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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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TODOS OS SANTOS, O HALLOWEEN, OS MORTOS

  


Aproxima-se o Halloween, a festa de todos os santos e o dia de finados. O que aí fica é uma reflexão sobre essas celebrações, também num esforço por mostrar a sua conexão.


1. Como todas as instituições, que celebram os seus heróis, também a Igreja cristã começou, já no século II, a celebrar os mártires, aqueles que, como diz a palavra, morreram por Cristo, para d'Ele darem testemunho. No século VII, o Papa Bonifácio IV consagrou em 13 de Maio de 609 ou 610 o Panteão romano a Maria, mãe de Jesus, e todos os mártires. No século seguinte, uma vez que, dado o seu número, já não era possível dedicar um dia a cada santo, Gregório III dedicou uma igreja em Roma a todos os santos, e essa festa de todos os santos tornou-se universal em 835 por decisão do Gregório IV. E aqui surge uma pergunta: porquê no dia 1 de Novembro?


No dia 1 de Novembro, havia uma grande festa celta, o Samhain, celebrando as divindades pagãs, as colheitas e a entrada no inverno: precisamente nesse dia acendia-se o primeiro fogo. Para que a festa pagã não monopolizasse as atenções, introduziu-se a festa de todos os santos neste mesmo dia.


No século XIX, houve uma imensa imigração de irlandeses para os Estados Unidos. Como é natural, levaram com eles as suas tradições, também o Samhain, inaugurando o inverno, no qual se impõe a noite, noite que mete medo — na noite, esbatem-se as fronteiras entre o aquém e o além.


Na noite de 31 de Outubro para 1 de Novembro, festeja-se o Halloween, a noite das bruxas, dos fantasmas... Repare-se no termo Halloween em inglês e veja-se o que significa. Halloween é All Hallow’s Eve, que significa, textualmente, véspera de todos os santos.


Que se conclui então? Diz-se que o Halloween é uma importação da América. Sim. Mas, se se estiver atento, percebe-se que, afinal, se trata da importação de uma exportação anterior.


2.1. Perguntam-me se os festejos do Halloween me preocupam. Nada, desde que, como todos os festejos, se passem com juízo. Até compreendo. O ser humano precisa de divertir-se, de rir, de fazer humor, exorcizar medos. Ora, cá está, repetindo: na noite, no meio das trevas, há mais permeabilidade entre este mundo e “o outro mundo”. Não esqueço uma conversa, na Alemanha: “com a luz eléctrica, as almas do outro mundo deixaram de aparecer!”.


O que me preocupa é o predomínio desses festejos sobre a festa de todos os santos. Preocupa-me que já não se pense no sentido da vida, no sentido último.


Por vezes, tem-se uma ideia errada da santidade. O santos não são uns beatos, a “bater constantemente com a mão no peito”. São pessoas normais, que cumprem o seu dever, numa vida honrada e digna. Significativamente, santo tem a ver com saúde em várias línguas. Em português, dizemos que alguém está são, com saúde, e também dizemos São João, São José. O santo é uma pessoa sã em todos os domínios: que cuida da saúde física, moral, espiritual, capaz de sacrificar-se pelo bem, numa relação boa consigo, com os outros, com a natureza, com Deus. Pergunto: ao contrário do que dá a entender a Igreja oficial, que parece canonizar apenas homens e mulheres consagrados, dedicados à religião, não há tantos homens e mulheres e casais verdadeiramente santos, exemplares no seu amor fiel, na educação dos filhos, no trabalho, na relação boa e felicitante com os outros, na relação com Deus?


E a fé é um combate, até para os santos canonizados. O Papa Francisco acaba de escrever uma Exortação Apostólica, “C’est la confiance”, sobre Santa Teresinha do Menino Jesus e não ignorou este seu escrito: “Eu sofria então grandes provas interiores de todo o tipo (até chegar a perguntar-me por vezes se o Céu existia). Quando canto a felicidade do Céu e a eterna posse de Deus, não experiencio a menor alegria, pois canto apenas o que quero crer.”


Neste contexto, permita-se-me um parêntesis: não sou favorável à canonização no sentido oficial corrente do termo. Até porque custa imenso dinheiro — dizem-me que pode chegar a centenas de milhares de euros. E porque se exige um milagre. Ora, não há milagres, porque tudo é milagre: o milagre do ser e de ser. Deus criou o mundo com as suas leis. Deus é infinitamente transcendente e ao mesmo tempo infinitamente presente à sua criação; Ele não está fora, mas dentro; ora, o milagre pressuporia que Deus está fora e, por vezes, vem dentro, e vem a favor de uns e não de outros. E como se saberia que determinado milagre é por causa de um determinado  “santo”  e não de outro que também aguarda a canonização?


A canonização só faria sentido como declaração de que alguém teve uma vida exemplar como cristão ou cristã.


2.2. No dia 2 de Novembro, celebra-se o dia dos defuntos. E, para muitas pessoas, ainda é importante fazer memória dos mortos. De qualquer modo, já não é como era. De facto, característica essencial desta nossa sociedade é fazer da morte tabu. Disso não se fala.


Não sou de modo nenhum favorável ao pensamento mórbido da morte, de que a própria Igreja se serviu por vezes para atemorizar e exercer poder, mas, quando a morte se torna tabu, há o perigo de cair na banalidade rasante e não colocar as perguntas essenciais. Já não se pensa e cai-se numa sociedade doente. Poderia dar muitos exemplos, mas deixo apenas uma pergunta: Que se passa neste país onde cerca de 9% dos juízes recorrem a drogas: haxixe e cocaína?


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 28 de outubro de 2023