel Sacher a ler as notas do programa e o libreto. E sou recordado do drama de Oscar Wilde que inspirou a trama da ópera, e da sua relação ao poema "Hérodiade" do Mallarmé e ao "À Rebours" do Huysmans, onde se descrevem duas pinturas do Gustave Moreau: uma representando a dança dos sete véus - a que Strauss dedica, na partitura, uma suite para orquestra que durará cerca de dez minutos - e outra intitulada "L’Apparition", em que a Salomé, vinda do Evangelho de S. Mateus, ganha novas proporções: "Ici, elle était vraiment fille; obedecia ao seu temperamento de mulher ardente e cruel; vivia,mais refinada e mais selvagem, mais execrável e mais delicada; despertava mais energicamente os sentidos em letargia do homem, enfeitiçava, domava com mais segurança as suas vontades, com o seu encanto de grande flor venérea, crescida em solos sacrílegos, cultivada em estufas ímpias". E Oscar Wilde, achando demasiado dócil a Salomé das escrituras, dirá que será por isso que os séculos seguintes foram depositando a seus pés sonhos e visões que a convertessem na "cardinal flower of the perverse garden"... Assim me ocorreu a tese do Jean Guitton, de que já te falei, sobre o tema do amor na literatura, a transgressão de Tristão e Isolda divinizada pela tradição romântica ou romanesca. Finalmente, talvez pela evocação de Huysmans ou de Mallarmé (já verás porquê), chego ao Tolstoi de "O que é a arte?", que vou lendo agora. Confesso que é bem possível que este encontro se deva a ti, que me habitas o pensamento e o coração e comigo percorres estas divagações... Foste tu quem me sugeriu esta visita a Tolstoi. Para ele, o apagamento da consciência religiosa e a perda da fé nas classes mais altas da sociedade europeia, em conjugação com a separação entre a arte que lhes dá prazer e a tradição da arte popular, reduziram a emoção estética ou artística a três sentimentos básicos e pobres: orgulho, desejo sexual e tédio da vida. O sentimento do orgulho surge na Renascença, com a arte paga pelos ricos feita em seu próprio louvor e enaltecimento; depois veio a exaltação da carne como motor da produção artística e literária; finalmente, o cansaço de tudo isso, o tédio de viver. E nessa viragem do século XIX para o XX - em que, quiçá?, as filosofias de Nietzsche e Schopenhauer serão já proféticas do orgulho, do pessimismo, do medo e da destruição resultante - o Leão russo ruge e zanga-se com os literatos (sobretudo franceses), Mallarmé e Huysmans, Baudelaire e Verlaine, Zola, etc... Com os compositores, desde a última fase de Beethoven ao Richard Strauss, passando por Wagner, Brahms e Liszt... Para ele, tudo lhe parece pornografia e decadentismo, bem longe do que foram as obras de Goethe, Schiller, Victor Hugo, Dickens, Mozart, Bach, Chopin, da Vinci, Rafael ou Miguel Ângelo... muito embora morda nalgumas dessas ou encontre a desculpa de que as massas populares não as teriam sempre entendido por estarem deficientemente educadas! Subjacente a esta raiva crítica está a inspiração evangélica e a profunda solidariedade humana do desejo tolstoiano de um mundo novo. Será utópico, talvez risível. Mas vindo de um aristocrata russo que morreu sete anos antes da revolução de 1917 - curiosamente, em 1910, quando Sir Thomas Beecham dirigiu, no Covent Garden de Londres, a "première" da "Salomé" de Strauss - tem ela, pelo menos, o mérito de nos incomodar... Nós que, diletantemente, nos entregamos ao gozo privilegiado de tanta literatura, espetáculo e artes plásticas, que o dinheiro paga para nosso bel-prazer, e não nos apercebemos de como a celebração de novidades, efemérides ou gostos raros - tal como certas práticas e ritos bacocos de pietismos em que pretendemos encerrar, para consumo próprio, a grandiosidade generosa e abundante do divino - nos afastam dos outros e nos reduzem. A arte, em todas as suas formas e manifestações, deve ser uma procura - simultaneamente dolorosa e alegre, como um parto - da comunicação. É partilha. Leio contigo este passo de "O que é a arte?" de Tolstoi: "Em consequência da descrença das pessoas das classes altas, a arte dessas pessoas tornou-se pobre em conteúdo. Mas, além disso, tornando-se cada vez mais exclusiva, tornou-se por esse motivo mais complicada, extravagante e obscura. Quando um artista do povo - como eram os artistas gregos e os profetas hebreus - criava a sua obra procurava evidentemente dizer aquilo que tinha para dizer de maneira a que a obra dele fosse compreendida por todas as pessoas. No entanto, quando o artista criava para um pequeno círculo de pessoas que viviam em condições excecionais, ou até para um indivíduo e os seus cortesãos, para um papa, um cardeal, um rei, um duque, uma rainha, uma amante do rei, empenhava-se naturalmente em produzir efeito apenas sobre essas pessoas que lhe eram conhecidas e que viviam em condições que também lhe eram conhecidas. Este método mais fácil de despertar sentimentos conduzia involuntariamente o artista a expressar-se por alusões incompreensíveis para todos a não ser para os iniciados..." (Tradução do russo por Ekaterina Kucheruk, para a Gradiva). Sem concordar com todos os pressupostos da análise de Tolstoi, confesso que, muitas vezes, até a simples leitura de crónicas ou resenhas críticas publicadas nos jornais me causa o desconforto de me sentir metido numa conversa que não me diz respeito. E é verdade que os círculos artísticos e literários tendem a produzir linguagens e modos herméticos e "sectários". Um pouco como aqueles adolescentes que se reúnem na zona de Shibuya, em Tokyo, e falam entre si um "japonês" inacessível até para seus pais... Não creio que a arte possa ou deva ser elitista e exclusiva. Antes penso que a arte é a procura da perfeição, de modo a que a expressão do belo se torne numa mensagem universal, comunicante e libertadora. O artista não impõe nem define. Desperta. Nesse sentido a obra de arte é, como a graça de Deus, um apelo, uma chamada. Quem contempla uma gravura ou escuta uma sonata não sentirá exatamente o impulso ou a ideia do autor, mas é pela obra deste libertado para o sentimento ou a contemplação de uma perfeição sempre imperfeita, porque sempre procurada. Volto ao nosso Ortega y Gasset: "El hombre es un trânsfuga de la naturaleza". Somos viandantes, precisamos de estrelas. E para as vermos, temos de olhar para cima. A importância da educação literária, musical e artística é esse convite a olhar para cima. E, também, a de ensinar que a busca da perfeição das coisas e das belezas do espírito é - como o amor e a ternura - difícil. Nesse sentido, o artista, como artesão, é um asceta. Um canteiro de flores ou uma horta bem cultivada, tal como uma mesa ou uma ponte bem construídas, ou um saboroso almoço, são obras de arte também. Feitas pelo trabalho dos homens, sujeito ao gosto e à disciplina de fazer melhor. Vou buscar ao "Pour une Théologie du Travail" do Padre Marie-Dominique Chenu um texto do teólogo oriental São Máximo (morto em 668) que o teólogo dominicano apresenta assim: "Ao contrário dos Padres latinos, que, sobretudo com Santo Agostinho, se agarraram à interioridade do homem contra as dispersões do mundo exterior, os Gregos prestavam grande atenção à relação do homem com a natureza. Retomando um dos grandes temas antropológicos da Antiguidade, definiam o homem como um "microcosmos": o homem recapitula em si os elementos e os valores do cosmos; recapitula-os estaticamente, no cimo de todas as naturezas; recapitula-os, graças a essa comunhão física e vital, dinamicamente, numa escalada hierárquica para a Unidade suprema." Minha Princesa: eu diria, do artista, isto que São Máximo aqui diz do homem: "O homem é uma oficina viva, em permanente continuidade de ação, em todos os seres. Através das realidades mais diferentes e segundo toda a sua diversidade, ele é, por si mesmo e em natureza, no bem e na beleza, segundo a génese de cada ser, o artesão da unificação delas... ...Essa potência unificadora, exercendo-se na causalidade do devir desses diversos seres, revela, cumprindo-o, o grande mistério do plano divino; porque determina harmoniosamente a coerência mútua dos seres opostos, dos mais próximos aos mais longínquos, dos menores aos maiores, e assim os conduz por um regresso progressivo à sua unidade em Deus...” Nas suas viagens pelo mundo, Camilo Maria, além de uma maleta de cabine em que levava alguma leitura e papel para escrever, e da mala da roupa, tinha sempre outra, mais pesada, cheia de livros. Quando lhe perguntavam o que nela trazia, invariavelmente respondia: "É a minha maquilhagem!"
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 13.08.13 neste blogue.
Foi necessário um parecer de 2021, homologado pela ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, em 2023, para considerar ilegal o uso exclusivo do inglês na denominação da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, que aquando da mudança de estatutos tinha assumido o novo nome de “Nova School of Law”.
Este comportamento, além de contrário ao imperativo constitucional de que, em Portugal, “A língua oficial é o Português” (artigo 11.º, n.º 3 da CRP), viola o art.º 10.º, n.º 1, do Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIER), que estabelece: “As instituições de ensino superior devem ter denominação própria e caraterística, em língua portuguesa, que as identifique de forma inequívoca, sem prejuízo da utilização conjunta de versões da denominação em línguas estrangeiras”.
Prevê o n.º 3 do mesmo normativo, ficar reservada para denominações de estabelecimentos do ensino superior a utilização dos termos, bem portugueses, como “universidade”, “faculdade”, “instituto universitário”, “instituto superior”, “instituto politécnico”, “escola superior e outras expressões que transmitam a ideia de nele ser ministrado ensino superior”.
Após prever que “A denominação de cada instituição de ensino só pode ser utilizada depois de registada junto do ministério da tutela” (n.º 4), dispõe o n.º 5 que o desrespeito é fundamento de recusa ou de cancelamento do registo de denominação. Por uma questão de princípio, bom senso e pela própria natureza da factualidade em análise e seu contexto, a língua portuguesa deve ser exclusiva ou ter primazia, nunca ser excluída, como sucedeu, ao arrepio do registo oficial (em português), nada impedindo a utilização conjunta de denominação em idiomas estrangeiros, com primazia para o nosso.
Foi necessária a queixa de alguém que, no legítimo exercício do seu direito de cidadania, questionasse quem de direito para o abuso a que se chegou, só agora se normalizando e revertendo a situação, via recente homologação ministerial, de julho deste ano (pela leitura da imprensa), aguardando-se os seus resultados práticos, dado que, pelo que acabamos de investigar, a designação “Nova School of Law” permanece generalizada na internet e, provavelmente, em documentos e páginas oficiais (como vinha sucedendo).
A generalização do inglês, como língua franca, não justifica estes excessos de deslumbramento parolo e de uma internacionalização forçada e provinciana.
Reza a lenda que a Grécia foi formada por Deus quando depois de distribuir pelo mundo as terras, olhou a sua peneira, e deu consigo com inúmeras rochas e pedras a mais, e aproveitou e construiu a Grécia.
Realmente, na Grécia, até as montanhas parecem sair da água, e da República Helénica, quatro quintos são também desfiladeiros e picos grandiosos.
Na Grécia, o coração da geopolítica é extraído de Tucídides e da sua História da Guerra do Peloponeso, obra que ainda serve de base a discussões de aconteceres contemporâneos.
Para Tucídides, o poder hegemónico e o desejo de conquista constituíram o principal fator e base da guerra do Peloponeso. Recorde-se a chamada «armadilha de Tucídides».
Assim, ainda hoje se refere que na origem da guerra esteve sempre o poder ateniense e o medo que tal realidade despertava em Esparta. Hoje também podemos pensar na ascensão da China e nas emoções que os domínios provocam em muitas partes do mundo.
Mais uma vez a Geografia nos ensina a importância da motivação dos comportamentos para a organização dos países e suas modificações culturais e fronteiriças, entre outras.
Como se sabe a geopolítica foi um termo criado no começo do séc. XX pelo sueco Rudolf Kjellén, e tem como objetivo analisar até que ponto a situação geográfica é capaz de interferir nas ações políticas, perscrutando as características do território com o desenvolvimento dos países.
Friedrich Ratzel (1844-1904) considerado como um dos principais teóricos clássicos da Geografia, e influenciado pela obra de Charles Darwin, vem a desenvolver a conhecida Teoria do Espaço Vital.
A Teoria do Espaço Vital, determina que aquelas populações que dispusessem de melhor espaço vital, estariam mais aptas a se desenvolver e a conquistar outros territórios.
Era o modelo político-ideológico que Hitler apresentava para a Alemanha.
Hoje, uma das leituras que podemos fazer, é a de que, se na antiguidade o mar Jónico e o mar Mediterrâneo, foram mares que ligaram comércios, novas ideias, riquezas e também conflitos, hoje podem significar que a Grécia tem de estar atenta ao Médio Oriente, zona de confluência do continente asiático com a Europa e a África, e no qual a economia gira em torno da exploração de petróleo e de gás natural.
Todavia, a orografia (que estuda as nuances do relevo de uma região) e tal como já numerosos invasores antigos constataram - como nas Guerras Médicas lideradas pelos derrotados persas – diz-nos que, na Grécia, esta característica muito a protege de uma invasão, para além de contar também com o mar como defesa natural.
Afinal, não é em vão que o termo «acrópole» significa «cidade alta» também por entre a Geografia e outras leituras do mundo.
“Germa não reparava no que (Bernardo) dizia. Pensava em Quina. Daquela casa onde nada tinha mudado ou quase nada, onde os tetos mantinham a mesma pintura azul-cinzento de quando, depois do incêndio, fora reedificada, ela ria ficando cada vez mais ausente, pois os mortos só dos vivos se alimentam, e dependem apenas das suas recordações”. Agustina Bessa-Luís retratou em A Sibila com mestria, num cenário minhoto, uma mulher e cem anos da história portuguesa, desde 1850, quando o país encontrou forma de querer modernizar-se e um novo tempo simbolizado na consideração da herança de Quina. Eduardo Brito, dirigiu A Sibila para o cinema e tem razão quando diz que um romance tem muitos filmes lá dentro. Formalmente, trata-se do encerramento das celebrações centenárias de Agustina. Mas, pela riqueza da criação literária, fica pano para mangas, para descobrirmos um extraordinário universo de temas e de personagens, mas também de literatura de primeira água, numa obra que tem neste romance o seu paradigma. O filme respeita por inteiro o lugar sagrado da literatura e faz seguir as personagens como protagonistas vivos, que ajudam a compreender o país histórico, rico de exemplos diferentes e contraditórios, bem ilustrados no germinar das vontades.
Pouco importaria que Bernardo expusesse a sua tese preconceituosa, romântica, banal, contra o burguês. A verdade é que o tempo revelou Quina, a sibila, como um ser raro e apaixonante. Não é por acaso que se é “possuidora de todo o puro enigma do ser humano, vórtice de paixões onde subsiste, oculta, nem sempre declarada, às vezes triunfante, uma aspiração de superação, alento sobre-humano que redime e que transfigura”. Com um pano de fundo de história atribulada, depois de terem assentado as paixões mais violentas das guerras civis, é o país de Camilo que encontramos no que se segue, desde a Patuleia e da Maria da Fonte até ao José do Telhado, José Teixeira da Silva, de estranha aura, companheiro do autor de Memórias do Cárcere, na cadeia da Relação do Porto. Desde a Casa do Freixo até à Vessada, sente-se o Tâmega, Vila Meã e a vitalidade de Amarante. Quina admirava a doce evocação do pai, Francisco Teixeira, com “voz quente e cheia de paciente expressão”, apesar de uma vida pródiga e desinteressada. “Convém obedecer em particular, mas ser rebelde em geral”. E o certo é que “apenas restava a casa, que ele reconstruíra e também arruinara”. Por isso, impelia-a uma tentação “de se arrojar do leito e ir olhar o quinteiro, na madrugada cinzenta, porque sabia que o pai estava lá, aparelhando o carro que devia partir para o mato, enleando a corda nos fueiros e jungindo os bois que tinha descido das cortes, húmidas do vapor das suas respirações”. Contudo as “mulheres viam-se a braços com toda a responsabilidade, o que não era novo para elas”.
“Aos poucos, a casa da Vessada ficou entregue nas mãos de Quina, e ela foi considerada senhora absoluta dentro daquele pequeno reino de campos, moinhos, bandos de galinhas minorcas, cachorros que alguém salvou de morrer afogados nos ribeiros e que ladram, recuando, aos estranhos que têm, pelo meio da quinta, direito de passagem” … Simbolicamente, Germa lê o primeiro volume da obra de Pascoaes – Sempre e Terra Proibida. Com o testamento, ela mesma viria a ser proclamada principal herdeira, enquanto Custódio, provindo da casa da condessa de Monteros, não viu realizada a sua ambição, de ficar com a Vessada, abrindo-se aí uma história muito macabra de puro desvario. Enquanto Quina fora exemplo implacável de energias humanas que se digladiavam e se deram vida, Germa era o relicário atual de um extenuante legado de aspiração humana. “Nas suas veias, estão todos os infinitos estados do passado…”. E quem é ela, literata, “para ser um pouco mais que Quina e esperar que os tempos novos sejam mais aptos a esclarecer o homem e a trazer-lhe a solução de si próprio?”
Em contraposição com a Torre de Babel, quando cada um quer ser o dominador de tudo e de todos, num orgulho erguido até ao céu, de tal modo que ninguém se entende, noutro livro da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se a descida do Espírito Santo, no Pentecostes — não esquecer que Natália Correia era espírito-santista. "De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem." Ao ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos ficaram estupefactos, "pois cada um os ouvia falar na sua própria língua". Atónitos e maravilhados diziam: "Esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então, para que cada um de nós os ouça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!"
Cada vez mais tomamos consciência disso: o que tem de unir os seres humanos é a justiça, o amor, a solidariedade, a fraternidade, o respeito pela igualdade na diferença e pela diferença na igualdade, pois então os seres humanos, todos, voltaram a encontrar-se e entenderam-se. Portanto, Pentecostes tem de ser todos os dias. No Pentecostes, restabelece-se a unidade desfeita com a Torre de Babel. Trata-se, porém, da unidade na diferença e da diferença na unidade. O amor do Pentecostes une diferenças, sem uniformizar. E abre horizontes novos de esperança à Humanidade solidária.
Um autor é grande — e Natália é grande —, quando é fonte de inspiração e iluminação do futuro. Aí está: na actual situação do mundo globalizado e terrivelmente ameaçado, em que a globalização tem sido sobretudo tecnológica e económico-financeira no quadro do neoliberalismo, é urgência maior pensar numa governança global (não digo um governo mundial, mas uma governança global), para que o império da força da lei ponha limites ao império da lei da força do mais forte — na presente situação de crise global, vários pólos do planeta se perfilam já com intenções de domínio imperial global,... — e, neste contexto, pensar no diálogo multicultural e inter-religioso, em ordem à paz, à justiça, a uma atitude nova de respeito e cuidado da natureza, a nossa casa comum, a uma vida menos centrada no consumo imoderado, no ter, e mais no ser, nesse milagre que é ser, existir e conviver.
Dada a presente crise global, dramática e mesmo trágica, penso que já se devia ter percebido que se impõe um novo macroparadigma de desenvolvimento e também das relações entre os povos, incluindo a sua relação com a natureza. Assim, sejamos crentes ou não, é claro que isso implica uma conversão, um espírito novo, que só pode ser o Espírito Santo, espírito de verdade, de liberdade, de igualdade, de fraternidade.
A tragédia repete-se constantemente. Quando, por exemplo, um ditador brutal, ignorando o Direito Internacional e as Nações Unidas, invade um país independente, aí está uma Babel, num mundo perigoso, com horrores e catástrofes à vista. Não é esse horror que vivemos na e com a Ucrânia? Não está aí, terrível, de consequências catastróficas, outra guerra no Médio Oriente?
Em toda a sua História, talvez nunca a Humanidade tenha estado numa crise tão grave como aquela que já se vive e se agrava cada vez mais. Quando se pensa no aquecimento global, na ameaça climática, na ameaça nuclear, no fosso cada vez mais fundo entre ricos e pobres, nos gastos astronómicos com novos armamentos — anualmente, uns 2 milhões de milhões de euros —, é preciso tomar consciência da ameaça de convulsões em cadeia e inclusivamente da morte global. A Humanidade pode correr o risco de um suicídio colectivo.
Numa entrevista recente, um dos intelectuais mais influentes da actualidade, Yuval Noah Harari, referia o que qualquer um de nós, se não andar distraído, constata: “Somos insaciáveis. Não interessa o que tenhamos conseguido alcançar, queremos sempre mais. Se temos um milhão, queremos dois milhões, se temos dois milhões, queremos dez milhões. O mesmo em relação ao poder: nunca estamos satisfeitos com o que temos, porque, na verdade, não sabemos como traduzir esse poder em felicidade. Somos milhares de vezes mais poderosos do que éramos na Idade da Pedra, mas não somos significativamente mais felizes. Se não aprendermos a parar, a desacelerar, o mais provável é que nos destruamos a nós e a todo o ecossistema.”
Concordando com Harari, julgo que é preciso ir mais longe e mais fundo. Pascal — estamos a celebrar os 400 anos do seu nascimento — escreveu que a constituição do ser humano mora ali algures entre o nada e o infinito (“le rien et l’infini”). Assim, compreendemos que, dada a dinâmica humana, a única verdadeira aspiração, desde o princípio, como se diz no Génesis, é querer “ser como Deus”. Por isso, a alternativa é esta: querer ser Deus pelo orgulho e a dominação de tudo e de todos, construindo uma torre de Babel até ao céu, ou acolhendo a graça que o Espírito Santo concede quando desce em Pentecostes.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 21 de outubro de 2023
Umberto Eco – A Biblioteca do Mundo de Davide Ferrario é mais do que um documentário. É um elogio da Biblioteca e da leitura como lugares de memória.
COMO TUDO COMEÇOU… Tudo começou na Bienal de Veneza em 2015 quando nasceu a ideia de fazer uma vídeo-instalação sobre a memória. O melhor seria organizar uma conversa com Umberto Eco, enquanto “estrela” do mundo da cultura, como especialista das linguagens e das línguas. Depois de uma primeira troca de ideias, Eco aceitou e convidou o realizador a visitar a sua biblioteca. A resposta foi positiva, mas Ferrario compreendeu que teria de fazer algo diferente do que tinha inicialmente pensado. Haveria que ir a um sétimo céu, a um labirinto com corredores mágicos, paredes integralmente forradas de livros de todas as idades e épocas, com os mais variados temas, e diversas escadas móveis capazes de permitir o folhear livros reveladores do carácter inesgotável da procura do conhecimento. Património de cultura e memória desperta ali estavam ao alcance de um qualquer visitante numa espécie de montanha-russa em que se juntavam incunábulos austeros, contos infantis, cancioneiros eruditos e populares, romanceiros e enciclopédias… E tratando-se de um labirinto, haveria que ter cuidado em munir-nos com um indispensável fio de Ariadne que permitisse não nos perdermos nos milhares de caminhos, travessas, becos, encruzilhadas e armadilhas encontráveis num espaço misteriosamente indecifrável.
UM SANTUÁRIO EM MILÃO A casa de Umberto Eco fica no centro de Milão, na proximidade do castelo dos Sforza, tem um longo corredor com trinta passos de estantes totalmente cheias, com encadernações diversas, de pergaminho, de pele, de couro macio, de pano, dos mais diversos tipos de papel, de diferentes cores. Percebia-se uma curiosidade infinita por parte do anfitrião, com gosto pelo insólito. E compreende-se a lenda verdadeira de que Umberto Eco se refugiava na sala ampla, com aparência de arquivo, com uma mesa-redonda cheia de livros em montes, para tocar flauta, rodeado daquele universo de memórias vivas. Qual o grande enigma da cultura senão essa possibilidade transcendente de encontrar os maiores espíritos de todos os tempos e de dialogar com eles ao folhear o que escreveram e pensaram? E a própria flauta é a metáfora da vida, como diria o alquimista Robert Fludd – “o ar soprado por Deus para dar vida ao mundo” passa pelo tubo escuro que o escritor prefere a qualquer instrumento eletrónico… E vem a definição daquele lugar (ou livraria, como diria meu avô): “Bibliotheca, semiológica, curiosa, lunática, mágica e pneumática”. Lembramo-nos dos ocultistas de O Pêndulo de Foucault, que acreditavam em tudo com fanatismo. Baudolino era um falsário genial. A ciência falsa e oculta, as linguagens imaginárias – tudo isso entusiasmava Eco. Mais importantes do que a obra fundamental de Galileo Galilei eram as respetivas refutações falsas. É a mentira que revela a verdade. E qualquer obra revela-se como necessariamente aberta. Poética ou artística a obra abre-se a uma série infinita de leituras possíveis. Autor de uma tese de doutoramento em filosofia sobre S. Tomás de Aquino e a teoria da beleza na Idade Média, Umberto mostrou-se avesso à ideia de escrever um romance. Mas a oportunidade veio inesperadamente. Nascia O Nome da Rosa, e o convite para um pequeno conto, tornou-se oportunidade para uma trama romanesca iniciado com uma lista de monges medievais e com a perigosa pergunta discretamente a um especialista amigo: como se poderia envenenar uma pessoa que estivesse a ler um livro… E a continuação da história é sabida. Conheci Umberto Eco em Lisboa, quando aqui veio a convite de Mário Soares, por sugestão de Fernando Gil. Com António Tabucchi fomos buscá-lo ao Aeroporto, contando com o seu fino humor e uma aversão sistemática aos idiotas. A conferência que realizou na Fundação Calouste Gulbenkian, apresentada por Eduardo Prado Coelho, em 11 de fevereiro de 1988, foi magnífica – “O Irracional, o Misterioso e o Enigmático”, e começava pela afirmação: «Há uma frase de Chesterton de que não consigo recordar o contexto original e que cito de memória: ‘Desde que os homens deixaram de acreditar em Deus, isso não significa que já não acreditem em nada, acreditam em tudo».
RECORDAR FUNES Nesse tempo, não havia ainda nem telemóveis nem internet, mas profeticamente Umberto Eco já temia a tentação de abarcar o conhecimento universal através de uma espécie de super-memória, como no caso do conto de Jorge Luís Borges “Funes ou a Memória”, de 1944 (in “Artifícios”, Ficções), lembrado no filme, como referência preventiva, perante a evocação dos perigos das tecnologias de informação… Ireneo Funes era um rapaz uruguaio com qualidades inatas que o singularizavam por algumas estranhezas, como a de não se dar com ninguém e a de saber sempre as horas como um relógio. Um dia foi derrubado por um cavalo bravo e ficou paralisado sem esperança. Não saía da enxerga, de olhos postos na figueira do fundo ou numa teia de aranha. Ao cair perdera o conhecimento, mas quando o recuperou “o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido que se tornara, e também as memórias mais antigas e mais triviais”. Tornou-se um extraordinário cadinho de memórias, afirmando: “Mais recordações tenho eu sozinho do que devem ter tido todos os homens desde que o mundo é mundo”. Ireneo não só se lembrava de “cada folha de cada árvore de cada monte, como também de cada uma das vezes que a tinha notado ou imaginado”. Mas resolveu reduzir cada uma das suas jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças para poder abarcar o que poderia valer a pena. Uma vez, pediu emprestados alguns volumes com os mais difíceis problemas do latim, como a Naturalis Historia de Plínio, que está na origem das enciclopédias modernas. E desenvencilhou-se perante as mais difíceis sentenças, designadamente no inusitado primeiro parágrafo do capítulo 24 do livro sétimo, exatamente sobre a memória, como “ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum”, ou seja, “de modo que nada seria reproduzido sem ouvir as mesmas palavras”. Funes tinha “aprendido sem esforço inglês, francês, português e latim. Suspeito, no entanto, de que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos”. O exemplo do “memorioso” era, afinal, uma verdadeira metáfora atual sobre o pequeno clique digital que nos dá acesso a uma bibliografia de dez mil volumes, quando ninguém, de facto, poderá lê-los. Por isso, Ireneo Funes tinha a estranha angústia sobre a multiplicação de gestos inúteis. Antigamente líamos três ou quatro livros e ainda poderíamos aprender qualquer coisa. Agora somos obrigados a ter de eliminar o máximo de informação, protegendo-nos o mais possível dos ataques de quem nos quer importunar a todo o custo, num mundo sobrecarregado de mensagens. Naquele mágico labirinto, o verdadeiro enigma continua a ser o que permitiu a Teseu libertar-se de Minotauro…
Há um Bairro de Jasmins para ti Há Santos que Cantam Hosana Em Todos os Bairros de Jasmins Santa Etty Hillesum Olha do Céu a Terra com Espanto É um Bairro de Jasmins Que Floresce em Toda a Terra Santifiquem-se as crianças de Toda a Terra Santifiquem-se as crianças de Toda a Terra Há um Bairro de Jasmins em Todo o Lado Há um Bairro de Jasmins em Todo o Lado Os Jasmins Florescem nas mãos das crianças Os Jasmins Florescem nas mãos das crianças No comboio para Auschwitz Caminhou Santa Etty Hillesum Santa Etty Hillesum É a Protectora de todas as crianças Santa Etty Hillesum É a Protectora de todas as crianças A Paz Vem de Santa Etty Hillesum para Toda a Terra As crianças exultam da Paz dos Jasmins.
There’s a Jasmine Town for you
To Isabel Alcobaça and Teresa Almeida
There’s a Jasmine Town for you There are Saints who Sing Hosanna In Every Jasmine Town Saint Etty Hillesum from the Sky Looks Astounded at the Earth There’s a Jasmine Town Blossoming Everywhere on Earth Let the children in the Whole Earth be sanctified Let the children in the Whole Earth be sanctified There’s a Jasmine Town Everywhere There’s a Jasmine Town Everywhere The Jasmine Blossoms in the children’s hands The Jasmine Blossoms in the children’s hands On to the train to Auschwitz Stepped Saint Etty Hillesum Saint Etty Hillesum Is the Protector of all children Saint Etty Hillesum Is the Protector of all children Peace Comes from Saint Etty Hillesum to the Whole Earth The children exult from the Jasmines’ Peace.