A VIDA DOS LIVROS
De 16 a 22 de outubro de 2023
No centenário da morte de Guerra Junqueiro recordamos duas das suas obras mais conhecidas “A Velhice do Padre Eterno” e “Os Simples”.
“Engana-se quem entre Os Simples e a Velhice do Padre Eterno descobrir porventura contradições. Aquela indignação é o comentário desta elegia. Este lirismo é o reverso daquela sátira. O cristianismo d’Os Simples é o inocente e meigo cristianismo popular, feito com ignorância absoluta do dogma e com a intuição humana dos Evangelhos. A exegese do povo, na sua rudeza nativa e embrionária, é por vezes duma penetração sublime e reveladora”. É Abílio Guerra Junqueiro quem o afirma em nota a Os Simples. A passagem do centenário da morte de Guerra Junqueiro permite compreender o lugar que o poeta tem na cultura da língua portuguesa, bem como entender melhor o tempo em que viveu, obrigando-nos à leitura atenta da criatividade do escritor, ligando-o ao seu compromisso cívico. Começo por lembrar o intelectual que iniciou a sua intervenção política na cidade do Porto próximo do movimento da Vida Nova, animado pelo autor de Portugal Contemporâneo, em meados dos anos oitenta do século XIX, grupo nascido no seio do Partido Progressista, sob o comando de Anselmo José Braamcamp, com o objetivo de renovar profundamente a Política e a Economia Nacional. Concluído o curso de Direito em Coimbra, em 1873, Junqueiro publicou no ano seguinte A Morte de D. João. E este encontro com o grupo de Oliveira Martins prolongar-se-á até à constituição do chamado grupo dos “Vencidos da Vida”, sendo destes anos a publicação de obras críticas de acentuado sucesso editorial e popularidade, como A Velhice do Padre Eterno (1885), Finis Patriae (1891) e Pátria (1896). Está na nossa memória a célebre fotografia tirada no Palácio de Cristal do Porto do célebre grupo dos Cinco: Antero de Quental, Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro. E a obra política de Guerra Junqueiro de combate corresponde a uma séria determinação em dotar o País de instituições democráticas e republicanas, capazes de representar os cidadãos e de mobilizar a sua participação ativa. Contudo, o escritor não esquece um sentido filosófico, uma cosmovisão de amor pela humanidade e pela natureza, como complemento natural da campanha cívica. Daí a publicação em 1892 de Os Simples, obra pedagógica marcante, que se articula com Oração ao Pão (1902) e Oração à Luz (1904). Como salientará Sampaio Bruno, Junqueiro assumiu, deste modo, com coragem, todos os riscos de uma atitude severamente crítica, que tinha como marca fundamental a defesa de uma necessária emancipação cívica.
Mas, porque a história tem coincidência surpreendentes, a verdade é que Guerra Junqueiro morreria em Lisboa, numa vivenda, que foi propriedade da família de minha Avó, hoje há muito demolida, no coração de Campo de Ourique, na antiga rua de S. Luís, números 52-54, a atual rua de Silva Carvalho. Tal facto também me ligaria à sua memória. Aliás, em 1955 a filha do poeta, Maria Isabel, bater-se-ia com determinação para que a casa não fosse destruída, o que infelizmente aconteceria, como ocorreu com a última morada de Almeida Garrett, em lugar expressamente escolhido pelo autor de Frei Luís de Sousa. E assim Lisboa recusou a criação da Casa-Museu de Junqueiro, que hoje se encontra na cidade do Porto, constituindo uma referência de grande valor patrimonial, pela extraordinária coleção que alberga. De facto, a Fundação Maria Isabel Guerra Junqueiro e Luís Mesquita de Carvalho honra da melhor maneira a memória do grande poeta. A recordação do artista de A Morte de D. João e de Os Simples esteve assim bem presente ao longo da minha vida, e sempre encontrei a lembrança do poeta como algo de próximo. E agora, graças ao meu amigo Manuel Cavaleiro Ferreira, descendente de Junqueiro, tenho acompanhado a celebração deste centenário. Por isso, no Museu Nacional de Arte Antiga, fiz questão de começar por fazer ouvir as palavras de Guerra Junqueiro no seu poema dedicado a Portugal: “Maior do que nós, simples mortais, este gigante / foi da glória dum povo o semideus radiante, / Cavaleiro e pastor, lavrador e soldado / seu torrão dilatou, inóspito montado, / numa pátria… E que pátria! A mais formosa e linda / que ondas do mar e luz do luar viram ainda! / Campos claros de milho moço e trigo loiro… / Pátria feita lavrando e batalhando: aldeias / conchegadinhas sempre ao torreão de ameias. / Cada vila um castelo. As cidades defesas / por muralhas, bastiões, barbacãs, fortalezas; / e, a dar fé, a dar vigor, a dar o alento, / grimpas de catedrais, zimbórios de convento, / campanários de igreja humilde, erguendo à luz, / num abraço infinito, os dois braços da cruz! (…) / Águas sem fim! Ondas sem fim! Que mundos novos / que estranhas plantas e animais, de estranhos povos, / ilhas verdes além, para além dessa bruma, / diademadas de aurora, embaladas de espuma”. Este é o Portugal que o poeta amava, também como colecionador de coisas antigas. E em Arte Antiga pudemos ver um breve apontamento do espólio que evoca o poeta. E na homenagem ao cultor das nossas raízes, foi-me possível chamar a atenção dos circunstantes para cinco obras-primas: A “Anunciação”, preciosidade de alabastro policromado de origem britânica do século XV; a “Virgem com o Menino”, do século XIV, em pedra calcária policromada; a Cruz processional em cobre dourado do século XIV; a “Virgem e o Menino” do mestre das Meias Figuras, em têmpera sobre madeira de carvalho (de cerca de 1500); o retrato de D. Juan de Áustria, óleo sobre madeira de castanho (segundo modelo de Alonso Sanchez Coello) e o preciosíssimo “Ecce Homo” de Estêvão Gonçalves Neto (1604) em têmpera e ouro sobre pergaminho. Guerra Junqueiro amava as melhores coisas. São exemplares as cerâmicas que se encontram na casa do Porto. E recordei a pequena história do gatinho que comia sopas de leite numa valiosa taça indo-portuguesa. O poeta amante e cultor do património antigo convenceu facilmente o proprietário do bichano a dar-lho com o pratinho antigo. O exemplo serve para entender a coerência e o talento do velho republicano, para quem o amor da pátria exigia conhecimento e amor do território, proximidade do povo, sentido de justiça, compreensão da gesta e da grei, vontade de sermos melhores, culto das artes e da sensibilidade cultural do povo, numa palavra, consideração da cultura e do património como responsabilidade.
Guilherme d'Oliveira Martins
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