BABEL E O PENTECOSTES: HOMENAGEM A NATÁLIA CORREIA. 2
Em contraposição com a Torre de Babel, quando cada um quer ser o dominador de tudo e de todos, num orgulho erguido até ao céu, de tal modo que ninguém se entende, noutro livro da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se a descida do Espírito Santo, no Pentecostes — não esquecer que Natália Correia era espírito-santista. "De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem." Ao ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos ficaram estupefactos, "pois cada um os ouvia falar na sua própria língua". Atónitos e maravilhados diziam: "Esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então, para que cada um de nós os ouça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!"
Cada vez mais tomamos consciência disso: o que tem de unir os seres humanos é a justiça, o amor, a solidariedade, a fraternidade, o respeito pela igualdade na diferença e pela diferença na igualdade, pois então os seres humanos, todos, voltaram a encontrar-se e entenderam-se. Portanto, Pentecostes tem de ser todos os dias. No Pentecostes, restabelece-se a unidade desfeita com a Torre de Babel. Trata-se, porém, da unidade na diferença e da diferença na unidade. O amor do Pentecostes une diferenças, sem uniformizar. E abre horizontes novos de esperança à Humanidade solidária.
Um autor é grande — e Natália é grande —, quando é fonte de inspiração e iluminação do futuro. Aí está: na actual situação do mundo globalizado e terrivelmente ameaçado, em que a globalização tem sido sobretudo tecnológica e económico-financeira no quadro do neoliberalismo, é urgência maior pensar numa governança global (não digo um governo mundial, mas uma governança global), para que o império da força da lei ponha limites ao império da lei da força do mais forte — na presente situação de crise global, vários pólos do planeta se perfilam já com intenções de domínio imperial global,... — e, neste contexto, pensar no diálogo multicultural e inter-religioso, em ordem à paz, à justiça, a uma atitude nova de respeito e cuidado da natureza, a nossa casa comum, a uma vida menos centrada no consumo imoderado, no ter, e mais no ser, nesse milagre que é ser, existir e conviver.
Dada a presente crise global, dramática e mesmo trágica, penso que já se devia ter percebido que se impõe um novo macroparadigma de desenvolvimento e também das relações entre os povos, incluindo a sua relação com a natureza. Assim, sejamos crentes ou não, é claro que isso implica uma conversão, um espírito novo, que só pode ser o Espírito Santo, espírito de verdade, de liberdade, de igualdade, de fraternidade.
A tragédia repete-se constantemente. Quando, por exemplo, um ditador brutal, ignorando o Direito Internacional e as Nações Unidas, invade um país independente, aí está uma Babel, num mundo perigoso, com horrores e catástrofes à vista. Não é esse horror que vivemos na e com a Ucrânia? Não está aí, terrível, de consequências catastróficas, outra guerra no Médio Oriente?
Em toda a sua História, talvez nunca a Humanidade tenha estado numa crise tão grave como aquela que já se vive e se agrava cada vez mais. Quando se pensa no aquecimento global, na ameaça climática, na ameaça nuclear, no fosso cada vez mais fundo entre ricos e pobres, nos gastos astronómicos com novos armamentos — anualmente, uns 2 milhões de milhões de euros —, é preciso tomar consciência da ameaça de convulsões em cadeia e inclusivamente da morte global. A Humanidade pode correr o risco de um suicídio colectivo.
Numa entrevista recente, um dos intelectuais mais influentes da actualidade, Yuval Noah Harari, referia o que qualquer um de nós, se não andar distraído, constata: “Somos insaciáveis. Não interessa o que tenhamos conseguido alcançar, queremos sempre mais. Se temos um milhão, queremos dois milhões, se temos dois milhões, queremos dez milhões. O mesmo em relação ao poder: nunca estamos satisfeitos com o que temos, porque, na verdade, não sabemos como traduzir esse poder em felicidade. Somos milhares de vezes mais poderosos do que éramos na Idade da Pedra, mas não somos significativamente mais felizes. Se não aprendermos a parar, a desacelerar, o mais provável é que nos destruamos a nós e a todo o ecossistema.”
Concordando com Harari, julgo que é preciso ir mais longe e mais fundo. Pascal — estamos a celebrar os 400 anos do seu nascimento — escreveu que a constituição do ser humano mora ali algures entre o nada e o infinito (“le rien et l’infini”). Assim, compreendemos que, dada a dinâmica humana, a única verdadeira aspiração, desde o princípio, como se diz no Génesis, é querer “ser como Deus”. Por isso, a alternativa é esta: querer ser Deus pelo orgulho e a dominação de tudo e de todos, construindo uma torre de Babel até ao céu, ou acolhendo a graça que o Espírito Santo concede quando desce em Pentecostes.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 21 de outubro de 2023